Peary Chand Mittra, nascido em 22 de Julho de 1814, em Calcuta, foi um dos líderes do movimento do "Renascimento Bengali", já que era um activista social, pedagogo, espírita, esoterista e director da biblioteca pública de Calcutta, colaborador em dezenas de organizações (educação e literatura, agricultura e protecção dos animais), jornais e revistas, algumas delas inglesas, podendo considerar-se um indiano pioneiro do movimento de comparativismo religioso, ocultista e espiritualista.
Não admira que o coronel H. S. Ocott em 5 de Junho de 1877 o convidasse a entrar na recém fundada Sociedade Teosófica, remetendo-lhe mesmo antes de ele anuir o diploma de 135º membro, e logo, dois anos depois, quando se fundou o primeiro ramo da sociedade em Bengala fosse ele eleito o Presidente. Fazia parte da política internacional da nascente Sociedade Teosófica atrair personalidades importantes noutros países e sobretudo na Índia, tida ou vista pelos teosofistas como a nova pátria da espiritualidade.
Peary Chanda Mittra era em verdade por muitas razões a pessoa ideal para ajudar o lançamento da Sociedade Teosófica na capital do Raj, ou vice-reinado de Inglaterra, pois dominava bem o inglês, era de família conhecida e abastada, fora educado no Colégio Hindu sendo mesmo discípulo do famoso luso-descendente Henry Derozio, convivia e associara-se a outros jovens escritores progressistas, escrevia razoavelmente num estilo realista e coloquial, era um deputado bibliotecário, e um espiritualista tanto espírita como ocultista, tendo mesmo os seus dons psíquicos. E era já famoso pela sua primeira novela, de 1857, Alaler Gharer Dulal (A Criança Mimada) que tivera grande sucesso, hoje considerada marcante no renascimento literário da língua bengali, e por ser um reconhecido espiritualista graças às colaborações que enviava para revistas ocultistas e espíritas estrangeiras, em especial a Banner of Light, de Boston, de 1857 a 1907 e The Spiritualist, londrina, que se publicou de 1869 a 1882. E posteriormente, para a revista The Theosophist, onde sai em 1879 um artigo Inner God que teve grande sucesso no meio espiritual e teosófico, ainda que hoje se observem melhor algumas limitações provenientes da generalização de correspondências entre conceitos e designações, por vezes de diferentes tradições, e que são muito mais polisémicos e logo únicos cada um em si, algo em que Helena P. Blavatsky (1831-1891) também incorreu constantemente, como antes dela Eliphas Levi (1810-1875), ou depois Papus (1865-1916) e sucessivos ocultistas e esoteristas, chegando mesmo aos nossos dias com todo o tipo de correspondências e tabelas superficiais...
A carta do coronel Henry Olcott (1832-1907), hoje nos vetustos arquivos da Sociedade Teosófica em Adhyar, a que tive acesso através do valioso artigo on-line sobre Chand Mittra por Mriganka Mukhopadhyay, que se recomenda, mostra bem a apreciação que ele tinha de Peary C. Mittra:
«O seu nome, respeitado Senhor, é bem conhecido entre todos os espíritas inteligentes da América. Pessoalmente, ouvi falar muito de si e dos seus estudos através da Sra. Emma H. Britten (membro do Conselho da nossa Sociedade) e do Sr. J. M. Peebles. Também li o que foi contribuído pela sua pena para o London Spiritualist. Os seus pontos de vista sobre os Estados Espirituais [...] coincidem tanto com os da nossa venerada colega e professora Mme. H.P. Blavatsky, que o Conselho me instruiu para solicitar respeitosamente o privilégio de inscrever o seu nome entre os nossos Sócios Correspondentes [...]. Vive tão longe daqui, e a troca de cartas requer tanto tempo, que me atrevo a transmitir o seu Diploma sem esperar notícias suas; ao mesmo tempo, manifesto a esperança de que possa agradar-lhe conservá-lo»
E para quem questionava em 1882 que fosse Peary Chand Mitra o eleito para Presidente do ramo em Calcuta, que então se fundava sendo ele um espírita, pois havia teósofos que se distanciavam de tais práticas, aí estava a mulher de Henry S. Olcott e que se distinguira nos seus primeiros tempos como médium, H. P. Blavatsky a justificar a razão da escolha: «Ele é certamente o Teosofista mais espiritual e o Espiritualista mais teosófico que nós até agora encontramos»
Fora com a morte da mulher, de quem teve quatro filhos, em 1860, que Chand Mittra começara a dedicar-se mais intensamente à investigação psíquica e espiritual, nomeadamente da sobrevivência e imortalidade de alma, e até deixar a Terra participou e liderou muitas grupos e revistas, convivendo com maçónicos, espíritas, teósofos, magnetizadores ou mesmeristas, nomeadamente o médico James Esdailes, que chegou a fundar um hospital nas linhas do magnetismo, sugestão e hipnose de Anton Mesmer; e homeopatas, tal como Thiennette de Bérigny (1823–1868), um espírita activo organizando sessões em sua casa, e onde alguns dons de Chand Mittra vieram ao de cima. Até à fundação do ramo da Sociedade Teosófica em 1879, foi no espiritismo, então denominado e em língua inglesa, spiritualists que passaram muito vultos notáveis, tal como acontecia no Ocidente onde grandes figuras da ciência (Crookes, Lombroso Flammarion) e da literatura (de Balzac a Victor Hugo) aderiram e dinamizaram o começo o espiritismo, face à onda avassalante de materialismo e positivismo que se erguera nas últimas décadas, e também pela pouca capacidade da Igreja Católica de investigar os fenómenos psíquicos e do além.
E talvez face à fundação do ramo teosófico, um ano depois, em 30 de Maio de 1880 fundou-se a United Association of Spiritualists, a primeira associação espírita na Índia. É escusado dizer que nela se encontraram vários espíritas que eram teósofos, e vice-versa (tais o irmão mais novo de Rabindranath Tagore, e Mohini Mohun Chatterji), e que a estas duas agremiações, a teosófica e a espírita (bastante internacionais, pois alguns ingleses e norte-americanos foram então atraídos para Calcuta, tais J. M. Peebles, Alexander Calter e William Eglinton), se acrescentava o fundo milenar do yoga, do ocultismo, do esoterismo, do Vedanta indianos que davam a estas demandas e realizações em curso uma profundidade única, bem visível nos ensaios de Chand Mittra, um exemplo paradigmático dela.
Morreu contudo relativamente cedo, aos 69 anos, mas a sua memória permaneceu comemorada anualmente e os seus textos, artigos, romances e ensaios espirituais gozaram do favor público por muitos anos.
A Fortuna levou-me um dia de 1995 a encontrar nos alfarrabistas de Calcutta um exemplar do seu livro Spiritual Stray Leaves, Folhas soltas Espirituais, impresso em 1879, permitindo-mr discernir o seu valor e ler e anotar algumas
partes, sendo exactamente este livro o único de Peary Chand Mittra disponível on line no Archive da Internet.
O opúsculo seguinte na sua produção, Stray Thoughts on Spiritualism, escrito em 1880, encontra-se também em rede digital, e com o seu autógrafo. Nele, Chand Mittra valoriza as actividades espíritas em pequenos grupos harmoniosos e devocionais que se abram às inspirações do mundo dos espíritos e desenvolve ensinamentos como o de que esta vida deve ser feita a pensar na outra, e que estamos a desenvolver um corpo subtil de amor e inteligência, que provêm da alma, e que o mais fundamental é a melhoria, obtida a partir da alma e não da mente cerebral, da nossa concepção de Deus, ou religação, e neste objectivo e meta final poderemos dizer que está de acordo com mestres como Bô Yin Râ e o gurudev Ranade.
Como algumas páginas são valiosas e desafiantes e para homenageá-lo no seu 209º aniversário, 22 de Julho, gravei das Folhas Soltas Espirituais para o meu canal no youtube a tradução de artigo God in the Soul, Deus na Alma, que pode ouvir através da ligação final deste texto e
transcreverei agora algumas outros passos com mais sabedoria ou
interesse, e onde há algumas linhas muito ricas para quem as cogitar,
que sublinharei até...
As Folhas Soltas Espirituais é um in-8º de VIII-194 páginas e contém oito textos iniciais pequenos, A
Psicologia dos Árias, A Psicologia dos Budistas, Deus na Alma, A Terra
do Espírito, O Estado Espiritual, Revelações da Alma, A Alma, Ocultismo e
Espiritualismo, a que se segue, Avedi ou o Espiritualista, um conto espiritual, longo, instrutivo, emocionante, de cinquenta e três páginas. Depois vêm de novo ensaios breves: A Progressão da Alma, a Revelação da Alma na Índia, e um mais extenso de cinquenta e cinco páginas, A Cultura da Mulheres Hindus nos Tempos Antigos, concluindo com O Humano e Espiritual. Todos os treze artigos já tinham sido publicados em revistas, e Mriganka Mukhopadhyay, no seu valioso texto online Occult’s First Foot Soldier in Bengal: Peary
Chand Mittra and the Early Theosophical
Movement, confessa ter descoberto ainda mais sete artigos.
Peary
Chand Mittra manifesta nestes textos o seu bom conhecimento dos textos
sagrados indianos e simultaneamente a sua inserção seja nas práticas
tradicionais do Yoga, como nas que estavam numa vivificação
grande: o mesmerismo, magnetismo, hipnose, Espiritismo e a Teosofia,
embora seja discreto na partilha directa das suas experiências, tanto
mais que recorre a diálogos ficcionais e ambientes naturais, por ele
bem valorizados, já que para si e segundo a sabedoria védica, patenteiam
Deus como a ilimitada fonte de amor e sabedoria.
Mas se no texto que lemos e gravamos, Deus na Alma, ele diz apenas a dado momento que «qualquer pessoa verdadeiramente ansiosa por ser espiritual, é assistida por espíritos amigos, um facto que eu conheço por experiência pessoal», e no seguinte A Terra do Espírito confessa não defender a transmigração na Terra, mas apenas a posterior evolução nos mundos ou terras espirituais, será no artigo Ocultismo e Espiritualismo que abrirá o seu jogo de cartas cosmo-espírita-espiritual:« O mundo espiritual é composto de espíritos de diferente força de vontade, mas a sua verdadeira ou real ocupação é espiritualizar os que eles podem elevar. Os meios utilizados não são os mesmos em cada caso. Pode haver manifestações externas em alguns casos o que é um processo iniciador. Eles operam na mente, nas sensações e emoções, para que o ser humano possa mergulhar na serenidade - o primeiro estado psíquico. No meio do trabalho dos espíritos, nós passamos da simpatia ao sonambulismo, do sonambulismo à clarividência, da clarividência ao nirvana. Deste modo os médiuns desenvolvem-se e a comunicação entre os humanos e os espíritos é estabelecida. Por vezes sabemos muito pelo exercício do nosso próprio poder espiritual.. Mas sentimos a influência dos espíritos no nosso corpo e na nossa mente e reconhecemo-los. Nós ouvimos as suas palavras, e descobrimos que elas estão a trabalhar no nosso poder de vontade, para que ele possa ser inteiramente poder da alma.
O que eu afirmei vem de experiência espiritual (real ou) actual. Durante os últimos dezasseis anos, tenho estado associado com espíritos que nunca estão afastados de mim um momento que seja, e não estou a ser espiritualizado por eles, mas falo com eles como falo com os que estão na carne. A minha dívida de gratidão para Deus é infindável por me conceder esta luz, e estou ansioso que o "espiritualismo" seja solenemente admitido. Há muitos pontos que aparentemente não são claros para toda a mente, mas esforçemo-nos por ganhar luz uns dos outros num espírito fraternal.»
Como vemos, bem desafiante, e logo no parágrafo seguinte, que é o final escreve uma frase que se tornou famosa:«Nada me delicia tanto como o ensinamento da filosofia Ária, de que Deus está na alma como a sua luz interna, e que a verdadeira teosofia é estar no estado alma; que ao estarmos iluminados por esta luz nós possamos tornar a nossa existência brilhante, tanto aqui como no depois ou além. Nenhum código particular de ética é necessário; nenhum credo é requerido. A luz interior, se for vista internamente, é a nossa guia e conduzir-nos-á para um amor e sabedoria infinito.»
Realce-se a sua forte valorização da luz interior, excelente, embora perigosa quando dispensa qualquer ética particular, e a "verdadeira teosofia" significar a Sabedoria Divina e não as organizações ou os movimentos teosóficos do final do séc. XIX.
Os textos e diálogos de Chand Mittra permitiram-lhe introduzir as suas ideias, experiências e também
dúvidas, por entre as muitas citações de autores que abordaram os
mistérios da natureza da alma e do espírito, ou das causas das suas
manifestações, e espelham em alguns dos artigos um selectivo e pioneiro comparativismo religioso, nomeadamente entre a Índia e o Egipto,
Grécia, Pérsia, Roma e Cristianismo, e seria interessante saber quais as
suas fontes na rica biblioteca pública de Calcutá, que também consultei nos
seis meses em que estive lá em estudos indianos, em especial com o pundit
Satchitananda Dhar, no Ramakrisna Mission Institute Cultural, em
Golpark que, diga-se de passagem, possui também uma excelente biblioteca de espiritualidade e de tradição indiana que consultei muitos dias e onde proferi uma conferência sobre algumas recepções portuguesas da espiritualidade e civilização indiana, e a sua consequente partilha em diálogos, livros, revistas, movimentos, desde alguns missionários e professores de sânscrito até Adeodato Barreto, Tello de Mascarenhas e Agostinho da Silva.
Um último pensamento de Peary, do capítulo ou artigo Soul, Alma: «Na Srimat Bhagavat (V) a distinção entre a mente e a alma, é a seguinte: A mente está acordada, adormecida ou sonha. A alma é a testemunha, não tendo [além desse ] outro estado [consciencial] de si própria,» nisto se afirmando a natureza impassível e inalterável da alma, o que provavelmente só se pode admitir se o nosso conceito de alma estiver a abranger o espírito (atman).
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