Arrumando gavetas é uma tarefa importante para a ordem e o feng shui de uma casa e de uma alma, e mais frutífera ainda quando uma estrelinha inesperada e valiosa surge, no caso simples: cadernos diários ou de apontamentos, cartas in illo tempore em que se escreviam - e por vezes tão sentidas e magnetizadas, valiosas e duradouras - cartões e cartões de visita, fotocópias, radiografias, recortes de revistas e jornais. Vendo uma caixa de cartão legendada Cartas que me foram dirigidas, interroguei-me se deveria perder tempo abrindo-a, ou deixá-la para mais tarde. Venceu a decisão de a examinar rapidamente e surgiu-me logo um cartão duma senhora francesa que, casando com um português, viveu em Lisboa muitos anos, na zona dos Anjos, donde se deslocava até à Sociedade Teosófica, ao ramo ou grupo semanal do irmão Manuel Lourenço, onde eu fui algumas vezes, já que o meu pai, engenheiro civil e militar, me apresentara ao irmão Lourenço, engenheiro técnico, pois sabia que ele era como eu um interessado e conhecedor da espiritualidade. [Muita Luz e Amor neles!] E assim vim a conhecer a Sociedade Teosófica, o ramo e nele a Madame Marcelle da Costa Pina que tinha uma predilecção especial por dois ensinamentos: o da Cosmogonia de Urantia, contida num calhamaço imenso que me emprestou com muitas recomendações de não o perder, e o de Jean- Claude Salemy e o seu grupo e revista Ondes Vives, da qual me deu no fim da sua vida os números que tinha, chegando eu então a assiná-la, e vindo até encontrar-me em Paris e a dialogar com Jean-Claude Salemy, um especialista em simbologia, numerologia, etimologias subtis e profetismo, mas que contudo não me convenceu, sobretudo por um certo exagero numerológico e apocalíptico.
Já a Mme Marcelle Costa Pina era de uma gentileza enorme, de coração puro e nada impositiva: pequenina, bem arranjada, uma senhora (vestida) à antiga, ainda (creio) com pó de arroz, batom, e com a sua voz baixinha, suave ou doce mas lúcida e independente. E dialogávamos em francês na salinha da sua casa, tendo-lhe eu ouvido (e quem sabe se recuperarei através dos diários que conservo da época) algumas histórias dos seus encontros com espirituais antes de vir para Portugal e até com o espírito de uma amiga que acabara de falecer, pelo que já
pensara algumas vezes que a devia recordar, homenagear, agradecer e,
de certo modo, nestes momentos anímicos e imponderáveis, ressuscitá-la para a nossa história ainda de incarnados, graças ao
blogue e à comunidade virtual que o lê, e assim o cartão de Marcelle Costa Pina foi mesmo uma bênção, pois já não seria só a memória e o coração a falarem...
«Querido Amigo
Um grande agradecimento por me ter emprestado este livro que acrescenta mais um argumento para a não-crença na reincarnação na Terra. Todavia se todas as impulsões das quais nós somos os autores durante a nossa vida terrestre devem encontrar a sua realização apenas em vidas humanas posteriores, isso pode perturbar, numa certa medida, a nossa paz interior. É verdade que em compensação, somos levados a esgotar as impulsões emitidas pelos nossos predecessores. Mas, na realidade, tudo isso me parece bastante complicado.
Creio também que o uso de costumes ou práticas ascéticas é inútil para atingir um fim espiritual.
É evidente que o ser humano, em primeiro lugar, deve cumprir as suas obrigações terrestres antes de se consagrar às suas aspirações espirituais.
Estou também de acordo quanto ao que [Bô Yin Râ] diz a respeito do domínio [ou mestria] do pensamento.
Desejando-lhe um coração alegre, envio-lhe a minha saudação fraterna.»
Marcelle Costa Pina.
Vemos assim, em parte em uníssono com o ensinamento de Bô Yin Râ, um seu testamento: contarmos apenas com esta vida, cumprirmos as nossas obrigações, não dependermos especialmente de ascetismos, sermos mestres dos nossos pensamentos e actos e cultivarmos um coração, ou interioridade anímica, alegre, generosa, feliz... Demos-lhe graças! Aum...
Uma alma bem luminosa, vista por artista russa, homenageando Marcelle Costa Pina |
2 comentários:
Que bela mensagem, Pedro. Desde que o Pedro me deu a conhecer Bô Yin Râ, que tenho sempre em conta que o nosso crescimento se deverá fazer entre as nossas vivências diárias mesmo com aquelas que nos custam mais. Graças carissimi amicum.
Sem dúvida, Fátima. Como disse o Paracelso "Ad Astra per aspera" e frequentemente teremos de saber morrer e renascer. Ou perseverar, aguentar e por fim ver a justiça realizar-se. Graças pelas apreciações e boas inspirações e realizações!
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