Maria Veleda foi uma notável activista dos direitos das mulheres, crianças e pessoas, uma pioneira feminista, republicana, espírita e espiritualista.
De seu nome nascera em Faro a 26-II-1871, o pai sendo animador teatral, e cedo se destacou pela
sensibilidade subtil e a capacidade de aprendizagem, aspirando ora a
ser uma religiosa, pois desde nova "era inclinada à meditação e à contemplação", ora a professora, acabando por ser professora primária, escritora e dramaturga para crianças, conferencista e escritora feminista, republicana e espiritualista. Adotou aos 20 anos uma criança de 14 meses, o Luís Frederico, a quem a mãe, sua amiga morrera, tal como fizera Antero Quental com as duas filhas do seu amigo Germano Meireles, e em 1891 gerou um filho natural, com o poeta algarvio Cândido Guerreiro, mas com quem não quis casar por sentir que ele não a amava com o amor recíproco. Deste filho, Cândido Guerreiro Xavier da Franca, que cedo a acompanhou na sua missão espiritualista, tal como do adoptivo, veio a ter descendência até aos nossos dias.
Destacou-se ainda no tempo da Monarquia pela sua dedicação à causa da justiça, educação, livre pensamento e libertação das mulheres da sujeição à Igreja Católica e ao patriarcalismo reinantes, nomeadamente quanto à proibição de votarem.
Chegada a Lisboa em 1896, começou em 1906 a dar aulas para crianças no Centro Escolar Republicano Afonso Costa e fundou depois um curso nocturno para ensino da leitura às mulheres. Sendo uma entusiasta da República, participou em várias actividades, polemizou em defesa do feminismo ou da igualdade dos direitos dos homens e mulheres e, convivendo com grandes vultos seus correligionários, entrou em 1907 na Maçonaria, iniciada com o nome de Angústias pelo grão-mestre Sebastião de Magalhães Lima, irmão do notável discípulo de Antero de Quental e de Tolstoi, Jaime de Magalhães de Lima, a quem já dedicamos alguns textos neste blogue. Em 1908 entrou como sócia fundadora na Fundação da Liga das Republicanas Portuguesas, nascida do entendimento entre Ana de Castro Osório e António José de Almeida, da qual foi uma das mas notáveis activistas, como podemos ver na imagem seguinte, quando em Janeiro 1912, cerca de 250 mulheres da Liga entregaram no Parlamento a Alexandre Braga um texto de agradecimento ao projecto-lei por ele elaborado dos Direitos da Mulher, o qual foi lido por Maria Veleda:
Em 1909 publicou A Conquista, Discursos e Conferências, prefaciado por António José de Almeida, e dedicado a Ana Castro Osório (1872-1935) e Fernão Boto Machado (1865-1924), dois companheiros e inspiradores, contendo onze intervenções suas, das quais seis são conferências sobre a mulheres e o feminismo, e as restantes sobre a laicização do ensino, proletariado, educação, registo civil e imposto do consumo.
Na mesma época participou das principais lutas pelos direitos das mulheres, nomeadamente na Liga Feminina Portuguesa, mas mesmo depois de instaurada a República ainda sentiu, com desilusão conservar-se o patriarcalismo ou machismo nos dirigentes republicanos que não quiseram dar o direito de sufrágio às mulheres, decisão algo compreensível na mente dos republicanos, já que a maior parte do eleitorado feminino estaria influenciado pelo clero e o catolicismo.
Será já após uma doença grave e a trágica "noite sangrenta" de 19 para 20 de Outubro de 1921, quando foram assassinados no Arsenal da Marinha, pela Guarda Nacional Republicana, uma série de notáveis políticos republicanos, tais como António Granjo, Machado Santos, José Carlos da Maia, que o seu desgosto atinge o ponto de não retorno, abandonando o activismo político republicano.
Como já se interessava pela espiritualidade (desde sempre, dirá mais tarde), e fundara em 1919 a Revista mensal de propaganda sociológica e das sciências psíquicas A Asa, da qual saíram 12 números (com poemas de Bocage, Antero, Teixeira de Pascoaes e Camilo Pessanha), com o seu filho Cândido a secretariá-la (e a escrever textos valiosos), e que era órgão do Centro de Propaganda das Sciências Psíquicas LUZ E AMOR, e em 1921 a revista O Futuro, pode dedicar-se com mais tempo à demanda do conhecimento e da verdade dos níveis psíquicos subtis e misteriosos da vida, enveredando bastante pelo estudo e a meditação, o controle do pensamento e o espiritismo, onde foi um membro activo e uma doutrinadora muito escutada e aplaudida, embora não se limitando só a tal e criticando os erros seja de espíritas seja de teósofos.
É de 1923 o seu livro principal, uma novela espiritualista, a Casa Assombrada, num in-8º de 230 páginas, co-edição da Couto Martins e da Empreza «o Futuro», co-fundada por ela e sediada na Rua da Prata, 178, 2º, quando a Baixa, o Chiado e o Bairro Alto tinham centenas de livrarias e editoras, tipografias e sedes de revistas e jornais, tudo gerando boas e belas obras, em grande liberdade de pensamento, convivialidade fraterna e aspirações e sonhos semi-utópicos. Uns bons tempos, impossíveis de retornar nos infrahumanismo actuais.
A sua colaboração, por exemplo, na revista espírita Luz e Caridade será de 1920 até quase ao fim da sua vida, com bastantes textos valiosos de indagação psíquica. Também no Centro Espiritualista Luz e Amor, que fundara, durante anos brilhou pelo estilo vibrante e os conteúdos luminosos transmitidos; todavia, divergências e polémicas com outros espíritas, nomeadamente o médico António Freire, fizeram-na abandonar o Centro e mesmo a Fundação Espírita, do qual tinha sido uma das fundadoras.
O seu percurso tão rico por várias associações, centros e revistas espíritas e espiritualistas, tais a A Asa, Vanguarda Espírita, Luz e Caridade, Mensageiro Espírita, Ecos do Além, Estudos Psíquicos (de Isidoro Duarte dos Santos e da Dona Raquel, à rua do Salitre e que ainda conheci), Revista do Espiritismo e a Revista de Metapsicologia, além de artigos em muitas outras pedagógicas, sociológicas, políticas, etnográficas e gerais (tais como A Pátria, A Madrugada, A Mulher e a Criança, Ave Azul, Diário Ilustrado, O Repórter, Vanguarda, República, O Século, Tradição), ,merecem estudos que ainda não foram feitos, bem como uma antologia, mas, para concluirmos a pequena apresentação desta pioneira dos direitos femininos e das investigações psíquicas, e prometemos brevemente transcrever alguns dos seus contributos em revistas, nomeadamente n' A Asa, de 1919, e cingir-nos-emos agora a um breve resumo do seu romance ou novela espiritualista:
A Casa Assombrada é certamente uma pioneira novela espiritual,
esotérica, espírita, com bastantes informações sobre o que pode ser
o além, as almas, as vidas humanas com as suas paixões e sofrimentos, qualidades e defeitos, num contexto de ordem cósmica e de evolução na pluridimensionalidade de planos de vivência e de poderes psíquicos.
Bem
construída no enredo, prendendo os leitores ao fio de narrativas que
entretecem passado e presente terrenos e vida já nos mundos do além, com uma parte
significativa da obra como que escrita sob a influência de uma alma já
desincarnada, apenas em poucos aspectos a poderemos considerar um pouco
antiquada no seu moralismo, ou demasiado irreal no seu utopismo,
sobretudo chegados que estamos à terceira década do séc. XXI e pouco se vê
de possibilidades de concretização dos sonhos de fraternidade mais justa, esclarecida e plena, como tanto se sonhou nos finais dos séc. XIX e princípios do séc. XX, pois antes observamos uma certa derrocada da civilização ocidental, em grande parte devida ao egoísmo norte-americano e à inepta direcção da União Europeia.
A obra assenta numa paixão fatal entre a jovem tão sensível quão delicada Maria Helena e um estrangeiro viajante Gebrano, a qual acaba por destroçar os pais, que não aprovavam tal relação, e a própria casa da família, pois com a fuga com ele tudo soçobra e a mansão fica amaldiçoada e assombrada, como a impressiva capa da obra bem retrata. Vai ser uma amiga íntima de Maria Helena, a Maria Guilhermina, quem narra o começo feliz da história e recolhe, algo mediunicamente, o testemunho vindo já do além de Maria Helena.
Quais são os aspectos mais valiosos doutrinariamente, mais ou menos acertados, já que Maria Veleda tanto recorre à sua intuição como ao que lera, meditara, ouvira ou eventualmente assistira em alguma sessão de Espiritismo?
Quais
seriam as intenções de Maria Veleda ao escrever este romance tão
trágico, acerca do relacionamento obsessivo entre Genabro e aquela
que ele domina por completo, a jovem Helena, e que arrasta pelas
veredas da violência, do roubo, do mal?
Talvez, para além de querer chamar a atenção para o facto de que os seres podem
facilmente manipular os outros, ou de que o amor não é algo que
deva ser confundido com atração e subjugação, se sinta que Maria
Veleda quer também transmitir a sua cosmovisão, a qual assenta numa
compreensão do ser humano como corpo, alma e espírito, e que, embora dotado do
livre arbítrio, está sujeito a influências perturbadoras, visíveis e invisíveis e que podem vir até de vivências de outras vidas.
Estes
aspectos, ainda hoje bem misteriosos, são para Maria Veleda uma evidência e o
que se chama destino será apenas o resultado de relacionamentos e
actos feitos numa vida passada. Assim as quatro personagens principais
da novela já se conheceram noutra vida e irão encontrar-se numa
futura, cada uma recebendo ou colhendo o que fez ou semeou nesta, conforme na Índia se designa pela princípio do Karma.
Embora a alma e figura de Genabro se torne repulsiva, persistindo no mal mesmo depois de morta física, enquanto fantasma, também ele acabará por se encaminhar para a Luz graças ao Amor e compaixão que Maria Helena sentira e lhe dedicara e assim, embora a história seja trágica e gere uma certa indignação ou revolta contra ele, acabamos por conseguir ler o livro atravessando situações alegres e luminosas e peripécias emocionantes de maldades e que, de algum modo, cremos, nos impulsionarão a não nos deixarmos cair nos mesmos erros de satisfação dos nossos desejos sem ética e sem respeito pelos outros, intensificando antes a nossa empatia com o Bem e a amizade desinteressada e a compaixão com os outros, a fim de que a humanidade se liberte mais da ignorância e do egoísmo e deixe de estar tão assombrada, ou regida pela sombra...
Que ensinamentos mais valiosos e belos transmitiu ela que possamos transcrever, pelo seu valor perene?
Eis dois, da página 50 e seguintes, reflectindo acerca da inspiração bem encorajante que ainda jovem, e estando doente e de cama, recebera subtilmente do mundo celestial, impulsionando-a a continuar no seu caminho de fazer bem: «Ah, como eu desejaria poder contemplar o ente angélico que me dirigia estas palavras de piedade e de consolação! E, como se o meu anelo fosse compreendido apenas acabara de ser formulado, eu vi descer do azul uma forma vaporosa, quase etérea, impalpável e luminosa. E a voz, a mesma voz de carícia, a que nenhuma melodia da terra pode comparar-se - nem o canto do rouxinol entre as balseiras, nem o suspirar da brisa arrancando vibrações a uma harpa eólia - murmurou ainda: «-Chamaste-me! Aqui me tens" .
Só nesse momento pude entrever o rosto mais formoso que a fantasia de um pintor-poeta poderia visionar. Foi apenas o tempo suficiente para que ele se fixasse, indelével, na câmara escura da minha retentiva. Ah! Foi como se o céu se abrisse e fechasse no mesmo instante. Mas eu tinha-o visto, para toda a eternidade, ao meu anjo protector.»
Que os anjos, guias e mestres nos possam inspirar e guiar!
O seguinte valioso: «Cada pensamento que se desprende do nosso cérebro segundo a sua intensidade, é uma vida nova a que damos origem. Alegres e puros, eles criam em volta de nós, uma atmosfera tranquila, atraindo pensamentos generosos, que vêm inspirar-nos e dar-nos alento. Mas se forem tumultuários e desencontrados esses pensamentos, eles se reunirão a outros, que vindo do exterior, se apoderarão da nossa alma, sujeitando-a ao despotismo do seu querer.
Quanto bem podem praticar as pessoas que sabem dominar-se, triunfar do sofrimento e desprender do seu ego [ou persona] feixes de luz puríssima, que vão iluminar as almas.
Eu via-me no meio das minhas filhas [alunas na escola]; e toda a alegria que delas irradiava vinha confundir com o meu desejo de tornar-me também alegre, como primeira condição para ser-lhes verdadeiramente útil.»
Irradiemos, pelos nossos actos, palavras, pensamentos e aspirações, "feixes de luz puríssima, que vão iluminar as almas"!
Bibliografia: A Casa Assombrada, 1923; revistas espíritas e psíquicas; e Maria Veleda (1871-1955) de Natividade Monteiro, 2013. Uma neta de Maria Veleda mantém uma valiosa página no Facebook com o seu nome e que pude consultar já no fim deste texto. Muita luz e amor na sua alma e na sua família! Lux Dei!
4 comentários:
Excelente ensaio sobre a minha bisavó Maria Veleda, ao qual apenas hoje tive acesso.
Grata pela atenção que dá a uma Mulher que hoje permanece na sombra.
Graças muitas pela apreciação generosa. Verdade: a Maria Veleda bem merece ser mais conhecida, lida e meditada. Espero contribuir para isso, e certamente dialogaremos um dia destes sobre a sua tão notável avó.
Que belo trabalho Pedro. Que Senhora tão inspiradora! Gostei imenso da forma como ela escreve e o quanto nos faz reflectir..
Simplesmente maravilhoso!
Muito agradecida por tão interessante trabalho e partilha.
Graças muitas pela sua apreciação generosa e ampla. Votos de inspirações e realizações bem luminosas!
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