quarta-feira, 14 de junho de 2023

Do trato amoroso dos livros imperfeitos: a devoção a S. João Nepomuceno, defensor da boa fama e do sigilo confessional, numa novena do séc. XVIII.

Foram, são e serão milhões e milhões,  os amantes dos Livros ao longo da História da Humanidade, mas nesta fase em que eles  estão por várias razões a ser preteridos  pelas suas imagens digitais, deveremos erguê-los e elogiá-los nas suas qualidades manuseáveis, físicas, sensíveis, assimilativas, retentivas e estéticas pelas quais tanto perseveram como transmitem inesgotável riqueza de informação e de conhecimento, ou ainda de beleza e cura, ambiente e inspiração.

São milhares e milhões os livros escritos sobre os livros, o que eles são e nos podem transmitir. O meu contributo será hoje muito pequeno, apenas observar, partilhar e comentar um  livro que, ao passar pelas minhas mãos com as suas características próprias, mereceu ser investigado e eternizado em si e nas almas dos que nos lerem.

No decorrer do ano da graça de 2023 o livrinho antigo em causa encontra-se num estado que não direi confrangedor mas apenas invulgar na sua incompletude, pois nem capa nem frontispício tem, e começa no fólio 2, com a Dedicatória, a que se segue um Prólogo  ao leitor e depois no fim a obra surge incompleta de novo, ao terminar abruptamente na pág. 192, com a menção de "S. Sebast-"

         

  Contudo, foram-lhe acrescentados aquando da encadernação, em pergaminho e de que resta a lombada e a contracapa, duas folhas bem orladas com: Actos de Fé, Esperança, Caridade, e de Contrição que se devem fazer devotamente antes da Confissão, contendo passagens valiosas da expressão do amor a Deus, e que transcrevo no fim.

Mas que raio de ideia terá passado pela cabeça ou alma do autor deste texto no blogue para valorizar uma obra em tão danificado ou imperfeito estado, pensarão alguns, e a resposta não é de facto vulgar: ao manuseá-lo, ao limpá-lo, observei a quantidade de penugem de que ele se revestira na parte interior das folhas, junto à dobra de junção com a lombada, como se fosse um ninho feito pelo tempo ou, o que eu pensei primeiro, como se o livro, na sua vitalidade e ânsia de ser lido, tivesse feito brotar uma vegetaçãozinha rasteira que se acumulou no interstício de união de uma folha com a outra. Uma metamorfose subtil...

E pareceu-me também que embora tivesse removido tal aparente excrescência, ela não deixava de aparecer numa ou noutra folha. Concluí: há livros com tanta vitalidade, seja pela sua mensagem seja por outras razões subtis, que a árvore que lhes deu origem ou suporte material anima-se no papel e miraculosamente cresce de novo, metamorfoseia-se.

Mas quem conseguirá alguma vez discernir de onde veio este papel, se a obra modesta não ostenta nas páginas qualquer marca de papel visível que indicasse a fábrica de onde proveio?
Neste momento
do contacto com o livro nem sei sequer o seu autor, nem data, nem local de impressão, embora seja fácil adivinhar que foi dado à luz numa tipografia lisboeta no século XVIII, porventura entre 1745 e 1775, balizando-o com a data do famoso terramoto de Lisboa, para podermos ainda interrogar-nos sobre, e quem sabe se um dia no invisível mundo espiritual teremos direito a sabê-lo, quantas tipografias e livrarias foram destruídas no trágico acontecimento, e quantas conseguiram depois renascer das cinzas, da inundação maremótica e dos escombros?
Mas ao lermos a
dedicatória e o prólogo deveremos  receber algum apoio para a pesquisa identificativa e provavelmente nem teremos de ir a qualquer boa biblioteca pública, pois o valioso instrumento da catalogação de muitas das obras nelas existentes se encontra acessível online sob a designação de Porbase.
Contudo, ao digitar
mos na Porbase, Novena Devota S. João Nepomuceno, não encontramos senão uma edição de 1763, e bem mais pequena que esta, pelo que o mistério continuará por algum tempo. Mas transmitamos então algo dela, dada a vitalidade e valor da obrazinha, de 14x9 cm, cerca de 200 páginas, bem poída, manchada e metamorfoseada  pelo uso, o tempo e a devoção.

                                    

Na Dedicatória, escrita como se estivesse a falar com o espírito imortal de S. João Nepomuceno, há uma contextualização valiosa pois a obra é entregue ao santo "pelas mãos do Reverendo Fr. Filipe Camelo de Brito, o qual todo inflamado no vosso amor, e devoção fez com que se expusesse à pública veneração esta vossa miraculosa, e admirável Imagem, que todos veneramos nessa Paroquial igreja de S. Julião."  Por aqui podemos admitir que na folha inicial A, que falta pudesse estar a imagem do santo.
Acrescenta em
seguida o nome de outra alma que «não é menor na devoção, o vosso devoto Fernando António da Costa Barbosa, que com tão ardente zelo de ver a vossa devoção estendida por todo este Reino, e de serem públicas, e manifestas vossas maravilhas mandou abrir estampas da vossa Imagem, e tem feito que os livros da vossa vida, que andavam impressos em diversas línguas, na nossa Portuguesa se vertessem para melhor inteligência dos vossos devotos ».
Ora, e sabemo-
lo pelos registos da Porbase (confirmados depois em Barbosa Machado),  Fernando António da Costa de Barbosa foi o autor da Dedicatória à Rainha Dona Mariana de Áustria na Oração Funebre pelo rei D. João V, recitada pela P. Plácido Nunes, em 11 de Novembro de 1750, e  do Elogio fúnebre do Padre João Baptista Carbone, de 1751. E em 1754 do Elogio Histórico, vida e morte do E. e R. Senhor Cardeal  D. Thomaz de Almeida, Patriarca... Era pois um espiritual, próximo da Rainha muito provavelmente, já que, como veremos no fim, o seu irmão mais velho era Capelão na Corte e Oficial da Secretaria de Estado, além de cavaleiro professo da Ordem de Cristo.
O autor incógnito da dedicatória (e do prólogo) dá ainda graças ao Santo pelo grande sucesso devocional que estão ter com as gravuras do santo e as «línguas de ouro, prata e meta, sendo estas bentas, e tocadas na vossa Santa Imagem com a devoção de as trazerem consigo», assim se revestindo de mais poder inspirador ou protectivo.  Eis-nos numa certa magia, numa linha medieval e gótica, quando a peregrinação às relíquias e locais santos e a fé nos diversos tipos de ícones era muito grande ou intensa.

                                      

No Prólogo, ao leitor, o autor vai narrar um pouco a vida do santo [nascido em 1345 na Boémia e lançado ao rio da ponte Carlos, em Praga, em 1393, por recusar-se a dar à língua quanto à Rainha, que ele confessava e que o Rei "ciumava"], e também a implantação da sua devoção em Portugal, começando por  si: «eu te confesso [leitor], que a primeira vez, que ouvi nomear este Santo, e me mostraram um registo, ou estampa da sua Imagem, que logo senti em meu coração um tal afecto, e amor com uma entranhável devoção, que nunca mais me esqueci deste Santo, ainda que suposto lhe não rezava algumas vezes, nunca dele apartei o pensamento, e desejando eu já há três anos fazer a obra, que agora faço com tenção de a dedicar à sua portentosa Imagem que se venera na ponte de Alcântara» posta por Dona Mariana de Áustria, mulher de D. João V.

Acrescenta que oferece «este Tratado de sua devoção à sua prodigiosa Imagem, que se venera novamente na Paroquial Igreja de São Julião desta Corte, posta pela devoção de um devoto Sacerdote, e exposta à veneração dos devotos no dia do glorioso S. João Evangelista no ano de 1745».
Narrando depois a vinda d
a devoção para Portugal com a rainha Dona Mariana, e a fundação por ela de uma confraria do santo, desde 1730 (data do Sermão da Canonização de S. João Nepomuceno pregado no Real Hospício dos Carmelitas Descalços Alemães, pelo P. Joseph Rodrigues Pereira, impresso em Lisboa, na officina Augustiniana). afirma a sua esperança em que todas as pontes portuguesas e europeias houvesse a  imagem protectora de S. João Nepomuceno, e dá uma informação valiosa bibliográfica, além de orações valiosas de ardente devoção aos dois santos das línguas, S. António e S. João Nepomuceno, de quem recebera já muitos benefícios: «em mil línguas quisera eu converter-me agora só para louvar, e engrandecer a prodigiosa, e bendita língua de São João Nepomuceno; porém todas seriam poucas para explicar as suas maravilhas, mas de alguma sorte me contento, e satisfaço considerando que estes mil livrinhos, que agora saem à luz [uma boa tiragem], e todos os mais que se imprimirem, serão mil, e outras tantas línguas, que publiquem as maravilhas do nosso Santo Nepomuceno, e no fim vão três Suspiros à prodigiosa língua do nosso Santo, que se podem rezar todos os dias para que por sua intercessão alcancemos ter uma boa língua, que não seja maldizente, e não saiba senão louvar a Deus, como fez a língua do nosso Nepomuceno, e a do nosso Português Santo António, e bom será que todos tenhamos uma grande devoção a estas duas benditas línguas tão semelhantes, e parecidas uma com outra». 

Acrescente-se que em 1712 em Lisboa e em 1736 em Roma foram publicados  dois Compêndio da vida de São João Nepomuceno. E em 1746 foram pregados e impressos em Lisboa dois sermões de S. João de Nepomuceno, "glorioso protomártir do sigilo confessional", que não têm todavia o carácter devocional deste livrinho, o 1ºde Joaquim Bernardes, clérigo regular, demonstrando com erudição (com bela e extensa citação do discernimento de um discípulo perturbador, por Pitágoras) e bons raciocínios, que ser-se obrigado a confessar as pessoas envolvidas em pecados é um pecado ainda maior e a adopção de uma doutrina falsa e menos pura, citando mesmo o antigo curioso dito do papa Clemente XI (de 1700-a 1721): "Estou bem com Portugal, porque é um Reino que nunca buliu com o Credo", valorizando ainda bastante o "saber com sobriedade", pois "saber muito não convém" e gera em geral a "faladura" e a "historiola", que só impedem tanto a boa vizinhança como o silêncio interior e a intuição da Verdade. E o 2º sermão do clérigo Filipe de Oliveira, onde narra a vida exemplar do santo, as muitas heresias históricas e como Portugal tem escapado a elas.
Voltando ao livrinho incompleto ou imperfeito, qualidade deles pelo mestre bibliófilo José V. de Pina Martins bem elogiado,  seguem-s
e após a dedicatória e o Prólogo,  as orações da Novena devota, da Semana devota, e algumas particulares, das quais transcreveremos pela sua originalidade, e até sugestão horária, a  Oração a Deus Espírito Santo:
«Oh Santo Es
pírito Divino, que às nove horas descestes sobre a Santíssima Virgem Maria e sobre os Sagrados Apóstolos, em figuras de línguas de fogo, concedei-me, que a minha língua imite a dos vossos Servos São João Nepomuceno, e Santo António, as quais nunca clamaram contra Jesus Cristo, mas sim sempre vos louvaram, e louvarão por todo o sempre. Amen.»

Seguem-se mais algumas orações a Santo António e a S. João Nepomuceno e, por fim, abre-se o capítulo final, a partir da pág. 89, em que se narram os milagres e benefícios que devotos em várias partes do mundo têm recebido do santo que é apresentado como o defensor da honra e boa fama, da pureza contra as tentações e do "sigilo confessional". 
Esta última referência  pode ser contextualizada com a grande luta que se travou entre os sigilistas, defensores nos Religiosos duma vida mais pura e sem vaidades, com disciplina e oração mental e menos contaminada pelo mundo, e muitos religiosos desfrutavam disso, e o Estado que começava no seu absolutismo (ou regalismo) a tentar controlar tais austeras e éticas consciências. A obra é porém muito discreta quanto a esse debate, que foi manipulado e exacerbado, censurado e liquidado, em 1769, pelo Marquês de Pombal, com o auxílio da Real Mesa Censória e levemente duma Santa Inquisição, já totalmente controlada e que chegara mesmo a estrangular e queimar em 1761 um experiente missionário jesuíta visionário Gabriel Malagrida.

Por graça do livreiro ou do comprador que o mandou encadernar, há  as duas folhas mencionadas e apensas posteriormente, já que o papel é diferente, contendo as tais instruções para a confissão, pois o santo morrera mártir da sacralidade ou sigilo dessa arte, destacando-se uma bela  oração e meditação devocional ou amorosa, no qual se analogiza a Divindade, eterna e primordial, tanto com o supremo Bem como com o Abismo de toda a perfeição ou perfectibilidade, num certo  Alfa e o Ómega: 

«Amo-vos, ó Deus amabilíssimo, sumo, e infinito Bem, abismo de toda a perfeição: só pela vossa verdadeira, e natural bondade, formosura, e ser essencialmente amável: Porque sois quem sois, digníssimo de todo o amor, e honra possível. Quem me dera poder amar-vos com todo aquele ardentíssimo amor, com que vos amam, e amarão eternamente todos os Anjos, e Bem-aventurados no Céu! Com que vos amam, e podem amar todas as Criaturas, que há, e pode haver na terra! E com o seu ardentíssimo amor ajunto o meu, ainda que tão imperfeito como é.»
E fiquem
o-nos nesta ardência amorosa religiosa mas de grande profundidade espiritual, e que meditada dará certamente os seus frutos, sobretudo nas almas virgens ou vigilantes, fiéis cavaleiras do Amor no meio das noites e trevas actuais, para que elas floresçam como Noches claras Divinas...
E es
peremos que brevemente saibamos quem foi o autor do livrinho, bem como o seu título, impressor e data. Provavelmente os grandes bibliógrafos antigos, Barbosa de Machado e Inocêncio, poderão trazer luz esclarecedora. 

      *+E de facto, umas horas depois, consultando  Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, Lisboa, 1757-1759, na reimpressão, lemos no  vol. IV e último, o do suplemento aos anteriores, apenas que o patrocinador do livro Fernando António da Costa de Barbosa  nascera em Guimarães, em 1716, sendo irmão de um capelão do Rei, e tendo estado quinze anos no Brasil, de 1732 a 1747, regressando, casou e deu à luz as duas obras já mencionadas e um Elogio a Manuel Caetano Lopes de Laure, Secretário, e Depurado do Conselho Ultramarino, 1754. 

 Concluiremos dizendo que mesmo no seu estado imperfeito, não identificado ainda e logo misterioso, este livro  é muito  vivo e germinante  na sua profunda e elevada aspiração amorosa à Divindade, ao Bem e  à comunhão com as almas bem-aventuradas, isto é, luminosas, corajosas, plenas. Que elas, e particularmente S. António e S. João Nepomuceno, nos inspirem e apoiem, a fim de que a Humanidade se vá tornando mais desperta, justa, fraterna, multipolar, sábia....

S. João Nepomuceno num registo do séc. XVIII que circulava em Portugal. Da colecção da Fábrica da Fiação de Tomar. Lux!

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