Maria, mãe de Jesus e o seu culto dogmatizado, na história de Arte e nos santinhos.
Quem revisita o dogma da Imaculada Conceição na Arte admira a sua beleza mas pode ainda assim considerá-lo uma fantasia conceptual da Igreja, que ecoa a persistente tendência de engrandecer o Cristianismo e Maria, tornada tanto uma intermediária, a par de Jesus, entre a Humanidade e a Divindade, como um modelo idealizado para a jovem mulher cristã.
Embora o mestre Jesus, segundo o que nos chegou pelos Evangelhos, não tenha dado a sua abnegada mãe tanta importância, talvez devido à azáfama da busca e preparação dos que poderiam despertar mais espiritualmente, com a sua morte tragicamente precoce no Gólgota, por ela muito dolorosa e compassivamente sentida, o estatuto da mãe foi elevado e culmina com a proclamada descida ou despertar do Espírito Santo, no qual, segundos os Actos, ela estaria a liderar a assembleia de discípulos orantes e de algum modo a Igreja nascente, algo questionável seja pelo patriarcalismo hebraico ambiental marcante nos primórdios do Cristianismo, seja pelas divisões na igreja de Jerusalém, seja porque no Evangelho segundo S. João tal "Espírito santo" já tivesse sido "transmitido" aos discípulos. De qualquer modo, face às qualidades ou virtudes de Maria e à oração colectiva invocante intensa e seus resultados plenos de dons, a iconografia da cena do mistério do Pentecostes tornar-se-á muito rica na sua pluridimensionalidade e merecerá sempre ser contemplada e sentida à luz de uma visão e hermenêutica, e até caminhar, mais espiritual.
Tal narrativa tornou-se parte do Credo inicial cristão, e quem em 321 no I Concílio de Niceia foi proclamado demasiado externa e majestosamente, provavelmente ainda na expectativa do regresso eminente do Ungido e já Filho único, talvez diminuindo o carácter íntimo e vivencial de fé, adesão e realização do ensinamento de Jesus, ou seja, do ser-se cristão não por crença externa dogmatizada uniforme: «Credo in Deum, Patrem omnipotentem, Creatorem caeli et terrae. Et in Jesum Christum, Filium eius unicum, Dominum nostrum: qui conceptus est de Spiritu Sancto, natus ex Maria Virgine, passus sub Pontio Pilato, crucifíxus, mortuus, et sepultus: descendit ad inferos, tertia die resurrexit a mortuis, ascendit ad caelos, sedet ad dexteram Dei Patris omnipotentis, inde venturus est judicare vivos et mortuos. Credo in Spiritum Sanctum, sanctam Eclesiam catholicam, Sanctorum communionem, remissionem peccatorum carnis resurrectionem, vitam aeternam. Amen.»
Quanto ao ter sido gerada sem pecado, ter sido sempre pura, como afirmaram alguns dos primeiros padres da Igreja e depois as ordens religiosas mais afectivas, como as dos Franciscanos e Agostinianos, embora não plenamente aceite por teólogos como S. Tomás de Aquino e na sua esteira os dominicanos, com o decorrer do tempo, pela devoção de religiosos, pela adesão popular facilmente aberta ao miraculoso e pela erguimento majestoso da Igreja através dos ritos, dogmas e festividades, foi-se celebrando em várias igrejas e assim, já no séc. XV, em 1454, o papa Sisto IV consagrava a festa da Imaculada Conceição no dia 8 de Dezembro no calendário litúrgico. E com os impulsos da devocionalidade ibérica, dos jesuítas, do concílio de Trento e de D. João IV consagrando-a como Rainha e Padroeira de Portugal, em 1854, a 8 de Dezembro, o papa Pio IX por bula instituiu finalmente o dogma da Imaculada Conceição, ou seja, que desde o primeiro instante da sua criação e infusão no corpo estava sem o pecado original, sem mácula, imaculada, explicitando bem e longamente as várias razões históricas, teológicas e de tradição, citando em apoio dois padres da Igreja (S. Irineu e S. Agostinho), vários decretos apostólicos e passos das Escrituras, dos quais alguns versículos algo prefigurativos ou proféticos do Antigo Testamento, tais os Génesis 3:15, 6:9 e 28:12.
Embora se tenha tornado uma possível fonte para a representação da Imaculada Conceição, a bula papal acertadamente não cita ou nomeia o episódio do aparecimento no céu duma "Mulher vestida de Sol, com os pés pousados sobre a Lua e com uma coroa formada por doze estrelas na cabeça", com o filho e o dragão ameaçador, "a antiga serpente, conhecida com o nome de Diabo, ou Satanás, aquele que engana o mundo inteiro. E foi assim lançado para a Terra, mais os seus demónios", do Apocalipse, cap.12, obra fantasiosa de zelotas cristãos, e atribuída falsamente ao discípulo mais querido de Jesus, S. João, pois tanto relata acontecimentos posteriores à sua vida, como pouco tem de afinidade com o Logos e Amor do Evangelho segundo S. João.
Não é nada fácil saber o que pode significar de mais acertado a ideia narrada no livro de Génesis dum "pecado original", seja do ser humano ou, como alguns imaginaram, de um espírito celestial adversário que se teria revoltado e mais tarde possuído a serpente, o ser na terra mais inteligente ou subtil, quando o Antigo Testamento de que faz parte o Génesis, de longa formação, foi fixado apenas já no V. a. C., ou mesmo 400 a. C., e é em parte uma manta de retalhos de histórias, tradições e crenças de vários povos do Médio Oriente, em parte tecida para enaltecer e mitificar o povo de Israel e o seu Deus Jehovah, e ao qual infelizmente o Cristianismo de S. Paulo e dos papas e padres da Igreja nascente, mas não provavelmente de Jesus e do seu Pai, acabou por incluir na Bíblia do Cristianismo, composta do Antigo Testamento, da Lei de Moisés já ultrapassada, e do que ficou dos ensinamentos do Logos e espírito libertador de Jesus, num Novo Testamento, a que se acrescentou, alem das Cartas dos Apóstolos, a maioria fidedignas, o fantasioso Apocalipse.
De qualquer modo, a ideia que o ser humano ao nascer é inocente, puro ou imaculado do mal era bem razoável e justificável (em muitos seres e em especial) em Maria, a mãe do Mestre que nem sequer bom queria que o chamassem, e que a breve trecho a Deus foi erguido e identificado, pelo que, embora houvesse alguma oposição, a devoção já de longa data existente cresceu, com muitas igrejas, capelas, confrarias e litanias cultuando-a, exaltando-a.
A oração que o papa Pio X endereçou à Virgem na ocasião da proclamação do dogma em 1854 e que depois circulou em publicações e santinhos (tal o da imagem anterior, francês, no reverso), rezava assim: «Virgem muito santa, que agradaste ao Senhor e vos tornaste sua Mãe, Virgem Imaculada no vosso corpo e no vosso amor, por graça olhai com benevolência os infelizes que imploram a vossa poderosa protecção. [A continuação é bem interessante no modo como fala miticamente da serpente:]
A serpente infernal, contra a qual foi lançada a primeira maldição, continua, infelizmente! a combater e a tentar os pobres filhos de Eva. Ah! vós, ó nossa Mãe bendita, nossa Rainha e nossa Advogada, vós que esmagaste a cabeça do inimigo desde o primeiro momento da vossa Concepção, acolhei as nossas orações e - nós vos conjuramos, unidos a vós num só coração, - apresentai-as [orações] diante do trono de Deus, a fim de que nunca nos deixemos prender nas emboscadas que nos são postas, mas que cheguemos todos ao porto da salvação, e que no meio de tantos perigos, a Igreja e a sociedade cristã cantem ainda uma vez mais o hino da libertação, da vitória e da paz! Assim seja! (300 dias de indulgência, se recitado uma vez por dia)»
A deusa Diana como personificação da luz na noite, por Anton Raphael Mengs. |
Tanto mais que a oração Avé Maria, formada a 1ª metade de dois extractos da anunciação do anjo-arcanjo Gabriel a Maria, subtil fala mesmo assim "preservada" pelos redactores do Evangelho segundo S. Lucas e a 2ª metade de tardia origem popular (pois Jesus nem a ele quis que se rezasse) acrescentada (como também o "Jesus" no final da primeira parte) nos séculos XV-XVI, sendo confirmada pelo papa Pio V em 1568, se foi tornando uma devoção muito generalizada, uma oração agradável e fácil de decorar e recitar, e com o terço de se socializar, constituindo uma invocação feminina e maternal complementar ao Pai Nosso clássico e ensinado por Jesus, cremos que mais ou menos com as palavras que quase todos conhecem e muitos ainda pronunciam, e que certamente, se bem meditada e assumida pessoalmente, é uma valiosa oração, sobretudo se depois de recitada é seguida por minutos de silêncio interiorizante e unificador.
Destes modos, e sobretudo por fontes populares locais, o culto a Maria foi gerando quase infinitas evocações, nomeadamente nas Nossas Senhoras disto e daquilo, deste e daquele lugar, com esta ou aquela função e oração, algumas sendo adoradíssimas em estátuas, ora misteriosas nas suas descobertas em árvores ou grutas, ora peregrinas nas suas andanças e andores, mas quase sempre enternecedoras e miraculosas, e logo buscadas, peregrinadas por milhares e milhões de crentes e aflitos, nomeadamente nos dias santos, festivos e "abençoados" feriados, gerando nos campos, aldeias e cidades grandes devoções, procissões, romarias, festejos, alegrias, fraternidade e obras de arte, mais ou menos efémeras....
Se museus, igrejas, conventos e capelas e oratórios possuem imagens marianas, e não só, belíssimas, com o desenvolvimento da tipografia, as gravuras e registos foram crescendo e passando ao público por igrejas, confrarias, lojas e vendedores ambulantes, sendo já do século XIX a grande explosão democrática pela impressão litográfica de milhares e milhares de santinhos, que fizeram as delícias estéticas e devocionais de milhões de crentes e crianças, para além dos artistas que os conceberam e executaram e as pessoas que os disponibilizavam.
Embora bela e majestosa a iconografia habitual do dogma da Imaculada Concepção, varia pouco e a Nossa Senhora da Conceicão será apresentada graciosa e fina, de mãos juntas no peito em oração, flutuando com as nuvens e os anjos, pousada sobre a Lua, numa simbólica que pode ser interpretada de várias maneiras, tal a Lua alva da virgindade toda potente de imaginação, de sensibilidade, de sexualidade, de fertilidade e pisando a Serpente, tentadora de Eva no Paraíso mas vencida pela Ave Maria, e assim na batalha da vida a invocação dela seria bem útil, tal como a oração do Papa em 1854 e depois muitos santinhos lembravam em rezas mais ou menos felizes ou curiosas na sua ingenuidade.
O artista da imagem reproduzida em cima acrescentou um pormenor significativo e invulgar: um anjo leva uma braçada de corações vermelhos, ardentes de amor e de aspiração seja a Maria, ou à pureza, ou à Divindade Feminina, ou total. É um movimento de dádiva, de consagração, de transmutação ou aperfeiçoamento, algo que todos nós podemos realizar em actos ou orações e assim o Princípio Feminino Primordial e Puro e alma nossa, intensificar e mais consciencializar.
Também a coroa ou halo de estrelas que rodeia os seus cabelos soltos, mais do que seguir o visionarismo apocalíptico da Mulher no Céu, indicará o intensificar de qualidades, o despertar de uma maior clarividência espiritual, a qual, como auto-consciência e pela atenção e lucidez, proporciona o suavizar e harmonizar as cores e vibrações de pensamentos, sentimentos e tendências na nossa auréola e alma mais religada à estrela do Espírito.
Por tudo isto a contemplação de imagens das Imaculadas Donas, do "Eterno Feminino que nos atrai", ou as orações e meditações para tal dimensão divina, são setas ardentes para o céu, para o mundo espiritual, para a Divindade e dela descem as graças, os raios de luz e de força, as quietações, as inspirações, as visões, os estados unitivos.
Felizes os que conseguem gostar, amar e até ver
interiormente, Maria, a Mãe Divina, a Grande Deusa, a Shakti, a Divindade Feminina derramar as suas bênçãos, ou
então apenas senti-las, acolhê-las internamente e, agradecendo,
frutificá-las, tal como as três Graças simbolizam.
Cada santinho é pois um ícone religioso que está diante de nós, um portal que se abre internamente e que pode gerar efeitos na nossa alma poderosos e duradouros. E hoje, além dos santinhos em papel antigos ou modernos que possamos ter, com a facilidade de reprodução de imagens digitalmente, todos deveremos escolher as que mais nos tocam e contemplá-las de quando em quando no computador ou em impressões que façamos.
E assim partilho-os para as poucas pessoas que leem com regularidade este blogue, num dos dias de culto feminino do ciclo anual, sagrado desde os tempos de Diana das florestas e opções aos de Maria e as santas ou sábias mulheres e que, ao celebrarmos, com torchas ou velas, orações ou contemplações, devia permitir-nos não ficarmos só nos véus ou identificações marianas mas invocar e sentir a Divindade Feminina Primordial, a Mãe Divina, a Grande Deusa, Maha shakti. Que Ela nos abençoe, que ela esteja presente subtilmente em nós!
A Deusa em Deus é a individualização feminina primeira e pura na matéria da manifestação ou emanação-criação nascente. Sobre as águas ou energias informes ou caóticas na sua génese bruta, ergue-se a Divindade Feminina primordial arquétipa, espelhada ou algo avatarizada por Maria, Ísis, Diana, Fatima al-Zahra, Hagia Sophia, santa Sabedoria e, acima dela, abrem-se os planos coloridos e infinitos do Amor e da Sabedoria a que devemos aspirar... Uma poderosa imagem para se contemplar mais, tal como a que se segue...
Maria, Maha Shakti na Índia, ou apenas Ma, a Imaculada ou Nossa Dona receptiva, pela alma que a ela aspira com ardente amor pode ser avistada ao longe na visão telescópica, ou interiormente sentida na gruta do coração, seja como oceano energético seja como Deusa e Princípio Feminino, a Deusa tanto universal como na intimidade pessoal. É a nossa aspiração que vai abrindo a visão aos planos da Mãe Divina, da Mulher Deusa, da Santa Sabedoria, Hagia Sophia, a musa inspiradora e defensora da Verdade e que, qual onda enorme, ergue-se do oceano e nos pode arrebatar e elevar aos seus níveis misteriosos e distantes, elevados, profundos e íntimos.
Possa a Mãe Divina, a Grande Deusa, a Ave Maria, a santa Sabedoria, a Beleza Primordial e sem mácula brilhar mais nos céus e nas almas e em nós permanecer e, como a nossa Fonte e Natureza mais profunda e original, derramar seus raios e influxos, tocar-nos, banhar-nos, purificar-nos, inspirar-nos, pelo interior, cada vez mais frequentemente...
Olisipo, Madragoa, 15 de Agosto de 2023, dia do mítico arrebatamento, elevação ou Assumpção de Maria...
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