A fonte histórica principal é o Liber Miraculorum sancti Antonii, do séc. XIV, escrito entre 1367 e 1370, e que desenvolveu algumas narrativas mais antigas escritas logo após a morte do santo, e posteriormente as Fioretti di S. Antonio di Padova. Aí se descrevem a vida do santo e os milagres, entre os quais o da pregação aos peixes que tanta fortuna teve na arte. A versão que eu consulto é a da Vita Miracoli e Privilegi di S. Antonio di Padova espresi in XL rami. Venezia, Parolori, 1817, com gravuras e portada por Ruffonus, que teria seguido a Vida do Santo pelo P. Arbusti, de 1776, e as versões mais antigas.
Na maioria dos artistas certos aspectos perpassam pelas suas obras e tocam-nos: o desprendimento resiliente do santo face ao desinteresse dos humanos ou heréticos pela sua pregação, a fraternidade e capacidade telepática com os peixes, que lhe respondem inteligentemente, no fundo uma sensibilidade activa quanto à omnipresença do Logos divino no universo, o que pode ser mesmo chamado de panteísmo místico franciscano (realçado por Jaime Cortesão como dos melhores veios na gesta dos Descobrimentos), pois S. Francisco de Assis, o fundador da sua Ordem dos Frades Menores, também a manifestara com o irmão lobo, ou mais celestialmente ainda com o Sol e a Lua.
De facto nas pinturas, gravuras e azulejos os peixes parecem mesmo ouvi-lo, compreendê-lo, usufrui-lo com olhitos espertos a luzir pois segundo as narrativas eles respondiam ao que o santo lhes pedia. E
noutros episódios da vida de S. António não faltarão o burro que se
ajoelha perante o santíssimo Sacramento (mas não foi tão longe que lhe
desse a comungar), num belo ensinamento que tal como os grandes seres e
anjos intermediarizam a Divindade com a Humanidade, assim o ser humano opera com os animais.
Todavia outros aspectos e ensinamentos se podem retirar de tal episódio, real ou imaginário, e face a ele os artistas manifestaram certas crenças ou conhecimentos, que se tornaram linhas de força perceptíveis nas suas obras e, ao contemplá-las, podemos receber impulsos para melhor discernirmos tais forças e avançarmos mais conscientes e luminosamente na peregrinação terrena.
Embora haja variantes na descrição do milagre a base é a a mesma, e transcrevemos da versão italiana, na impressão de 1817 já referida, um resumo: o santo vendo que os heréticos não o queriam ouvir e se afastaram disse: «ora bem, já que recusastes ouvir a palavra de Deus, olá, ó peixes, vinde a mim, vinde e escutai-me.» Ouvindo tal fala do Santo, os que já se afastavam voltaram-se para atrás e viram uma turba de peixes a aproximar-se da costa, e logo ordenadamente ficarem a vê-lo e a ouvi-lo. Então Santo António disse: «Benditos sejam todos os que vivem nas águas do Senhor». E começou a narrar as vezes em que os peixes são nomeados em episódios das Escrituras, tal o do Arcanjo Rafael e de Tobias ou o da multiplicação dos peixes. No fim, S. António convidou-os a darem graças a Deus e, já que não tinham língua e voz para o louvar, que mexessem as cabeças, abanassem o corpo, saltassem, o que eles fizeram para grande surpresa dos incrédulos. O Santo deu-lhes a bênção e mandou-os partir, e voltando-se para os heréticos viu-os perturbados e desejosos de se converterem, pelo que lhes pregou e convenceu.
Ora Ruffono, um pintor e gravador já do final do séc. XVIII, o autor da bela portada alegórica e das gravuras, assinada Ruffonus fecit, tinha atrás de si já uma tradição de séculos pinturas e gravuras pelo que teria só que se inspirar, e enriquecer ou aprofundar os episódios da vida mais interessantes, certo que pela sua boa qualidade artística daria ao seu editor um garantido sucesso nos peregrinos que o compravam junto ao santuário em Pádua, ou então, como o editor Parolari propagandeia no prefácio, nas livrarias de Pietro Massalonga em Verona e de Francisco Andreta em Merceria de San Giuliano, locais certamente plenos de vida e cultura então e de que dificilmente poderemos recuperar a consciência e visão, bem como dos que se edificaram antonianamente ao comprarem a obra tão belamente ilustrada.
E assim sucedeu pois o milagre dos peixes, a imagem sendo a quarta na sequência das quarenta que ilustram a Vita Miracoli e Privilegi di S. Antonio di Padova espresi in XL rami, como a portada diz no meio de quatro colunas e dois nichos onde pontificam o patriarca S. Francisco de Assis, estigmatizado e com um crucifixo e S. António de Lisboa, com o lírio e o menino divino nas mãos, tem vários aspectos originais que demonstram bem as suas qualidades, ainda que mais limitadas na forma de expressão que as pinturas dos artistas consagrados com o seu colorido e maior dimensionamento e perspectivação, como podemos por exemplo comparar com algumas das portuguesas, tal a de Gregório Lopes (1490-1550), com ressonâncias do Genesis, da Criação, por Miguel Ângelo...
O que destacaremos então na reconstituição de Ruffono tanto realista como visionária: na base, do evento, do abismo do mar, vasto e profundo, acorreu grande variedade de peixes ao chamamento, à voz e palavras de amor e aspiração do santo. E parece-nos ver desde fanecas e sardinhas a enguias e cações. E aos seus pés, requinte de humildade e profundidade, o esquivo caranguejo e a tão cerrada ostra, agora semi-aberta, ou não fosse ela uma produtora de pérolas, a partir de um pequeno acrescento catalizador vindo exterior. Serão os textos gnósticos que desenvolverão o hino da Pérola, a busca da realização interior e íntima do espírito divino, mas quem sabe se algo de tal simbologia ressava na alma de Ruffono.
O santo, com um companheiro frade, encontra-se de pé, com as mãos bem abertas e gesticulantes, com uma auréola irradiante por cima da zona da cabeça, indicando que a sua ligação ao espírito e ao Divino se encontra desperta e activa.
Ruffono na sua ilustração acentuou tanto as entidades subtis que estão pode detrás dos erros e maldades das pessoas como ainda o poder da palavra justa, verdadeira, amorosa, pela qual Santo António, qual outro Orfeu trácio e dos mistérios órficos, conseguia comunicar-se com a Natureza, os animais, os peixes e mais ainda, como noutros milagres aconteceu, expulsar as forças do mal, da ignorância, do ódio, da inveja, da ganância que tanto diabolizam o seres, ou seja, os tornam adversários ignorantes da Verdade, da Justiça, do Bem e da Divindade. E isso acontece muito nos nossos dias, em que por artes maléficas tanta gente é enganada e manipulada e segue arrebanhada por políticos, grupos e meios de informação negativizados, ou na anti-verdade, anti-Divinos.
Saibamos orar, meditar e tentar ouvir a vontade, voz e providência divina, o Logos, em nós, tal como S. António, "o meu bispo", como lhe chamou o seu patriarca S. Francisco, admirando a sua erudição de Retórica, Gramática e Dialéctica, o Trivium, adquirida no mosteiro de S. Vicente de Fora, dos frades de Santo Agostinho e depois no mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, onde fora ordenado sacerdote em 1220, além da sua ascese, virtudes e sensibilidade. Modernamente o P. Henrique Pinto Rema e Francisco da Gama Caeiro (os quais ainda conheci), deram à luz as obras ou esquemas de sermões do Santo e valiosos estudos sobre ele.
S. António, pela querida amiga Maria da Fátima Silva. Pelo verde aromático do manjerico-tulsi sagrado, e a humildade manual e peregrina, rumo ao Divino e à Humanidade justa e fraterna.... |
Possamos ser nós amigos deste importante mestre e elo da Tradição espiritual portuguesa, mais celebrado na fraternidade e alegria popular do que na sua sabedoria e amor devocional à Divindade, tão presente noutros milagres da sua vida exemplar.
Que S. António nos ajude a encontrar a pérola, chave, alma afim ou gémea perdida, e a conversa ou convergência (como desejava Agostinho da Silva) viva e amorosa com a Divindade íntima (ishta devata, e para S. António, se a lenda de ter sido visto com ele é vera, o menino Jesus). E para melhor vivermos em fraternidade comungante multipolar. |
1 comentário:
Vivo, apercebi
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