segunda-feira, 10 de junho de 2019

Espiritualidade Antiga e Moderna. Meditação e Caminho. Palestra, com video, de Pedro Teixeira da Mota e Maria na Feira do Livro 2019

Realizou-se no dia 9 de Junho, na Feira do Livro 2019, de Lisboa, uma palestra diálogo sobre o tema "Espiritualidade Antiga e Moderna", por Pedro Teixeira da Mota e Maria, a pedido da Elisa Flora, directora da editora portuense Maitreya, que editou alguns dos livros de ambos.
                   
Como era Domingo de Pentecostes fez-se uma certa ligação com tal arquétipo acontecimento. O público, apenas visível no final da gravação, foi em razoável número, cerca de 40 e tal pessoas, enchendo o auditório, e houve boas perguntas.
 Escolhi este título para tentar clarificar o presente, com as suas múltiplas ofertas e ensinamentos muitas vezes discutíveis ou mesmo falsos, ligando-o com o antigo, o tradicional, o perene, a fim de possibilitar uma compreensão melhor  do caminho espiritual, da meditação, das dificuldades e dos valores em causa.
 As perguntas finais foram bem valiosas, permitindo esclarecer-se melhor o que é a meditação, como se medita, quais os perigos de tal caminhada... 
Fotografias da Vanda Gaspar, a quem agradecemos, e que confirmou os perigos de certas técnicas em voga,  a partir da experiência vivida por si (no caso, o retiro de Vipassana) na Índia, há alguns anos...
Segue-se a partilha da gravação deste significativo contributo, atrever-nos-emos a dizer neste dia pentecostal, para um culto mais verdadeiro do Espírito, santo...
                      

quarta-feira, 5 de junho de 2019

"O Exotismo Japonês". Apontamentos orientalistas e biográficos de Wenceslau de Moraes no livro "Ó-Yoné e Ko-Haru"..

Postal enviado por Wenceslau de Moraes para a sua irmã Francisca Paúl...
Numa valiosa reflexão intitulada O Exotismo Japonês, escrita exactamente há cem anos, em Tokushima, Junho de 1919 e inserto como o VI capítulo, de 18 páginas, no livro Ó-Yoné e Ko-Haru (o nome das suas duas sucessivas amadas japonesas), publicado no Porto, em 1923, com 279 páginas, Wenceslau de Moraes valoriza o amor que se tem desenvolvido em alguns seres "pelos países estranhos e distantes, pelas civilizações exóticas" e interroga-se sobre essa "misteriosa atracção" que leva uns quantos a fugirem dos seus meios e a "identificarem-se quanto possível com o meio novo", e que "transcendentais, incompreensíveis influências hereditárias terão amassado, durante milhares de séculos sem conto, o barro humano em que esses amorosos do exotismo são moldados;" deduzindo logo que "jamais se chegará a conhecer, ou mesmo a presumir, a essência subtilíssima de tais influências", e conclui reconhecendo que é a insatisfação com a dose de felicidade que o seu meio lhes pode dispensar que os incompatibiliza e os leva a buscar o pão do espírito noutras regiões...
                                     
Acrescenta a tal misteriosa hereditariedade e capacidade de felicidade, a causalidade estética e traça mesmo um quadro da valorização da religião da beleza como a futura: «O amoroso do exotismo, geralmente um intelectual, vindo de classes cultas, é também geralmente um esteta, conseguintemente um místico, um apaixonado da forma, da cor, do perfume, do som, de tudo o que é beleza e arte. O culto estético vem criando prosélitos, que aumentam de dia para dia. As religiões caducam, desfazem-se, - está-se vendo, - certos temperamentos mais sensitivos, que deveriam ser, se tivessem vindo a este mundo a alguns séculos atrás, fervorosos adeptos da igreja dos papas, hieráticos povoadores de mosteiros e tebaidas, são hoje simples místicos estéticos; é no meio da hipocrisia, do egoísmo e da indiferença geral da época, o advento de uma religião que substitui outra religião, dentro do circulo restrito de certos cultores do ideal».
Se é um facto a decadência das religiões, nomeadamente qualitativamente na sua capacidade de religarem as pessoas com o espírito e a Divindade, com o bem e a beleza, já numericamente tal não sucede e basta ver os milhões de crentes semi-alienados para não dizermos fanáticos cristãos (em múltiplas seitas, algumas verdadeiramente sinistras), judaicos e islâmicos. Em contrapartida, a estética tem sido de tal forma manipulada e desfigurada que não se ergue como religião senão em alguns raros seres, tendo sido antes ocupada ou substituída pelo mundo dos espectáculos visuais e auditivos, pelos desportos e pela ciência, sem dúvida hoje as pseudo-religiões do neoliberalismo que rege ou tenta reger, informando, deformando e contra-informando, a sociedade moderna.
Com efeito, se olharmos para as razões dadas por Wenceslau para o desenvolvimento do orientalismo no Ocidente, a primeira causalidade, a hereditária no ADN, também deve ser complementada pela dimensão espiritual, ou seja, pelas forças anímicas que entraram na constituição do temperamento e personalidade, as quais são certamente ainda misteriosas pela sua subtileza e tanto provindas dos pais como do ambiente, exemplos e educação, e pelo pão espiritual que tais almas procuram noutros meios, já a segunda linha de força ou causalidade, a da estética, como nova religião, também de reconhecer que ainda que crivadas de contradições e legendas tornadas dogmas opressivos as religiões e seitas tentam criar e partilhar certo tipo de beleza ou de entusiasmo captando assim muitas pessoas ainda no séc. XXI, embora haja alguns seres que conseguem verdadeiramente demandar e viver sobretudo a religião da beleza em si e sendo cultores da beleza de tradições, costumes, povos e até aspectos das religiões que se notabilizam em tal qualidade estética ou de harmonia...
Ora para Wenceslau de Moraes a Europa estava a ficar desfigurada, referindo já os fios de electricidade por toda a parte, e só em alguns recantos do Oriente "se dá fé de recantos pouco acessíveis aos intrusos onde a natureza é magnífica e onde a arte é primorosa." E mesmo ao nível da beleza física afirma ousada e libertadoramente «que qualquer negra nua, destacando-se de uma nesga qualquer de um palmar do acaso, ostenta mais beleza em seu perfil e mais arte em seus requebros do que a mais formosa dama que pisa as avenidas das grandes cidades europeias, caricatural e repelente no seu aspecto do seu trajo, que a moda hoje lhe impõe."
Quanto ao exotismo japonês, Wenceslau de Moraes, com a sua experiência de então de 25 anos de imersão no Oriente, valoriza muito o «Japão, o país de exotismo, o enlevo dos estetas; possuindo uma natureza eminentemente prodigiosa, em caprichos de forma e cores (...) e uma velha civilização requintada, que criou uma arte tal, nas pequenas e grandes coisas, - talvez principalmente nas pequenas coisas (...) Quanto à mulher japonesa, é um deslumbramento o seu encanto; deslumbramento que provem da sua graciosidade física, da sua arte de agradar e também do seu kimono, que é o mais harmonioso trajo que os costumes do mundo inteiro hão inventado».
                                 
Passando a descrever, breve mas argutamente, no capítulo  O Exotismo Japonês, a vida e obra de Lafcadio Harn (1850-1904, filho de uma grega e de um inglês), e de Pierre Loti, destaca como o 1º se adaptou, casou e viveu 14 anos consecutivos no Japão, sendo professor e gerando 14 livros, enquanto que Pierre Loti foi (1850-1923, filhos de franceses, o Loti foi-lhe dado pela rainha do Taiti), mais um diletante que «visita o Japão, a bordo dos navios de guerra, por várias vezes (de uma vez tive eu a boa fortuna de avistá-lo). Loti não gosta do Japão; acha a sua paisagem mesquinha, o seu povo grotesco, a sua arte pueril, os seus deuses horrendos. Todavia devemos ao eminente impressionista algumas páginas, raras, embebidas de vero sentimento e simpatia sobre o Japão».                        
E enquanto «Hearn adora a japonesa», «Pierre Loti diz o seguinte "bem feias essas pobre pequeninas japonesas!". E o seu famoso livro Madame Chrysanthème, onde muitos leitores ingénuos julgaram ver personificado o tipo da musumé, a rapariga japonesa em geral, não é mais do que a descrição humorística, amplamente salpicada de chufas, dos amores do autor com uma esposa a curto prazo, que um lavadeiro de Nagasaki, que lavava a roupa a bordo, lhe inculcou...».
Dirá ainda que «Loti, decididamente, não compreendeu o Japão (...) e porque principalmente, o delicioso boémio já anteriormente se embebera do exotismo de Stamboul, o lago indígena da maravilhosa cidade de Constantinopla, onde se demorou por longos meses e onde amou ardentemente uma mulher de harem... Loti, pelo coração, é talvez um turco; nunca será um japonês.» Todavia, mesmo em Lafcadio Hearn observa uma diminuição do amor pelo Japão nos últimos anos, já que «o esteta é uma apaixonado... e raras vezes se vê o velho a teimar em prosseguir pelas veredas íngremes da paixão» e também porque um certo fosso persiste: «é a barreira racial, é a aversão instintiva irredutível (embora utopias em contrário estejam agora muito em voga), que separa o homem de uma raça do homem de outra raça. No Japão, o europeu será sempre o keto-jin, o selvagem barbudo», algo que Wenceslau de Moraes, apesar da sua notável osmose orientalizante, também sentiu, embora certamente no séc. XXI tal barreira tenha diminuído bastante, como eu me apercebi nos 40 dias no Japão, só uma vez tendo encontrado tal oposição ao atravessar uma estreita ponte sobre o sagrado rio Kamo...
Acrescenta ainda Edmond de Gouncourt, como um bom esteta e exotista-orientalista (destacando La Maison d'un Artiste), tal como no início do capítulo mencionara Fernão Mendes Pinto (e poderia ter acrescentado alguns dos jesuítas que estiveram no Japão), mas hoje temos muitos mais viajantes e conhecedores profundos de vários aspectos do Japão, e mencionarei nos mais espirituais, um, Jean Herbert, com o seu excelente Aux Sources du Shinto. Le Shinto. Paris, 1964, que bem me apoiou para os diálogos com santuários, sacerdotes e pessoas na minha peregrinação nipónica em 2014.
                                    
Sobre si mesmo, depois de interrogar: «Que quer mais o leitor saber sobre este assunto? Quer que lhe conte as minhas impressões pessoais de amoroso de exotismo , aqui neste Japão, onde tantos anos da minha vida têm corrido» confessa «E que poderia eu dizer-lhe francamente? ... A emotividade explode, o coração bate forte, a alma voa ... mas como é difícil encontrar palavras que traduzam tudo isso, a nossa vibratilidade de um momento, o enxame de pequeninos mistérios íntimos, fugidios!... No entretanto, para satisfazer de qualquer modo a curiosidade benevolente de uma dúzia -se tanto - de amigos que me restem, entre conhecidos e desconhecidos, aqui deixo consignadas umas leves notas soltas...
Cedo, muito cedo, me alvoroçou e seduziu o encanto do exotismo. Porquê? Não sei. Penso que, temperamento marcado da tara da morbidez logo ao nascer, não me encontrava bem onde me achava, pedia asas à quimera, para fugir para longe, muito longe...
E fugi, e voei, e fui deixando farrapos de alma (porque a alma se rasga e se dá quando se amam as coisas), por todo este mundo exótico fora: – pelo Oceano imenso – águas e céu, pela África selvática, pelo Egipto, por Argel, por Zanzibar, por Áden, por Colombo, por Singapura, por Bangkok, por Saigão, pela China, por Java, por Macáçar, por Timor e mais nada... - Reservava-me o destino ainda outras emoções: – cheguei ao Japão. – Amei-o em transportes de delírio, bebi-o como se bebe um néctar... 
                              
Todavia, eu nunca experimentei a sensação plena do gozo, o prazer que domina tudo, triunfante. Eu nunca, no Japão como em parte alguma, me senti plenamente feliz, sem dúvida por incompetências e incongruências dos meus dotes afectivos. O enlevo das coisas acorda sempre no íntimo do meu ser um sofrimento ignoto, a impressão de dor por uma catástrofe sofrida ou por sofrer – sofrida, talvez numa outra vida já vivida; por sofrer, talvez em futuros dias da minha vida actual, talvez numa outra vida que há-de vir; ou terei eu o estranho dom de sofrer, por indução, a dor dos males que ferem outros seres?...
Bem. Foram correndo os anos; foram-se sucedendo as surpresas, as maravilhas; e também os reveses, como, em regra, sucede a toda a gente. O Japão conferia-me ainda o privilégio cruciante de assistir, em curtos intervalos de tempo, a duas agonias, aos gestos convulsivos e aos gemidos pungentes de duas mulheres na força da vida e dos desejos, que morriam a meu lado, tendo pedido à morte que as poupasse...
                             
 A minha religião de esteta, a qual já de longe, ia anunciando tendências para me deixar colher dos factos e dos aspectos, principalmente, a noção melancólica da impertinência das coisas, do aniquilamento como lei suprema, a que tudo se submete, transitou então para uma outra crença, a religião da saudade – que é ainda uma religião estética, mas de uma estética retrospectiva, que leva à paixão do belo, do bom, do consolador, pelo que foi e já não é.
O Japão foi o país onde eu mais vivi pelo espírito, onde a minha individualidade pensante mais viu alargarem-se os horizontes do raciocínio e da compreensão, onde as minhas forças emotivas mais pulsaram em presença dos encantos da natureza e da arte. Seja pois o Japão o altar deste meu novo culto – a religião da saudade –, o último por certo a que terei de prestar amor e reverência. Tokushima, Junho de 1919.»
                                    
Realce-se neste texto autobiográfico de Wenceslau de Moraes a sua sensibilidade e capacidade de experiências anímicas e espirituais profundas, difíceis posteriormente de escrever pois "a emotividade explode, o coração bate forte, a alma voa". E que ainda viverá mais dez anos de aprofundamento solitário do amor saudoso pelas suas duas mussumés e da comunhão com a natureza, os costumes e a alma do Japão, realizando bem a unidade das religiões contida no provérbio japonês por ele citado: «iwashi no atama me shinjin kara (até uma cabeça de sardinha, com devoção). - Quer isto dizer que o objecto de culto, ainda o objecto mais ínfimo, pouco ou nada interessa; o essencial é o fervor, é a sinceridade piedosa».
Deixará ainda mais alguns testemunhos valiosos da sua peregrinação sentimental, etnográfica e espiritual nipónica, nomeadamente os contidos no Relance da Alma Japonesa, escrito em 1925 e publicado em Lisboa em 1928, na sociedade editora Portugal Brasil, nos quais perpassam intuições que são ainda hoje misteriosas questões. E sairão já depois da sua partida terrena em 1-VII-1929, em Tokushima, alguns volumes da sua correspondência fiel, num registo bastante anteriano, com a irmã Francisca e amigos...
                                                      

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Quem foi José Joyce, autor de "A Crença do Hereje", 1882, acerca de Galileu, e que foi pai de António Joyce? Enigmas bio-bibliográficos portugueses.

José Joyce é um autor quase desconhecido, não referido na base de dados (PORBASE) da Biblioteca Nacional, que deu à luz em 1882 em Lisboa A Crença do Herege, um poemeto algo anteriano, acerca do julgamento de Galileu Galilei (Pisa, 15 de Fevereiro de 1564 - Florença, 8 de Janeiro de 1642), que chegou até às minhas mãos num exemplar com a capa trabalhada e a ela colados recortes de jornais com a sua colaboração poética, contendo no reverso do frontispício a dedicatória manuscrita afectuosa a uma amiga, e assim me lançando nesta demanda de mais conhecimento sobre quem foi...






«Glória, és imortal! Essa luz que te enflora/ Paz duma noite escura, a mais brilhante aurora/ E ateias deslumbrante a inspiração divina/ Em que o génio se expande e a todos ilumina.»

 Intensa é a cena final do poemeto, quando Galileu, depois de ser forçado pelos inquisidores a desmentir que a Terra se move à volta do Sol,  e observando o riso felino dos seus acusadores, num abrupto derradeiro e fatal volta-face, exclama num protesto corajoso e de último alento:«E existes, todavia, ó lei do movimento».
O recorte do poema seguinte é uma peça do puzzle ou mistério de José Joyce:

 José Joyce foi o pai de António (Avelino) Joyce (1888-1864), maestro reconhecido, pois este recorte do jornal, datado de 1908, contem um poema dedicado ao seu filho António, então já com 20.
 Um ano depois deste poema, em 1909, o poeta João de Barros (conforme a fotografia seguinte), dedica a António Joyce um exemplar da sua Terra Florida, e em 1913, já como secretário geral do Ministério da Educação, protegerá bastante a música e os coros, através do apoio a António Arroio e António Joyce.

 Também Aarão de Lacerda cita António Joyce no seu livro Lucernas, 1922, na p. 136, como sendo o fundador em Coimbra do «Orpheon Académico de tão belas tradições».
Também um texto de Ana Cristino Brissos, António Joyce (1888-1964), em dois tempos ideológicos, que está online, dará mais informação, ainda não sobre José Joyce, mas sobre  o seu filho António que, licenciado em Direito pela Universidade Coimbra,  desempenhou funções administrativas no Estado e foi tanto um notável violinista e maestro fundador do Orfeão Académico como um valioso investigador etnomusicólogo, recolhendo, transcrevendo e estudando cancioneiros das províncias, sendo ainda um dos organizadores da escolha da Aldeia mais típica de Portugal.  Esperemos que venham a surgir mais dados sobre José Joyce...
 
Ps. Já em 31-10-2023, relendo o Espírito Lusitano ou o Saudosismo, de 1912, uma conferência de Teixeira de Pascoaes, deparo-me com a sua elevada esperança em António Joyce, pois referindo as grandes almas do Renascimento espiritual em Portugal aponta, entre outros, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, António Carneiro, Soares dos Reis, Cervantes Haro e conclui: «Eis os artistas e os Poetas a quem a Saudade falou, eis a lírica falange libertadora da alma portuguesa, desde séculos no cativeiro, desde séculos no esquecimento...
O Saudosismo encontrará, estou certo, a sua forma musical no Orfeon do Porto e de Coimbra, dirigidos por António Joyce e Fernando Moutinho.
Só no seio da Harmonia se poderá realizar o perfeito casamento da luz e da sombra, da alegria e da tristeza, do beijo e da lágrima, da vida e da morte. A própria harmonia não é a combinação dos contrastes? Não é ela a irmã-gémea da Saudade?»
Também Aquilino Ribeiro foi amigo ou admirou António Joyce, pois no nº32 da artística revista Atlantida, dedica-lhe um emocionante conto religioso, passado aquando das invasões francesas,  na zona do Carregal, no mosteiro feminino cisterciense de Tabosa, fundado em 1692, com as primeiras monjas a virem do Convento de N. S. da Nazaré do Mocambo, na Madragoa lisboeta. 

Ramiro dos Santos, um anteriano, "Rhytmas e Rhytmos": o Amor e as causas misteriosas do final de Antero.

    Ramiro dos Santos, publicou o seu primeiro livro, e de outros não sabemos, de poesia, em 1897, no prestigiado editor Manuel Gomes, à rua Garret, em Lisboa, dedicando-o ao Dr. António Augusto de Carvalho Monteiro, o famoso Milhões, dono do palácio neo-manuelino da Regaleira. E, intitulando-o Rhytmas e Rhytmos, Ramiro dos Santos foi original, cantando e valorizando muito o ser feminino, tão importante na vida humana e social, pesem os machismos ou agora trangendrismos que se abatem sobre a mulher e que não lhe reconhecem a sua própria identidade e a primazia  no Amor. Por isso mesmo talvez, um dos seus mais conseguidos e belos poemas, se intitula Hyno a Vénus.
                                   
O livro, impresso no Porto na Typ. A. J. da Silva Teixeira, não se encontra (ainda) na lista da Porbase, da Biblioteca Nacional, e é raro,  a tiragem não devendo ter ultrapassado os quinhentos, ou menos, exemplares. Encontramos contudo uma crítica a ele, na revista Ocidente, de 30-III-1898, assinada pelo académico algarvio António Cabreira (modestamente "célebre" pelas suas obras acerca da quadratura do círculo, a data da morte de Jesus e genealogia), na qual refere conhecer Ramiro dos Santos, desculpando alguns defeitos formais da  obra pela sua inexperiência e avançando numa hermenêutica psicológica e espiritual do autor e da obra, que realiza bem, nomeadamente ao discernir-lhe o fundo psíquico, o seu veio de "cepticismo temperado com bom senso", e os tons ora melancólicos ora irónicos nos poemas, oscilando entre o epicurismo do presente e a contemplação e imobilidade  referida em poemas como  Ataraxia e outros.
Depois de tentar corrigir ou diminuir a falta de confiança ou cepticismo na evolução ou avanço espiritual dos seres,   manifestada por  Ramiro dos Santos no seu desalento e relativismo, António Cabreira transcreve alguns poemas e concluiu o artigo com este parágrafo: "A lógica de aço, a elevação dos conceitos e a beleza do estilo, acusam toda a limpidez de inteligência de Ramiro dos Santos, a quem desde os bancos das escolas dedicamos particular estima e sincera admiração».
Ora se nos embrenharmos na leitura do livrinho, encontramos descrições muito conseguidas de ambientes rurais, estranhos, ou nocturnos, e valiosos conceitos e imagens, em poemas notáveis pelo amor sentido, desejado e idealizado, embora alternem  com o tal desalento ou melancolia, tão cultivado na época e que terá no Livro do Desassossego de Fernando Pessoa o seu avatar máximo. E assim logo no primeiro poema, Melopeia, Ramiro dos Santos lamentar-se-á do estiolamento ou morte em vida de almas, e da própria centelha da vida se poder apagar, verdadeira tragédia de almas isoladas ou não amadas. 

A influência de Antero de Quental, mestre de grande parte da sua geração,  sente-se mais nos sonetos em que aborda a morte, tais como o Post Lucem Tenebrae, Morte e o Incerteza, ou quando cultiva a indiferença, a letargia, a inconsciência, tais como Ataraxia, Fadiga, Fatalismo, Canção Mortuária. Mas a reacção amorosa a realizar-se na terra, e humana e carnalmente, acentua-se em vários sonetos, com um mais perfeito, intitulado Paramnésia, bem aberto (e que perpassa por outros poemas) à tão difícil quão valiosa reminiscência da Luz espiritual, ou de já terem conhecido anteriormente, misterioso, que desabrocha e une dois seres que se aprofundam no olhar e sentem que verdadeiramente se amam:

«Hoje quando em teus olhos reparava,
Cuidei reconhecer no teu olhar
Uma luz, que há muito me iluminava
Doce e esplêndida como o luar.
 
 Como em tua voz flébil, maviosa,
O eco de uma voz em tempo ouvida
Algures, uma voz misteriosa,
Como não ouvi outra em minha vida.

Decerto já te vira, e me parece
Que há muito que eu andava a procurar-te:
Já te vira e perdi-te, é certo, vê-se,
Pois a mim não me surpreendeu achar-te.

Não me surpreendeu, pelo contrário:
Chegaste e estava tudo preparado:
Em minha alma já tinhas um sacrário,
Que o amor já te havia consagrado.»

Será sensívelmente a meio da sua obrinha de 213 páginas, mais precisamente na pág. 115, que encontramos um soneto precioso, confirmando a nossa intuição da influência de Antero de Quental em Ramiro dos Santos, ou se quisermos, o diálogo dele com o ideário de Antero, exactamente intitulado Antheriana, o qual nos desafia bastante pela profundidade com que Ramiro dos Santos questiona o mistério da morte de Antero de Quental, a qual já vimos  bem poetizado iniciaticamente ("Morrer é ser iniciado") em Joaquim de Araújo, que deu mesmo à luz numa plaquette o seu poema Na morte de Antero.

  Ora nos dois primeiros quartetos Ramiro dos Santos discerne e bem em Antero de Quental o desejo de voltar à misteriosa origem da vida, donde o espírito humano se exilou, e como Antero, não movido pela esperança da glória ou luz cristã, aspira antes e apenas à morte libertadora, Ramiro dos Santos questionará se tal ideia-força-crença não foi uma quimera, uma ilusão anteriana, oposição ilusão-realiade que ele aliás na obra mais de uma vez poetizará?
Nos dois tercetos conclusivos, Ramiro poderia interrogar-se se Antero fez bem ou se poderia ter-se aproximado da morte de outro modo, ou qual seria o melhor meio de religação com a Origem: se uma visão "estilo budista" do nada, ou se uma mística de realização interna, como por exemplo a da centelha em nós, ou mesmo do Deus vivo em nós. Contudo, cingir-se-á à morte voluntária precoce e como isso pode causar aprisionamentos no além. E talvez, como ser ainda bem jovem, talvez pudesse sugerir mais o amor unitivo e divinizante a ser desejado e exaltado, e que faltou a Antero. Oiçamos a transcrição completa do poema:

«Desejando voltar à origem insondável,
Caos misterioso onde a vida foi nada,
Donde a essência veio, êxul inconsolável,
As formas animar, por elas maculada;

Aspirando com ânsia à liberdade, ao nada,
Como um cristão devoto à sempiterna glória.
Outra esperança ainda, e talvez ilusória:
Talvez uma quimera: a Morte abençoada.

Cansado de viver, a seus funéreos braços
Antero se arrojou com alegria insana:
Se tanto lhe queria e tanto a invocava!

Voaria a sua alma, através dos espaços,
buscando as regiões serenas do Nirvana?
... Como se a Morte fosse o que Antero julgava.»


Como vemos, Ramiro dos Santos demarcou-se ousadamente, e com alguma verdade, da autoridade da crença na morte libertadora por parte de Antero, pondo em causa a concepção da morte nirvânica que ele poderia ainda ter ou imaginar no momento do suicídio: era uma concepção da morte errada, ele não se libertaria assim tão facilmente...

 Já um outro entendimento que Ramiro dos Santos sente e exprime nos parece errado: o de que Antero "se arrojou com alegria insana" nos braços da morte, pois os testemunhos da época mostram Antero algo dilacerado pelas dificuldades de estabilizar-se nos Açores e renunciando algo tristemente à vida na terra por mais tempo. 
Quanta tristeza tingia o corpo subtil anímico ou, se quisermos, a psique de Antero, perguntarei antes, e parece-me que seria bastante, em vez da alegria insana... 
Que luta teve ainda  de travar para dar esse passo cortante, decisivo? Estaria muito iludido quanto ao seu destino no além e quanto à licitude de desenlace voluntário precoce? Quanto tempo vai levar Antero para poder avançar mais livre e luminoso nos planos espirituais?
Ramiro dos Santos parece considerar que a demasiada demanda filosófica e ideal de Antero lhe foi fatal, pois no poema seguinte, dirigido precisamente a António Cabreira, intitulado Omnia vanitas, questiona os falsos idealismos, ou as quimeras e sonhos, que acabam por só gerar agonias, dores e renúncias do amor, ideia esta que repete noutros poemas: não desperdicemos ou cortemos as amizades e amores que possamos sentir ou encontrar, sob pressão de causas e idealismos...
Ora António Cabreira na crítica a Ramiro dos Ramos tentara valorizar a procura da verdade, da beleza e os idealismo, embora sem referir Antero de Quental, e com razão, pois toda a jornada de Antero fora um ingente esforço de penetração no mundo das ideias e da Unidade da existência. Donde o seu posicionamento filosófico, metafísico e espiritual no fim da sua vida ser bem harmonioso e profundo, tanto na sua compreensão da vida como uma abertura cada vez maior da consciência ao espírito e ao todo, embora de amores estivesse bastante só, e o Amor não estivesse muito acesso em si, sendo antes a Ética e o Bem Comum talvez as ideias forças mais poderosas ou desenvolvidas nele. Estas são questões que todos nós deveríamos interrogar e desenvolver mais...
Contudo, suicidou-se, talvez porque sem grandes dúvidas e receios quanto à existência do além, do mundo espiritual e do Nirvana, seja com preservação da individualidade ou sem ela, pois o discernimento de tais subtis níveis não tinha sido muito alcançado nem bem vivenciado por ele, estava corporalmente bastante fragilizado e não suportava mais os reveses da gorada estabilização final nos Açores, com as suas duas protegidas a serem-lhe retiradas.
Terminemos esta breve apresentação de um autor e livro, algo anteriano, e continuaremos a demandar, ler, dialogar e reunir elos da Tradição Espiritual Portuguesa e Universal, na qual certamente Ramiro dos Santos se inseriu, tanto mais que também ele, como Antero de Quental, valorizou a comunhão com o corpo místico da Humanidade, com os pais e amigos mortos, tal como dedilha no poema  "A umas imagens que se veneram no meu coração",  e do qual reproduzimos o início:
                     
Dele e de Antero segue o apelo a que os nossos idealismos, sonhos e lutas nos despertem e mantenham tanto justos e interventivos como mais estabilziados e alegres no Espírito, no Amor, na Força, numa vivência luminosa ou harmoniosa do Bem e da unidade com os outros seres, os mestres, a Divindade, pesem os obstáculos e adversidades que nos rodeiem.
Terminemos com outro belo poema de Ramiro dos Santos, não o final Mors (dialogante com o de Antero), nem o Exercícios Espirituais onde tanto exalta o amor humano, mas o Sanctitas, no qual trabalha num sonho uma linha de força espiritual muito importante, a templária, ou do templo espiritual subtil, interior e planetário.
 

domingo, 2 de junho de 2019

Carlos Sombrio, artista da Figueira da Foz, as "Sombras" e um exemplar dos "Sonetos" de Antero. E o Mors-Amor.

 Actualizado em 13-II-24, e em 11-IV-24
Em 1922, Carlos Sombrio, nome literário de António Augusto Esteves, publicava um livro de esboços naturalistas e psicológicos intitulado Sombras, já que, pintor e escritor, sentia humildemente que eram apenas sombras e esboços o que conseguia realizar, como nos confessa no preâmbulo humilde "Aos que me lerem". Recolhia nele cinquenta apontamentos  publicados semanalmente no jornal A Voz da Justiça, da Figueira da Foz, durante o ano de 1920.
 A capa leva uma sugestiva pintura da margem de um lago com alto arvoredo, assinada com o seu nome António Augusto Esteves. O exemplar que me serve para esta espécie de janela vitalizante da sua alma e obra tem uma bela dedicatória rodeando uma fotografia sua: "Ao ilustre homem de letras, meu patrício e meu amigo, Manuel Cardoso Marta [1882-1958]: ao seu elevado e culto espírito; à nobreza da sua alma, homenagem do autor, Carlos Sombrio. Figueira, 5-5-922." [Acrescente-se que ambos tinham um grande amor a Antero de Quental, e que recentemente publiquei dois sonetos de Cardoso Marta, em diálogo com Antero: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/04/da-perenidade-de-antero-de-quental-num.html]
                                
 O exemplar não é vulgar, pois a Porbase das bibliotecas públicas ligadas à Biblioteca Nacional, não o regista, embora assinale outras obras de autoria de Carlos Sombrio, algumas bem valiosas tal como a Figueira da Foz: das suas tradições populares, dos seus encantos, 1942, ano em que publicava também O Meu Romance, na novel Livraria Latina Editora, que daria à luz o valioso ensaio biográfico-ideológico de Antero de Quental, por António Ramos de Almeida. Mais conhecido foi o seu trabalho Florbela Espanca, publicado já em 1948. De destacar ainda as Aguarelas da Beira: crónicas da serra da Estrela, de 1935. Ou mesmo ainda o belo prefácio, em 1940, ao livro Ao Alto  da fremente poetisa Vitória Régia com a sua «sensibilidade delicadíssima, inquilina duma alma onde o sofrimento da inquietação, a exaltação do próprio amor, os gritos do submisso anseio, são feitos silenciosamente, em segredo, em pensamentos de oração» e, acrescentamos, do coração...
  Nascera em 29 de Julho de 1894 na Figueira da Foz, onde se destacou como ourives e cinzelador, jornalista e escritor, tendo deixado a Terra com 55 anos, ainda hoje sendo lembrado e comemorado pela sua arte, fraternidade e culto da beleza.
Em 1936 fundou o grupo Coração, Cabeça e Estômago, em cujo Livro de Actas se explica, talvez por ele: «Coração, porque todos os seus componentes vivem afectiva, paternal e socialmente por essa víscera, amando, sofrendo combatendo os duros combates da vida. Cabeça, porque todos são  indivíduos votados ao culto das letras, artes e ciências. Estômago, finalmente porque sem comprometerem aquelas qualidades espirituais, não desprezam os prazeres com que a mesa favorece os apreciadores da boa cozinha portuguesa, entre todas a mais excelente». Entre os convivas anuais estavam o poeta e etnógrafo Cardoso Marta, o pintor Mário, Augusto Salinas Salgado e o notável professor e anteriano Joaquim de Carvalho, seu companheiro de infância,  como narrará em 1987 José Pires Lopes de Azevedo, na sua  Lembrança do Doutor Joaquim de Carvalho, transcrevendo mesmo parte da homenagem que Joaquim de Carvalho lhe prestou em Junho de 1949, quando partiu da Terra: «Carlos Sombrio foi um autodidacta no mais denso sentido da palavra; não frequentou escolas e não teve, sequer, o estímulo inicial de um camarada mais velho. O que foi, a si, e a só a si, o deve, à sua vontade tenaz e admiravelmente voluntariosa. (...) O que singularizou Carlos Sombrio foi a afectividade, o dom de captar o colorido e de exprimir o sentido pictórico da Natureza e, sobretudo, o amor à gente simples da nossa terra, em cujo mundo sentimental penetrou com alma romântica e comovida».
Também Manuela de Azevedo, em Alguns Homens das Cartas a João de Barros (1972, Jornal Mar Alto, Figueira da Foz) mencionando ser Carlos Sombrio «um escritor menor que foi um carácter maior, autor de uma série e devotada biografia do Poeta» João de Barros, diz dele: «Era uma alma e um carácter ricos de todos os dons superiores», partilhando mesmo uma caricatura sua:
                                       
O João de Barros, Ensaio Literário e Bibliográfico. Prefácio do Doutor Joaquim de Carvalho. Tipografia Popular, Figueira da Foz, 1936, é na realidade uma obra merecedora de releitura e reimpressão, e «o que lhe falte em brilho, sobra-lhe na sinceridade, e na alta e merecida admiração com que o meu esforço  e o meu coração quiseram servir a obra maravilhosa, fecunda e formosíssima, do eminente Poeta que legou à Pátria páginas que ficarão eternamente aureoladas pela beleza impressionante duma veemência esplenderosa, dum optimismo salutar - e dum entusiasmo que, por ser perpetuamente juvenil, é admiravelmente fervoroso.»
 Passemos então às belas páginas das Sombras:
                                     
Não vamos analisar ou interpretar a obra, nomeadamente o breve e belo excerto aqui reproduzido:«Do céu parece caírem pétalas de malmequeres inocentes e de rosas brancas/ A Natureza vestiu o seu véu de noiva abençoando a terra», mas apenas transcrever e brevemente comentar um dos textos contidos nestas Sombras, passadas da alma à perenidade do papel quando Carlos Sombrio tinha apenas 26 anos de idade, por ser anteriano, por transmitir a sua visão de artista e de ourives da vida e obra, em geral e de Antero de Quental ficando-nos a interrogação quanto a diálogos anterianos que terá tido com Joaquim de Carvalho e Manuel Cardoso Marta...
É o VI capítulo e diz-nos assim:
«Encontrei hoje na estante da minha humilde biblioteca, quase esquecido, o pequeno volume dos Sonetos de Antero.
Joia preciosa da literatura, letras tristes onde existem cansaços duma vida que finda lentamente, como uma luz frouxa de candeia que se extingue a nossos olhos, que morre, sabendo que morre!
Foi um presente; uma letra esguia de mulher descrevia um oferecimento leal - tão leal, apesar de tudo! - e uma data.
............
Numa tarde cinzenta e enevoada de Abril, quando a perturbação invadira e fizera estremecer um rosto levemente afogueado, umas mãos leves, muito leves pousaram nas minhas esse bouquet de saudades. Abri-o receoso, e li:

       "Aqueles que eu amei, não sei que vento
       Os dispersou no mundo que os não vejo...
       Estendo os braços e nas trevas beijo
       Visões que à noite evoca o sentimento..."
....................................
Depois, foi meu companheiro de horas de insónia, e um dia, com dó de mim mesmo, escondi-o entre outros que possuem bocados da minha alma e da minha mocidade!...
Eu quis esquecer os «Sonetos»!...»

O apontamento é pequeno, mas  é algo misterioso e chama por algum cinzelamento, em três aspectos: como Carlos Sombrio sentia ou via os Sonetos de Antero, como recebeu o exemplar carregado de afecto e como cuidadosamente o abriu ou desfolhou e depois por algum tempo fielmente o acompanhou, até por fim o arrumar e querer olvidar....
 "Jóia preciosa da literatura [Aum Mani Padme Hum, a jóia do espírito está na flor de lótus, diremos nós com os mestres orientais], letras tristes [graves] onde existem cansaços duma vida que finda lentamente, como uma luz frouxa de candeia que se extingue a nossos olhos, que morre, sabendo que morre!" Eis Carlos Sombrio discernindo, ou vendo, a luz da genial e forte auto-consciência de Antero de Quental diminuindo  lentamente, qual chama de vaso precioso, ao longo da sua sofrida e desgastante odisseia.
A jovem amiga ou amante que lhe oferece com pudor perturbado e mãos muito suaves o ramo de flores saudosas que os Sonetos eram e, para o caso particular transmitiam. A abertura à sorte, o istixara persa, e a resposta provinda do soneto da página aberta à sorte: - os seres amados e partidos para outras margens só poderão por visões misteriosas ser ressuscitados.
Depois, a familiaridade com os Sonetos, seu companheiro de momentos de intensidade energética, das noites que se tornam dias inextinguíveis, insónias ou  ardências...
Por fim, o afastar-se dele e da associação amiga ou mesmo amorosa que o gerara e infundira, escondendo-o, com "dó de si mesmo" no meio de outros livros, embora este carregado de afectividade agora a não ser mais vitalizada. A sua confissão é algo dramática, culpabilizando-se: "Eu quis esquecer os Sonetos"
De que se arrepende mais Carlos Sombrio, o de não ter mantido a relação com a jovem afogueada de amor, ou de a ter querido esquecer, ou ainda de menosprezar os Sonetos e seus transes difíceis mas de ensinamentos perenes e desafiantes?
- Eu quis esquecer que a Vida é Amor? Eu quis esquecer uma alma amorosa que de si me partilhara os Sonetos de Antero?
 Que fuga dramática ou negação escapa da alma de Carlos Sombrio e paira no ar ?
Talvez o apontamento XXXX dê a resposta: descrevendo o abandonar de uma relação (e da amada o nome só numa ondulação muito subtil e ténue se poderá ouvir intuitivamente), e a tristeza que sentiu anos depois ao voltar ao pinhal onde «lemos os dois, sílaba por sílaba, um poema frágil»... 
Talvez o soneto Mors-Amor, de Antero de Quental, sobretudo nos dois tercetos finais, seja bom para concluirmos com claridade maior este diálogo de Carlos Sombrio e a amada, com Antero de Quental e as almas de Amor, na sua perenidade, onde quer que estejam, já que nele Antero sonha, visiona, ou apenas personifica, o resultado da grande luta entre a morte que derrota a vida e o amor invencível que a cavalga bem e imortaliza:
Um ás de copas, o graal no coração do cavaleiro Antero de Quental

Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?
«Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

 Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"»
 
"Eu sou Amor, o Amor passa por mim, eu irradio Amor...", sentirão tal os corações espirituais de Carlos Sombrio, Manuel Cardoso Marta, João de Barros, Joaquim de Carvalho e Antero de Quental, eventualmente com as suas amadas e almas mais amigas? Oremos...