segunda-feira, 12 de junho de 2023

Dia de S. António. O milagre da pregação aos Peixes, na História da Arte. "Vita, Miracoli e Previlegi di Santo Antonio di Padova", 1817, por Ruffono.

                              

O milagre, lendário ou não, de S. António (15-VIII-1195, Lisboa, a 13-VI-1231, Pádua) pregar ou falar aos peixes ficará eternizado tanto na arte como na religiosidade e moralidade da Humanidade. E quando nos deparamos ainda hoje com imagens de tal evento, em pinturas ou azulejos em  igrejas e museus, ou em livros e registos, podemos tanto interrogar-nos sobre as fontes históricas como contemplarmos e inspirar-nos no que cada artista, pintor ou gravador sentiu ou teve na mente ao debuxar o seu ícone devocional.
A fonte histórica principal é o Liber Miraculorum sancti Antonii, do séc. XIV, escrito entre 1367 e 1370, e que desenvolveu algumas narrativas mais antigas escritas logo após a morte do santo, e posteriormente as Fioretti di S. Antonio di Padova. Aí se descrevem a vida do santo e os milagres, entre os quais o da pregação aos peixes que tanta fortuna teve na arte. A versão que eu consulto é a da Vita Miracoli e Privilegi di S. Antonio di Padova espresi in XL rami. Venezia, Parolori, 1817, com gravuras e portada por Ruffonus, que teria seguido a Vida do Santo pelo P. Arbusti, de 1776, e as versões mais antigas.
Na
maioria dos artistas certos aspectos perpassam pelas suas obras e tocam-nos: o desprendimento resiliente do santo face ao desinteresse dos humanos ou heréticos pela sua pregação, a  fraternidade  e capacidade telepática com os peixes, que lhe respondem inteligentemente, no fundo uma sensibilidade activa quanto à omnipresença do Logos divino no universo, o que pode ser mesmo chamado de panteísmo místico franciscano (realçado por Jaime Cortesão como dos melhores veios na gesta dos Descobrimentos), pois S. Francisco de Assis, o fundador da sua Ordem dos Frades Menores, também a manifestara com o irmão lobo, ou mais celestialmente ainda com o Sol e a Lua.
De autor incógnito, no número comemorativo do 7º centenário da morte de S. Francisco de Assis, da Revista mensal de cultura e formação católica Estudos, Coimbra, 1926. Nela colaborou o meu querido amigo José V. de Pina Martins, com as suas primícias ensaísticas cristãs, que, a para das poéticas, depois qualificava de "pecadilhos de juventude", e a que já dediquei alguns artigos no blogue.

De facto nas pinturas, gravuras e azulejos os peixes parecem mesmo ouvi-lo, compreendê-lo, usufrui-lo com olhitos espertos a luzir pois segundo as narrativas eles respondiam ao que o santo lhes pedia.  E noutros episódios da vida de S. António  não faltarão o burro que se ajoelha perante o santíssimo Sacramento (mas não foi tão longe que lhe desse a comungar), num belo ensinamento que tal como os grandes seres e anjos intermediarizam a Divindade com a Humanidade, assim o ser humano opera com os animais.
Todavia outros aspectos e ensinamentos se podem retirar de tal episódio, real ou imaginário, e face a ele os artistas manifestaram certas crenças ou conhecimentos, que se tornaram linhas de força perceptíveis nas suas obras e, ao contemplá-las, podemos receber impulsos para melhor discernirmos tais forças e avançarmos mais conscientes e luminosamente na peregrinação terrena.
Embora haja variantes na descrição do milagre a base é a a mesma, e transcreve
mos da versão italiana, na impressão de 1817 já referida, um resumo: o santo vendo que os heréticos não o queriam ouvir e se afastaram disse: «ora bem, já que recusastes ouvir a palavra de Deus, olá, ó peixes, vinde a mim, vinde e escutai-me.» Ouvindo tal fala do Santo, os que já se afastavam voltaram-se para atrás e viram uma turba de peixes a aproximar-se da costa, e logo ordenadamente ficarem a vê-lo e a ouvi-lo. Então Santo António disse: «Benditos sejam todos os que vivem nas águas do Senhor». E começou a narrar as vezes em que os peixes são nomeados em episódios das Escrituras, tal o do Arcanjo Rafael e de Tobias ou o da multiplicação dos peixes. No fim, S. António convidou-os a darem graças a Deus e, já que não tinham língua e voz para o  louvar, que mexessem as cabeças, abanassem o corpo, saltassem, o que eles fizeram para grande surpresa dos incrédulos. O Santo deu-lhes a bênção e mandou-os partir, e voltando-se para os heréticos viu-os perturbados e desejosos de se converterem, pelo que lhes pregou e convenceu.

Ora Ruffono, um pintor e gravador já do final do séc. XVIII, o autor  da bela portada alegórica e das gravuras, assinada Ruffonus fecit,  tinha atrás de si já uma  tradição de séculos pinturas e gravuras pelo que teria só que se inspirar, e enriquecer ou aprofundar os episódios da vida mais interessantes, certo que pela sua boa qualidade artística daria ao seu editor um garantido sucesso nos peregrinos que o compravam junto ao santuário em Pádua, ou então, como o editor Parolari propagandeia no prefácio, nas livrarias de Pietro Massalonga em Verona e de Francisco Andreta em Merceria de San Giuliano, locais certamente plenos de vida e cultura então e de que dificilmente poderemos recuperar a consciência e visão, bem como dos que se edificaram antonianamente ao comprarem a obra tão belamente ilustrada.
E as
sim sucedeu pois o milagre dos peixes, a imagem sendo a quarta na sequência das quarenta que ilustram a Vita Miracoli e Privilegi di S. Antonio di Padova espresi in XL rami, como a portada diz no meio de quatro colunas e dois nichos onde pontificam o patriarca S. Francisco de Assis, estigmatizado e com um crucifixo e S. António de Lisboa, com o lírio e o menino divino nas mãos, tem vários aspectos originais que demonstram bem as suas qualidades, ainda que mais limitadas na forma de expressão que as pinturas dos artistas consagrados com o seu colorido e maior dimensionamento e perspectivação, como podemos por exemplo comparar com algumas das portuguesas, tal a de Gregório Lopes (1490-1550), com ressonâncias do Genesis, da Criação,  por Miguel Ângelo... 

O que destacaremos então na reconstituição de Ruffono tanto realista como visionária: na base, do evento, do abismo do mar, vasto e profundo, acorreu grande variedade de peixes   ao chamamento, à voz e palavras  de amor e aspiração do santo. E parece-nos ver desde fanecas e sardinhas a enguias e cações. E aos seus pés, requinte de humildade e profundidade, o esquivo caranguejo e a tão cerrada ostra, agora semi-aberta, ou não fosse ela uma produtora de pérolas, a partir de um pequeno acrescento catalizador vindo exterior.  Serão os textos gnósticos que desenvolverão o hino da Pérola, a busca da realização interior e íntima do espírito divino, mas quem sabe se algo de tal simbologia ressava na alma de Ruffono.
O santo,
com um companheiro frade, encontra-se de pé, com as mãos bem abertas e gesticulantes, com uma auréola irradiante por cima da zona da cabeça, indicando que a sua ligação ao espírito e ao Divino se encontra desperta e activa.

Os humanos ao seu lado, afastados, tem mesmo um diabão, num misto de sátiro e basilisco puxando por um deles, que não parece dar-se conta dele, pois na realidade as entidades subtis não são vistas pelos olhos do corpo, mas apenas pelo olho espiritual, e em tais pessoas ele não está desperto, ou então algo sentidas pelas mais sensitivas Ao fundo vemos a cidade, no caso Rimini, murada, com as casas, torres e igrejas, e de novo num registo de clarividência, ou então, pelo menos de crença na existência de entidades subtis, tais como diabos, com asas mais reduzidas, e anjos, com elas mais desenvolvidas, vemos uma espécie de dança ou luta voadora deles, no fundo tentando influenciar ou apoiar as pessoas no bem ou no mal.

Ruffono na sua ilustração acentuou tanto as entidades subtis que estão pode detrás dos erros e maldades das pessoas como ainda o poder da palavra justa, verdadeira, amorosa, pela qual Santo António, qual outro Orfeu trácio e dos mistérios órficos, conseguia comunicar-se com a Natureza, os animais, os peixes e mais ainda, como noutros milagres aconteceu, expulsar as forças do mal, da ignorância, do ódio, da inveja, da ganância que tanto diabolizam o seres, ou seja, os tornam adversários ignorantes da Verdade, da Justiça, do Bem e da Divindade. E isso acontece muito nos nossos dias, em que por artes maléficas tanta gente é enganada e manipulada e segue arrebanhada por políticos, grupos e meios de informação negativizados, ou na anti-verdade, anti-Divinos.
Saibamos
orar, meditar e tentar ouvir a vontade, voz e providência divina, o Logos, em nós, tal como S. António, "o meu bispo", como lhe chamou o seu patriarca S. Francisco, admirando a sua erudição de Retórica, Gramática e Dialéctica, o Trivium, adquirida no mosteiro de S. Vicente de Fora, dos frades de Santo Agostinho e depois no mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, onde fora ordenado sacerdote em 1220, além da sua ascese, virtudes e sensibilidade. Modernamente o P. Henrique Pinto Rema e Francisco da Gama Caeiro (os quais ainda conheci), deram à luz as obras ou esquemas de sermões do Santo e valiosos estudos sobre ele.

S. António, pela querida amiga Maria da Fátima Silva. Pelo verde aromático do manjerico-tulsi sagrado,  e a humildade manual e peregrina, rumo ao Divino e à Humanidade justa e fraterna....

Possamos ser nós amigos deste importante mestre e elo da Tradição espiritual portuguesa, mais celebrado na fraternidade e alegria popular do que na sua sabedoria e amor devocional à Divindade, tão presente noutros milagres da sua vida exemplar.

Que S. António nos ajude a encontrar a pérola, chave, alma afim ou gémea perdida, e a conversa ou convergência (como desejava Agostinho da Silva) viva e amorosa com a Divindade íntima (ishta devata, e para S. António, se a lenda de ter sido visto com ele é vera, o menino Jesus). E para melhor vivermos em fraternidade comungante multipolar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Vivo, apercebi