quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Pico della Mirandola: os Anjos e a Divindade, nas teses de Egidio Romano. Nas "Conclusiones, sive Theses DCCCC". Roma, 1486.

Retrato quinhentista de Pico della Mirandola quando estava na biblioteca de José V. de Pina Martins e nos abençoava.

Giovani Pico della Mirandola (1463-1494) foi um génio pioneiro da unidade do saber filosófico e teológico e um místico do amor da Humanidade, da Verdade e da Divindade. Embora no seu voo de Ícaro tombasse cedo e sem o amadurecimento intelectual pleno, experimentando mesmo já antes da morte precoce as perseguições e exílios, prisões e excomunhões,  as suas obras e a sua pureza e aspiração ao conhecimento e à concórdia (entre o aristotelismo e o platonismo e entre as diversas tradições filosóficas e religiosas) tornaram-se legendárias e influenciaram ou inspiraram ao longo dos séculos grandes seres, no século XX atingindo-se o apogeu dos estudos que foram dedicados ao conde da Concórdia Giovani Pico della Mirandola nomeadamente por notáveis estudiosos ou especialistas do Humanismo e sua da vida e obra, tais Léon Dorez, Eugenio Garin, Paul O. Kristeller, Eugenio Anagine, Francesco Lamanna, André Chastel, Henri de Lubac, Giovanni Semprini, Bruno Cicognani, Pierre Marie Cordier, Léon Gautier-Vignal, Louis Valcke, Henri Crouzel, Cesare Vasoli, José. V. de Pina Martins, Luis Martinez Gomes, Fernand Roulier, Albano Biondi, etc, etc.
Como fui grande amigo de Pina Martins, e estudei razoavelmente  Pico della Mirandola, Marsilio Ficino e Erasmo, deste e sobre ele tendo publicado mesmo o valioso Modo de Orar a Deus, devo de quando em quando abrir algumas linhas de conexão com eles, cultivando o amor e a sua circulação, simbolizada nas três Graças, tão acolhidas pelos humanistas nas suas hermenêuticas e empresas, tal como contemplação, desejo e união, ou ainda receber, dar e retornar, ou ainda como qualidades ligadas a dádiva, ao retorno ou reciprocidade e à gratidão unitiva.

E como os Anjos são seres de grande amor e sabedoria, e infelizmente bastante pouco conhecidos embora por vezes explorados ou mistificados, abordaremos um pequeno extracto piciano angélico, através do que ele selecionou para ser discutido ou dialogado em 1487, do pensamento teológico de Egidio Romano (ou de Roma, 1243-1316),  um místico dos eremitas da Ordem dos Agostinhos, discípulo de S. Tomás de Aquino e autor tanto de teses condenadas como de livros muito famosos e lidos sobre a política segundo a moral e ética religiosa, e que foi representado numa bela capitular  do seu livro sobre o governo dos príncipes.

Eis então da sua famosa obra 900  Teses ou as Conclusiones philosophicae, cabalasticae et theologicae, publicada em 1486, em Roma, e que de um convite  do conde da Concórdia aos sábios da Cristandade para um debate eclético das proposições dialécticas, morais, física, matemáticas, metafísicas, teológicas, mágicas, cabalistas, sob a égide papal, se saldou antes pela sua condenação e excomunhão,  e do capítulo inicial consagrado às doutrinas dos filósofos e teólogos latinos, Alberto Magno, Tomas de Aquino, Henrique de Gante, João Escoto, Egidio Romano e Francisco de Meyronnes e mais especificamente à de Egidio Romano e das  suas onze teses ou proposições a minha selecção de cinco delas: 

3. Deus sub ratione glorificatoris est subjectum in Theologia
Deus sob o aspecto (ou a razão de ser o) glorificador (o
u exaltador) é o sujeito na Teologia.

Comentário: Saibamos relacionar-nos psico-espiritualmente neste sentido, pois glória, doxa, é luz, e assim nas nossas orações e meditações elevemo-nos no corpo da glória, na exaltação consciencial da invocação, adoração e comunhão divina. E os Anjos ou espíritos celestiais sendo os que estão mais próximos de tal vivência íntima constante e  podem-nos impulsionar e acompanhar a tal. Bendito seja o Anjo da Guarda, a alegria e a paz estejam nele e em nós.

4 Pater et filius non solum duo spirantes, sed etiam duos spiratores dici possunt.
Pai e o Fil
ho podem ser ditos não só dois expirantes (sopros ou exalações), mas também dois expiradores (sopradores ou emanadores do espírito ou sopro).

Comentário: Contemplarmos na primordialidade eterna Divina, ou arquetipicidade, o acto de exalar o Espírito e logo os espíritos  será um dos sentidos elevados desta misteriosa tese que bem gostaríamos de saber com mais certeza os sentidos  íntimos que Egidio de Roma  e Pico della Mirandola conseguiram alcançar. E certamente haverá outras hermenêuticas mais valiosas...

5. Angeli num fuerunt creati in gratia.
Os Anjos não foram criados (em es
tado de ou) na graça. 

Comentário: Talvez porque podem cair, ou seja, afastarem-se  do amor e do bem, isto é da vontade divina. Tal como os seres humanos que se podem revoltar e agirem violentamente e contra a intuição divina. Mas será que isso significa que não foram criados em Graça, ou bênção comungante com Deus?
Eis uma te
se que provavelmente Pico discordaria, e quereria discutir com outros teólogos, pois o mau uso do livre arbítrio pelos espíritos celestiais ou humanos não quer dizer que eles fossem criados ou emanados sem a Graça Divina mas apenas que podem ficar fora dela.

6.  Ideo angelus est obstinatus et impenitens, quia substracti sunt ei divini impetus speciales.
Portanto o anjo
[caído] é obstinado e impenitente, porque ímpetos (forças) divinos especiais lhe foram subtraídos».

Comentário: Podemos tomar anjos e seres humanos como sinónimos pois as pessoas desligadas da sua Fonte privam-se de forças espirituais e tornam-se mais desequilibradas, desorientadas e violentas, nomeadamente sendo postas em causa e confrontadas com os seus defeitos, abusos e crimes. Ser-se humilde, reconhecer os erros, arrepender-nos, repararmos o mal causado no que for possível, e aprendermos a lição, transformando-nos, melhorando as nossas vibrações e estado consciencial, eis o caminho para não sermos espíritos caídos, para não nos privarmos da Luz divina, ou seja, da sua Graça e Glória possível humanamente em nós.

 7. Superior angelus illuminat inferiorem non quia ei vel objectum presentet luminosum, vel quod in se est unitum illi particulariset et dividat, sed quia inferioris intelectum confortat et fortificat.

O anjo superior ilumina o inferior não porque lhe apresente um objecto luminoso, ou aquilo que está em si unido particularize e divida, mas porque conforta e fortifica o intelecto do inferior.

Comentário: Eis uma operação que realizando-se entre as hierarquias angélicas é-nos sempre  algo misteriosa, mas que podemos intuir numa linha de apoio à capacidade intelectiva e afectiva entre os Anjos e que tem analogias humanas bem evidentes com a intelecção humanas, nomeadamente na relação de mestres e discípulos, com o fortalecimento dos intelectos e corações pelos laços de amizade e de estímulo, de estudo e de discernimento, do amor e da compaixão, em geral  bem longe dos laços hierárquicos que existem, por exemplo, nos Estados, partidos e organizações,  frequentemente baseados  na esperteza e arrogância, no servilismo e medo, na opressão e corrupção, e que estão muito fora da Unidade divina em que espiritualmente podemos respirar e ser e que é tão sentia e afirmada pelos místicos cristãos, hindus e islâmicos.
A ideia da circulação energética e consciencial nas hierarquias angélicas ou nas relações humanas é a ainda a da iniciação por transmissão de forças e compreensões que despertam, iluminam e fortificam o outro, e neste sentido lembremos que a palavra confortare latina não tinha tanto ou apenas o sentido de diminuir o sofrimento ou a dor de alguém, mas de apoiar, de tornar mais forte.

A natureza intelectiva do Anjo sendo a de se conhecer e à sua substância, e à sua fonte Divina, luminosa, amorosa e poderosa e para a qual é atraído, desenvolve-se e realiza-se em tal actividade e  exercendo-a sobre os outros fortifica-os. Donde o valor do relacionamento do Anjo connosco, ou de nós com as ideias, forças e ligações Divinas que se consubstanciam neles. 

Anote-se que a famosa Oratio, que deveria ser pronunciada na abertura da discussão das 900 Proposiones e que só veio a ser impressa, embora já antes correndo em manuscritos, em 1496, com o títulos De Hominis Dignitate, e que tantas edições teve, inclusive entre nós, contém a sua visão subjacente às 900 teses e com algumas partes sobre os Anjos muito belas e valiosas, várias delas eu já as tendo traduzido e comentado:  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2021/11/giovanni-pico-della-mirandola-e-os.html

                                                  
Que os espíritos amigos e mestres,  Anjos e Arcanjos, nos  apoiem ou fortifiquem nas nossas purificações e esforços, orações, meditações e contemplações, para que a Unidade Divina sábia e amorosa circule e resplandeça mais na Humanidade.

2 comentários:

Maria de Fátima Silva disse...

Muitas graças Carissimi Amicum. Pelos belíssimos ensinamentos.

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas, Fátima. Votos de boas inspirações, angélicas mesmo, na sua arte e vida.