quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

José V. de Pina Martins, biografia. Da sua vida, obra, biblioteca, ser e mensagems perenes. No dia de aniversário, em 2023.

Em 2020, no centenário  do nascimento de José Vitorino de Pina Martins(18-1-1920 a 28-4-2010), participei com um texto na Revista Portuguesa de História do Livro, no volº 45-46, a convite do seu fundador e director Manuel Cadafaz de Matos,  pois seria dedicado ao notável humanista, investigador e bibliófilo. Hoje, quando se comemora o centésimo terceiro aniversário, resolvi partilhar o artigo, acrescentado, para divulgar tanto a vida e obra do querido amigo e notável escritor, como também a Revista Portuguesa de História do Livro, na qual além dos outros artigos de homenagem, nomeadamente da filha Eva Maria e de Manuel Cadafaz de Matos, se encontra o catálogo da parte mais antiga da sua Biblioteca  de Estudos Humanísticos de Lisboa, que tivera uma avatarização anterior como a Biblioteca do Centre de Recherches sur le Portugal de la Renaissance, Paris-Lisbonne. Segue-se então o artigo, bastante acrescentado nas informações, mensagens e imagens:

«Agradecendo o convite para participar neste número da Revista Portuguesa da História do Livro consagrado a José Vitorino de Pina Martins, devo admitir que por circunstâncias várias tive a estrelinha de o prof. Pina Martins ter reconhecido em mim um amigo, um “colega bibliófilo”, um "colega de pesquisas bibliográficas", com "grande curiosidade intelectual", um "espírito sensível às revelações", como escreverá em dedicatórias, estabelecendo-se assim uma relação de convivialidade grande, de afectividade mesmo, com encontros, passeios, diálogos, apoios e, por fim a catalogação, sumária, e avaliação, da sua magnífica biblioteca, tendo em vista a transmissão próxima. 
Olhando para trás, agora que ele já se antecipou a nós na entrada (2010) nos mundos espirituais, interrogo-me acerca do que predominava em si: ser um dos mais eruditos bibliófilos portugueses, ou antes um dos melhores investigadores e conhecedores do Humanismo, apoiando-se numa extensa e excelente recolha selectiva de livros antigos e modernos, à qual deu o apropriado ou justo nome de Biblioteca de Estudos Humanísticos de Lisboa?  

A parede extrema da sala Ocidental, onde se encontravam os autores italianos, franceses, espanhóis, portugueses, sob as bênçãos de Pico della Mirandola, numa bela pintura quinhentista, que chegou a ser oferecida, infrutíferamente, ao Museu Nacional de Arte Antiga.  
  
Penso que as duas dinâmicas anímicas coexistiram harmoniosamente, e os livros eram tanto instrumentos indispensáveis a uma investigação científica rigorosa, que se deveria apoiar nas edições mais antigas ou originais, como também uma fonte de prazer enquanto objectos históricos, instrutivos e belos, imperfeitos até mas sempre dotados  de alma, a qual, num dos seus aspectos, se desvendava, quando repetia em ocasiões especiais de descobertas de obras que procurava ou desejava o dito justificativo e causal: “os livros procuram quem os ama”.

Nele, o estudioso, o filólogo, o filósofo, o professor, o conferencista, o criador, o poeta, o ficcionista,  o director, o investigador da história da tipografia e do livro antigo, o apaixonado pelo pensamento humanista, o bibliófilo frutificador, o espiritual e o utópico  desabrocharam e viviam em bastante harmonia, graças também em parte à sua mulher, a Primula (que conheceu em Itália quando fora leitor de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade La Sapienza, em Roma, de 1948 a 1955), à filha Eva Maria (que se viria a tornar especialista na cultura ugrica ou ugroinica, ligada ao shamanismo) e às pessoas amigas que se rendiam à sua afabilidade, conhecimento e ampla visão e logo cooperavam nas diversas actividades e projectos por onde a sua grande alma se espraiou ou afirmou, amizade não só cultivada horizontalmente mas também verticalmente, graças ao constante diálogo, culto ou comunhão com os seus pares ou mestres, vivos e mortos, mantida ao longo da sua vida, frequentemente homenageados em textos ou conferências, e que tinham nas salas da sua biblioteca pinturas, ícones e fotografias que os relembravam ou invocavam, em especial Pico della Mirandola, Thomas More, Erasmo, Damião de Goes e Sá de Miranda.


Desidério Erasmo, numa fotografia inédita da pintura da Biblioteca de Estudos Humanísticos, obtida num fim de tarde de 2008.

No começo do seu percurso de escrito, deveremos considerar as obras iniciais, poéticas, de 1941 a 1954, de sublimação amorosa e de inquietação e especulação metafísica, "pecadilhos de juventude", como ele sorridentemente as denominava, tal como ainda os seus textos e traduções ligados com o Amor, o Cristianismo e Pascal, do início da sua longa caminhada de pensador, investigador e escritor, quando tinha os seus vinte e poucos anos, ou se os examinarmos bem discernimos o seu génio precoce e uma alma decidida e trabalhosamente aspirando à Verdade e ao Bem?

 Ou será que devemos ver um mesmo Rio Interior (título significativo da sua última obra poética, de 1954 e dedicada a Teixeira de Pascoaes que acabara de partir), talvez ligado até com o rio Alva da sua infância ou o rio Neiva do seu amor por Sá de Miranda, que alimentou o seu ser numa dimensão plena, integradora de diversas facetas da criatividade humana, nele tão bem desenvolvida ao vir a publicar mais de 300 obras e centenas de artigos, ao liderar, participar ou coordenar tanta exposição e simpósio e ao dirigir  instituições e departamentos ligados com a cultura, o ensino e o livro, mantendo a fé trabalhadora e criativa em si, nos outros, na procura da Verdade, no Divino e numa Humanidade melhor?

Não é fácil transmitirmos o essencial de José Vitorino de Pina Martins nas escassas linhas e entrelinhas de um texto, pois teríamos de resumir e sintetizar tantos aspectos valiosos da sua individualidade, tantos livros, artigos e conferências realizados, tantas conversas com ele tidas e registadas em diários, tantas influências notáveis recebidas, tais as dos mestres e amigos que o impulsionaram e enriqueceram, e os autores e obras que mais amou e investigou, e ainda as cidades, bibliotecas e livrarias  onde mais viveu, trabalhou e dialogou nos seus oitenta anos de vida luminosos e gratos...

Se as exposições e conferências, ainda que com os seus momentos de grande luz, acabam por passar e quase dissolver-se pela sua efemeridade nas brumas do passado, deixando todavia memórias por vezes perenes nos que nelas participaram e em especial catálogos, já os seus livros permanecem vivos como tesouros e, por eles, e muitos são, Pina Martins continua a falar-nos, ensinar-nos ou mesmo a despertar-nos e a inspirar-nos...

Embora só o tenha conhecido nos últimos dezasseis anos da sua vida, desenvolvemos uma relação de amizade muito próxima, pois conhecera um tio meu diplomata em Paris e sentia em mim alguém que partilhava das mesmas afinidades electivas bibliófilas, humanísticas, religiosas e espirituais  e que, ajudando numa livraria e trabalhando numa leiloeira de livros antigos em tempo parcial,  estava disponível para as passeatas da venatio librorum, como ele gostava de chamar às peregrinações pelas livrarias alfarrabistas, em geral ao sábado de manhã. Algo que ele tão magistralmente descreverá no seu Histórias de Livros para a História do Livro, onde em cinquenta e quatro capítulos e um epílogo inseriu os seus principais companheiros internacionais de tal amor, dedicando-me (Cândido Ribeiro) mesmo dois capítulos,  já que nesses anos me movimentava e viajava bem no amor e demanda da Sabedoria e dos seus livros, tendo-lhe encontrado alguns que desejava para os núcleos mais amados da sua notável Biblioteca de Estudos Humanísticos de Lisboa, que ocupava de certo modo três andares em zona central da urbe olisiponense.

Após vários anos de diálogos  em livrarias do Chiado, tais como Livraria Histórica e Ultramarina, Manuscrito Histórico, Biblarte, Mundo do Livro, Olisipo, Artes e Letras, Antiquária do Calhariz, Luís Burnay, Júlio Carreira, Antiquária do Chiado, Eclética e a livraria dos Trindade à rua do Alecrim (infelizmente na sua maioria já extintas, ou então deslocadas), e em  em sua casa e biblioteca, em minha casa e na natureza ou quando ia ouvi-lo à Academia das Ciências, da qual foi um extraordinário e sublime académico, conferencista e presidente, pediu-me para  catalogar abreviadamente a sua Biblioteca de Estudos Humanísticos, o que realizei ao longo de um ano e meio, de modo a apresentar-se o seu conteúdo e valor a quem viesse a adquiri-la quando ele abandonasse o corpo físico e  Terra, Gaia que podemos considerar ter sido para ele bastante benéfica e protectora, pois sofrera poucas oposições aos seus projectos ou ideias, tal como lhe sucedeu com as "miseráveis atitudes" de dois ou três membros (sobretudo da secção de Ciências) da Academia das Ciências e, sobretudo, em Paris por causa de uma colecção de autores portugueses, de Fernão Lopes e João de Barros, passando por Sá de Miranda e Antero de Quental, até Virgílio Ferreira e Saramago, a editar pela Gallimard, em tiragens grandes, e para a qual já tinha os apoios da UNESCO e da Fundação Calouste Gulbenkian, como me narrou algumas vezes, mas que nunca chegou a receber a aprovação da representante portuguesa na UNESCO.

A ala ocidental da Biblioteca, com os mais preciosos livros da Europa do Sul, em especial de Itália, sob a imagem de Pico della Mirandola. Fotografia do autor.

A Biblioteca de Estudos Humanísticos, quanto à totalidade dos seus livros antigos, cerca de 1.100, foi preservada e, após algumas peripécias, pois quem acabou por a adjudicar e adiantar o dinheiro pela qual fora avaliada foi o Novo Banco, encontra-se hoje, por empréstimos renováveis, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, onde ele fora o Professor-Bibliotecário de 1985 a 1990. Ao longo dos anos, todavia, o prof. Pina Martins pusera em leilão, vendera e trocara vários livros, alguns mesmo quinhentistas, tal quando resolveu vender cerca de doze deles, entre outros, para si não importantes, a fim de comprar a raríssima edição aldina de Horácio de 1501, que acabou por vir de Paris, do seu amigo livreiro André Jammes, graças ao dinheiro oferecido pelas afortunadas pessoas que licitaram vitoriosamente os livros em leilão, ultrapassando mesmo bastante a quantia de que necessitava, almoeda apresentada pelo livreiro-leiloeiro Pedro de Azevedo e com uma colaboração bem original e sob pseudónimo de Pina Martins na apresentação do catálogo,

Anote-se ainda que, fora propriamente da Biblioteca dos Estudos Humanísticos, havia  muitos livros de menor ligação ao Humanismo, bem como obras, revistas e separatas oferecidas por amigos, os quais se encontravam na cozinha transformada em armazém de um andar só biblioteca, e também no andar da habitação, os quais foram por ele, e já depois da sua morte e da Primula, pela sua filha Eva Maria, tanto doados como também vendidos em leilão.

Podemos dizer que Pina Martins está hoje ainda vivo não só na memória dos que o conheceram melhor, amigos, colaboradores ou alunos, como ainda nos muitos livros, catálogos e opúsculos por ele publicados ou onde participou e sobretudo  na sua magnífica Biblioteca, hoje mais facilmente aberta aos estudiosos na Faculdade de Letras de Lisboa, e na qual se destacam, por exemplo, os núcleos de Aldo Manuzio e seus sucessores, com cerca de 100 exemplares,  e os dos pré-humanistas e humanistas italianos e europeus, avantajando-se neles Pico della Mirandola, Thomas More, Erasmo (embora muitos tivessem sido vendidos e cedidos antes à Biblioteca Nacional), mas estando também bem representados Dante, Petrarca, Marsilio Ficino, Poliziano, Lefèvre d'Étaples e, dos portugueses, Sá de Miranda, Camões, André de Resende, Damião de Goes, D. Francisco Manuel de Melo, etc. 

Dez incunábulos, alguns manuscritos valiosos e bastante iconografia quinhentista (humanistas e frontispícios) destacavam-se,  além dos cerca de 700 livros quinhentistas, dos quais já referimos os principais mas dos quais deveremos ainda mencionar o núcleo dos sessenta e um impressos em Espanha, descritos bibliograficamente de forma perfeita, com as reproduções da iconografia de vinte deles, numa homenagem à sua amiga Maria de Lurdes Belchior, no volume XXXVIII dos Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, 1999, e dado à luz posteriormente em separata. Para além dos 1.100 livros principais, preservaram-se todos os de bibliografia, de literatura, filosofia e estudos humanísticos que se encontravam nos dois andares do corpo principal da Biblioteca, em impressões dos séculos XIX e XX, a maioria deles encadernados uniformemente em tela.

Como pessoa, Pina Martins era um gentleman, quase um príncipe do Renascimento, na esteira de Pico della Mirandola, não só pelo porte direito e alto, o olhar distinto, a elegância no vestuário e boas maneiras, mas sobretudo pela sua inteligência clara, memória vasta e firme, cultura sábia, afabilidade e capacidade de receber bem, seja nas instituições onde trabalhou ou dirigiu, seja em sua casa, seja nos locais onde convivia e frequentemente convidava a almoçar, sobriamente, tal o restaurante da Fundação Calouste Gulbenkian, o do Centro da Arte Moderna e o do Círculo Eça de Queiroz, ao Chiado lisboeta. 

Pouco virado para a política, embora informado e sabendo discernir e referir quem melhor procedia e quem mais apoiava a cultura e o livro (tal como o ministro da Educação, Mariano Gago), deixou na sua genial Utopia III muitas propostas face ao que caracterizava a sociedade portuguesa, e realizou mesmo as suas intervenções activistas, nomeadamente quando em 30 de Março de 1954 aos microfones da Radio Vaticano ergueu a voz, contra a detenção arbitrária pelos norte-americanos  do poeta Ezra Pound, em nome dos princípios da liberdade e da dignidade humanas e da supremacia dos valores espirituais. 

As suas conversas tendiam naturalmente para os livros e os seus contextos, a história de Portugal, e em especial para  as vidas, obras e polémicas dos humanistas, no prisma da demanda de conhecimento e de verdade que os caracterizava e  nos animava, apreciando nos nossos diálogos as minhas visões espirituais, e não só ocidentais, pelos meus conhecimento dos aspectos esotéricos e orientais, os quais alargavam a sua própria compreensão e visão, e neste aspecto debatemos algumas partes religiosas da Utopia III, que me leu quando a escrevia, oferecendo-lhe eu ainda alguns livros, tais como o Sidharta de Herman Hesse e duas obras do mestre alemão Bô Yin Râ, uma das quais traduzida por mim, com ajudas, o Livro do Deus Vivo. Em contrapartida, para além de trocas de livros quinhentistas e outros, também recebi muitos dos seus próprios livros e separatas,  guardados por ele numa pequena divisão da cozinha do andar (duplo)  biblioteca (onde iam volta e meia um ou dois livreiros), e alguns exemplares de boas revistas, tais como a Moreana do seu grande amigo Germain Marc'hadour,  a Spiritus, de José Adriano Freitas de Carvalho e o Journal of the Warburg and Courtauld Institutes.

 É natural que a sua espiritualidade inata, docemente alimentada pela  vida religiosa assídua e intensa que a sua família e aldeia lhe proporcionaram, e depois mais asceticamente pela breve frequência do Seminário de Coimbra, o tenha predisposto  para o Humanismo, e para Erasmo, Pico della Mirandola e Thomas More, mas  devemos reconhecer que depois de se ter licenciado em 1947 em Filologia Românica  foi o  leitorado de Língua e Literatura Portuguesa, na Universidade de Roma La Sapienzia,  os contactos com investigadores e livreiros e os cursos dos professores Lamberto Donati e Carlo Calcaterra, na Biblioteca Vaticana e na Universidade de Bolonha o que o impulsionaram mais a aprofundar as maravilhas  literárias, científicas, filosóficas, éticas  e espirituais do Renascimento italiano e europeu, às quais aderiu de alma e coração, alargando muito a sua base de sensibilidade lírica, ética e cristã que tão bem manifestara nos seus tempos já de estudante, com os seus livros de poesia e de apologia do Cristianismo, ou traduções cristãs de Reynes-Monlaur, Karl Adam e Nikolai Berdiaev, mas ainda com pouca abertura às riquezas da literatura, filosofia e espiritualidade greco-romana, e até universal, característica forte do Renascimento, nomeadamente com Pico della Mirandola, Marsilio Ficino e Angelo Poliziano na Florença dos Medici.

Todavia, o impacto ambiental histórico renascentista italiano foi forte e neste sentido narrou-me mais de uma vez quão misteriosamente se sentira tocado em Florença,  ao entrar pela primeira vez no largo do Domo - da catedral de Santa Maria dei Fiori -, sentindo uma comoção anímica tão arrebatadora que vira-se inesperadamente a exclamar, impressionado: «Mas eu já aqui estive.» 

Discutíamos mesmo se era um caso de reincarnação, como admitia, ou apenas, como eu propunha, o facto de estarem presentes nele forças anímicas que de um modo ou doutro já conheciam Florença ou aquela zona do Domo, onde se encontram as cinzas de Marsilio Ficino, outro dos nossos apreciados ou amados humanistas e sobre o qual dialogámos muitas vezes, tanto mais que ele conhecera o autor da tradução da Theologia Platonica, o abade Raymond Marcel, que eu lera e meditara, e dera mesmo à luz dois catálogos dos livros de Pico della Mirandola e de Marsilio Ficino existentes nas bibliotecas portuguesas, um deles o da Exposição na Biblioteca Nacional e para o qual  eu também contribuí.

  Anote-se que este episódio da sua vida, ou quiçá revelação espiritual, foi por ele bastante valorizado mesmo em livros, pois é descrito num artigo para a revista ICALP, no vol. 15, de Março de 1989: De como identifiquei o «Tratado de Confissom», onde  equipara tal experiência florentina à sensação que teve ao segurar pela 1ª vez o precioso incunábulo,  que viria a estudar e a dar a leitura diplomática. E também já na final Utopia III, no capítulo 44, onde de novo o partilha,  aprofundando bastante os significados possíveis de tal experiência espiritual. Duas vezes na vida, dirá mesmo, qual o nipónico dito ichi-go ichi-e...

Prescindindo da afinidade provinda da reincarnação ou das energias anímicas passadas, seriam então os valores éticos e irenistas ou pacifistas, tão desenvolvidos no Renascimento, ou a demanda de mais conhecimento, tanto científico como espiritual, este já não tão condicionado pelo Catolicismo, o que mais o atraiu para o Humanismo?

Cremos que todos estes factores entraram em conta, havendo até antecedentes nos seus tempos de universitário, tanto ao ser censurado num artigo sobre Eça de Queirós por um professor excessivamente ortodoxo religiosamente, como ao ser aluno do sábio e anteriano Joaquim de Carvalho (1892-1958) e ao receber o impacto de Marcel Bataillon (1895-1977) que fora conferenciar sobre Erasmo em 1946 à Universidade de Coimbra a convite daquele notável especialista de Antero de Quental (e talvez por isso Pina Martins escreveu na época uma monografia sobre o rebelde poeta metafísico), e que virá a ser seu  amigo em França; todavia, como já dissemos, provavelmente foi o contacto vivo com a grande  civilização italiana do quattrocento e cinquecento, nos livros, ideias, locais e pessoas  o que o impulsionou mais na opção do caminho do aprofundamento do Humanismo, tendo até em mente que em Portugal estava ainda pouco desenvolvido. A menos que acreditemos, sem fatalismos e valorizando o livre arbítrio, tal como Erasmo face à predestinação de Lutero, que ele já vinha com tal missão em potencial de forças anímicas, dentro de si...
 Olhando mais detidamente para o seu percurso discernimos certas preferências na evolução intelectual e espiritual, por ele mesmo  assinaladas na geração das suas obras: a par, e após a sua fase inicial poética (em que fundou mesmo o movimento Poesia Nova com Miguel Trigueiros e Eurico Collares Vieira) e de ensaísmo cristão, pascaliano, ético, ascético e metafísico, e de tradutor (de Karl Adam, Reynes-Monlaur, com introduções ou anotações profundas e extensas), e se manifestou enquanto universitário em Coimbra (licenciando-se em Filologia Românica em 1947) e prolongando-se um pouco, vemo-lo trabalhando em estudos e interpretações das escolas, movimentos e bons autores (começando com Pascal, Ribeiro Couto e Raffaele Spineli), apurando os seus métodos de investigação e dando-nos algumas obras de crítica literária, que se manifestam já notavelmente no jovem de 25 anos, no Ensaio sobre Parnasianismo brasileiro, seguido de uma breve antologia, de 1945, dedicado ao seu professor de Língua e Literatura Latina Rebelo Gonçalves, o qual, sendo ainda escrito sob o nome literário de Duarte Montalegre, foi por ele reconhecido como a primeira obra já com cunho científico seguro. 

Dezoito anos depois, já regressado estrangeirado humanisticamente dos leitorados de Português em Roma (1948 a 1955) e  Poitiers (1955 a 1962),  em 1963, vêm à luz os Ensaios da Literatura Europeia, que levam o aviso: «Os estudos aqui reunidos pertencem a uma fase superada da evolução intelectual do autor. Mas como uma obra não vale apenas em função de quem a escreveu, mas principalmente em função de si mesma e do que representa, entendemos que talvez estes Ensaios de Literatura Europeia pudessem prestar um serviço: o de levar ao conhecimento do leitor ideias e valores que, nem por pertencerem ao mundo não português, devem ser excluídos do nosso horizonte intelectual. Parece-nos até, se não erramos, que o contributo será mais de apreciar, enquanto destinado a pôr em evidência realidades espirituais não peculiarmente nossas, por isso dotadas de virtudes para nós complementares. Pensamos que tal conhecimento só pode significar enriquecimento».

Diz-nos então que entrara noutra fase de evolução intelectual, pois abandonara os temas morais, éticos e religiosos, espelhados por autores e antigos e modernos, e pensados e interpretados em modo de ensaio ligeiro em artigos de revistas e suplementos literários, e coligidos em tal livro, passando a estudar mais erudita e cientificamente a cultura portuguesa e italiana dentro dos quadros culturais europeus, procurando assim apresentar uma «visão genuinamente crítica e científica das letras».

Entrara na sua docência de dez anos (de 1962 a 1972) como Assistente na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, para a qual fora convidado e, admirado por não haver qualquer disciplina de História do Livro, esforça-se por desenvolver tal com estudos, publicações e exposições, dirigindo a exposição nacional sobre os Lusíadas na Biblioteca Nacional em 1972, co-dirigindo com Paulo Quintela, Justino Mendes de Almeida e Vitorino Nemésio a do V Centenário do nascimento de Gil Vicente em 1974. E de acordo com o seu princípio bibliófilo que gostava de citar, Os livros procuram quem os ama, alcança algumas descobertas de raridades bibliográficas, que estudará e divulgará.

Nesta linha de preservação e estudo científico do património bibliográfico e iconográfico português e humanista devemos mencionar os seus trabalhos pioneiros, desde 1965, sobre a bibliografia, a história da tipografia em Portugal e a demanda de espécies bibliográficas raras, na qual abriu escola, na convicção de que haveria ainda obras desconhecidas perdidas em bibliotecas, tal como veio a acontecer logo em 1965, ao identificar (para ele num momento muito emocionante, embora fosse por mãos de sucessivos livreiros alfarrabistas que lhe chegara) e apresentar o livro  mais antigo impresso em português datado, de 8 de Agosto de 1489, em Chaves, o Tratado de Confissom, onde já registou tanto a possível influência hermética na visão da excelência do ser humano, quase contemporânea da famosa Oratio de Pico della Mirandola (1487), como a crítica à corrupção eclesiástica, esta antecedendo mesmo Erasmo, numa valorização da pobreza evangélica. Em 1968 será o Modus curandi cum balsamo, c. 1530, e do qual dará o fac-símile e o estudo em publicação da Biblioteca Nacional, e já em 1995 outro exemplar desconhecido,  impresso pelo impressor lisboeta Germão Galharde das Poesias de Garcilaso de la Vega, de 1587, adquirido na Livraria Antiquária do Calhariz, de José Manuel Rodrigues, onde eu ajudava, que foram descritos em artigos e separatas e depois em capítulos próprios nas Histórias de Livros para a História do Livro.

Nomeado em 1972  Director do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, em substituição do seu amigo Joaquim Veríssimo Serrão,  dirigi-lo-á até 1983 com fecundidade  insuperável em conferências, colóquios, recitais, concertos, exposições e mais de 100 publicações, dando entretanto à luz em Lisboa, em 1974, na Editorial Verbo, o seu volume de Cultura Portuguesa, e que foi coetâneo de volume igual da Cultura Italiana, incluindo já neles os seus grandes amores, apresentados com alguma profundidade nas fontes directas e interpretações, anotações, iconografia e bibliografia. Afirma contudo na contracapa que de tais estudos de aspectos da história da cultura portuguesa ao longo de cada século, bibliográficos, iconográficos, literários, políticos, filosóficos e teológicos escolhera “intencionalmente, da nossa produção científica, os ensaios menos técnicos e de leitura mais fácil”. Os autores abordados eram Sá de Miranda, André de Resende, Francisco Manuel de Melo, Luís António Verney e Almeida Garret. 

  Já na Cultura Italiana os autores estudados ou interpretados, reflectindo  a sua docência  na Faculdade de Letras, de 1962 a 1972, da cadeira de Literatura Italiana, são Dante, Boccaccio, Petrarca, e seus primeiros discípulos Salutati, Bruni e Poggio, e o dolci stil nuovo e a sua espiritualidade amorosa da Dama Angelicata, o qual Sá de Miranda importará dois séculos depois, seguindo-se os ensaios sobre os humanismos de cada país, e seus melhores representantes, como Erasmo, Budé, Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Machiaveli, Castiglione, Contarini, Francesco Guicciardini, Étienne Dolet e Tommaso Campanela. Dos modernos e contemporâneos abordará Leopardi, Francesco de Sanctis, Giosuè Carducci e Bennedetto Croce. Os autores sinteticamente apresentados nestes estudos serão dos que se encontram mais na sua Biblioteca, ora em edições quinhentistas ora em impressões mais modernas.

Diálogo entre Marcel Bataillon e José Pina Martins. Fotografia tirada a fotografia do acervo familiar. Cremos que do ano de 1974, quiçá no doutoramento e quando se encontrou mais com ele. 

Será na fase de director do Centro Cultural Português de Paris que é aprovado em 1974, com a mais alta distinção, no doutoramento em Letras e Ciências Humanas, na Sorbonne, discutindo as teses diante de um júri de renome presidido por Marcel Bataillon, com Eugenio Asensio, Robert Ricard, Paul Teysier, Raymond Cantel e André Saint-Lu. Escolhido   em seguida para director, com Jean Aubin, e encarregado de conferências na cadeira de Civilização Portuguesa, no Centre de Recherches sur le Portugal de la Renaissance, na Sorbonne, desenvolve um grande labor nos seus estudos humanísticos e na organização ou publicação de catálogos de exposições, de seminários e de livros sobre o Humanismo e a civilização portuguesa, destacando-se os que surgirão  na colecção Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian.

Ficarão para sempre como obras de referência sobre o Humanismo em Portugal, as suas obras chaves das décadas de 70 e 80: Sobre o Conceito de Humanismo e alguns aspectos histórico-doutrinários da Cultura Renascentista, em 1970,  onde estuda bastante Erasmo, o Sá de Miranda e a Cultura do Renascimento I. Bibliografiaem 1972, num in-fólio de 507 páginas, com cerca de 1200 títulos descritos e na maioria comentados, e com uma gravura original de Martins da Costa,  e o excelente  Humanismo e Erasmismo na Cultura Portuguesa do séc. XVI, Estudo e textos, com um elogioso prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão, em 1973, num in-fólio de 329 páginas, concluído magistralmente: «Mas o Erasmismo, em Portugal como na Espanha, é menos uma corrente filológica e metodológica do que religiosa, política e social. Regresso às fontes; purificação do sentimento religioso; sentido jubiloso e equilibrado da vida sabiamente disciplinada por uma moral que não desprezava as experiências da vida corpórea; tensão interior no sentido de fidelidade ao Espírito, portanto sátira contra toda a corrupção da pureza da mensagem evangélica. Um tal programa não podia limitar-se ao domínio da Fé: tinha inevitavelmente muitas implicações que empenhavam o homem completo, membro da comunidade das almas e da comunidade política. As instituições e os poderes organizados não podiam ou não queriam sempre aceitar os propósitos dum irenismo [pacifismo, de irene: paz, em grego] humanitário e humanista porque profundamente humano, cujas raízes hauriam a seiva no bom senso natural e na mensagem de Cristo. No decurso dos séculos, nem sempre o Evangelho pode ser o estandarte dos cristãos: O equívoco e drama da repressão do Erasmismo pode ter também esta explicação histórica. Em Portugal, como alhures, não [se] conseguiu fugir a esta regra.»

E,  finalmente, já em 1989, L'Humanisme et Renaisance. De L'Italie au Portugal. Les deux regards de Janus,   num in-fólio de 1106 páginas, em dois volumes, o primeiro sobre o Humanismo Italiano (Dante, Petrarca, Bocácio, Dolce Still Nuovo e Pico della Mirandola), Thomas More e os tratadistas do Amor, e o segundo sobre Portugal Renascentista e o Humanismo, nomeadamente a influência do Humanismo Italiano e de Erasmo, a Astrologia segundo Frei António Beja discípulo de Pico della Mirandola, André de Resende, Camões, Jerónimo Osório e história do Livro, concluindo com reflexões sábias sobre o que é que está vivo na Tradição Humanista, pois as correntes culturais envelhecem perante a evolução das mentalidades, admitindo que o pensamento utópico de Thomas More, Bacon,  Campanela e a valorização erasmiana da metodologia do diálogo fundamentado e fraterno em vista da verdade e da paz constituem os veios mais perenes. 

Quando regressa a Portugal em 1983, o trabalho de mecenato humanístico em grande parte finda no Centro Cultural de Paris já que outro director toma o seu lugar, mas prosseguirá como Director dos Serviços de Educação da Fundação Calouste Gulbenkian a apoiar muitas associações, actividades e publicações,  continuando naturalmente com os seus estudos e livros, conferências e exposições, para os quais a Academia das Ciências de Lisboa, onde entrara em 1978 sob convite premente de Jacinto Prado Coelho, para celebrar numa conferência o V. Centenário do nascimento de Thomas More, será uma instituição histórica valiosa e útil e que por ele será muito enriquecida. Virá  a ser eleito Inspector ou Director da Biblioteca em 1986, função na qual tomou medidas importantes de preservação e catalogação e escreveu  as valiosas introduções aos catálogos dos Livros Quinhentistas Espanhóis e Portugueses da Biblioteca da Academia das Ciências, publicados em 1989 e 1990. Em 1985-se realiza o Primeiro Simpósio Nacional, sobre o Humanismo Português, 1500-1600, da qual foi o Secretário Geral, com sessões em Coimbra, Lisboa e Évora, e cujas valiosas comunicações de vinte e cinco investigadores, entre os quais Maria Helena da Rocha Pereira, Sylvie Deswarte, Maria Helena de Teves da Costa (sobre Alciato) Costa Ramalho, Veríssimo Serrão, Aires do Nascimento, Tavares de Pinho, Freitas de Carvalho, Amadeu Torres, Augusto Rodrigues e Luís de Matos,  serão publicadas em 1988 num volume de cerca de 700 páginas, que contém de Pina Martins a apresentação e a comunicação  Sá de Miranda e a recepção no século XVI de um Dolce still nuovo renovado.

Fotografia até hoje inédita de Pina Martins e Henri-Jean Martin, na biblioteca da Academia da Ciências.

Nesta instituição centenária (1799 a fundação), tão apropriada ao seu lumen e númus, virá a ser vice-presidente e presidente algumas vezes, dinamizando e internacionalizando as suas actividades e simpósios, manifestando sempre uma fidalguia verdadeiramente renascentista, no modo de coordenar, receber, apresentar, guiar e na sua virtuosa eloquência bem fundamentada e luminosa.

 Na sua vasta obra, além dos muitos estudos dedicados aos sábios portugueses, dos quais deveremos destacar Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, André de Resende, Damião de Goes e D. Francisco Manuel de Melo, e à História da Cultura e do Livro em Portugal, encontramos ainda os escritos de homenagem a vultos importantes, seja de estudiosos do Humanismo e da História da Tipografia e do Livro, seja de pensadores e escritores, muitos deles editados em separatas, e poderemos mencionar Marcel Bataillon, Léon Braudel, Raymond Cantel, o rei D. Manuel II, Joaquim de Carvalho, Jacinto do Prado Coelho, Victor Buesco, Vitorino Nemésio, Amândio César (seu grande amigo nos tempos de estudante), Fernando de Mello Moser (com quem escreveu um livro sobre Camões e que era um moreano bem valioso), Eugenio Asensio (1902-1996), este o seu maior amigo (desde 1950, quando o conheceu no Mundo do Livro, embora só em 1962 iniciasse o convívio) companheiro de diálogos humanistas que relembrava com amor e com quem publicou um estudo e a quem dedicou quatro testemunhos e recensões, um deles, em 1997, no nº 2 da Revista Portuguesa de História do Livro, intitulado Eugenio Assensio: o humanista, o investigador, o bibliófilo, onde considera que «os seus estudos virão sempre a ser consultados com proveito, serão sempre fonte perene de informação e de abertura de novos horizontes no domínio do conhecimento crítico. Ele escreveu-os com ciência sólida, com o domínio profundo dos textos e com a cautela metodológica que se impõe a todos os que fazem da sua vida um serviço sem quebra à causa das ideias e das letras».

Também as exposições e os vários catálogos consagrados a autores e impressores humanistas, para as quais  a Biblioteca Nacional (onde foi como um mestre durante vinte anos) e a Academia das Ciências de Lisboa foram os principais palcos (embora tivesse ainda orientado em Chaves, Coimbra, Roma e Tours),  estimularam o interesse, a investigação e o conhecimento das riquezas do Humanismo. No catálogo de Chaves, 1989, consagrado ao Tratado de Confissom, afirmará magistralmente: "Uma exposição - e portanto o catálogo que a recorda como documento para que a sua lembrança fique assinalada na história - tem de ser harmoniosa como uma catedral ou, pelo menos, como uma obra arquitectónica, grandiosa ou modesta que seja». Na realidade, estes catálogos contém  rigorosas descrições dos exemplares e boas caracterizações dos autores e conteúdos, com valiosos prefácios ou apresentações e não só divulgaram como frutificaram, pois a sua paixão de desenvolver a cultura humanística e a história da tipografia e do livro estimulou e apoiou vários investigadores e catalogadores, que viriam a trabalhar  diversos autores, fundos e bibliotecas públicas e privadas.  E naturalmente, dentro até do princípio imutável, o que semeias recolhes, o karma na designação indiana, alguns catálogos surgiram sobre os trabalhos de Pina Martins, e citaremos de 1990 a Bibliografia de estudos do Prof. Doutor José V. de Pina Martins existentes na Biblioteca Central da Faculdade de Letras, que recenseia 110 estudos de Pina Martins. De 1995, os 111 Trabalhos Científicos de um grande investigador: José Vitorino de Pina Martins, realizado por Manuel Cadafaz de Matos na homenagem que a Câmara Municipal de Penalva de Alva lhe prestou. Associou-se igualmente a esta homenagem Félix Ribeiro publicando José Vitorino de Pina Martins. Percurso Universitário e académico. Curriculum Vitae. Bibliografia, referenciando apenas 270 trabalhos, como Pina Martins justifica, já que esta escolha bibliográfica pertenceu-lhe. Também em 1998,  a Biblioteca Nacional, por iniciativa de Manuel Cadafaz de Matos, e o empenhamento do director Francisco Bethencourt, editou um Catálogo de Exposição Bibliográfica 129 Trabalhos Científicos de um grande investigador José Vitorino de Pina Martins. Com a partida para o mundo espiritual do prof. Pina Martins, a Câmara Municipal de Penalva de Alva homenageou-o a ele, enquanto espírito imortal, com a Primula sua mulher, presente, com o descerramento de um busto e testemunhos de três oradores, onde tive a graça de ser um deles. E perto do rio Alva, com a banda musical a tocar e o vento a soprar.


 Perenizaram-se alguns destes catálogos monográficos, tal o consagrado a um dos seus amores, Sá de Miranda, de quem citava regularmente (talvez até por eu ser descendente dele) alguns versos, tais como o «De fé, que não de sofismas/ Quer Deus os peitos acessos», e o dito pioneiro contra a escravatura e em defesa da dignidade e fraternidade humana: «Espíritos vindos do céu lançados na praça pública». Levou o título de Sá de Miranda e a Cultura do Renascimento, I Bibliografia, de 1972,  e foi realizado num in-fólio de 507 páginas pela excelente tipografia bracarense dirigida tecnicamente pelo seu grande amigo e filantropo Félix Ribeiro. 


 Já o catálogo, impresso em Braga, da exposição bibliográfica  L'Humanisme Portugais (1500-1580) et L'Europe, realizado para o XXI Colloque Internationale des Études Humanistes, e que decorreu na Biblioteca Municipal de Tours, em 1978, inclui 100 livros quinhentistas raros, bem descritos, e divididos pelos capítulos: "O Renascimento e Humanismo na Europa, o Humanismo Português e a Europa, o Humanismo nas Letras portuguesas, o Humanismo nos textos religiosos, Repressão, o fim do Humanismo em Portugal".  As 888 páginas das Actes só virão à luz em 1984, dadas à luz pelo Centro Cultural de Paris, e nela se contém as comunicações de 36 dos melhores estudiosos, tais Jean Aubin, Francisco Rico, Louis Bardon, Jean Subirats, Paul Teyssier, Sylvie Deswart, e Anibal Pinto de Castro, Costa Ramalho, Tavares Pinho, Jorge Alvares Osório, Manuel Augusto Rodrigues, José A. Freitas de Carvalho, Martim de Albuquerque, Luís de Matos, Luís de Albuquerque, Vitorino Magalhaes Godinho, e a lição inaugural de Pina Martins: Humanisme Chrétien au Portugal (XVI siècle). Quanto a outro bem valioso: A Utopia de Thomas More e o Humanismo Utópico, 1485-1998 Catálogo de uma síntese biblio-iconográfica, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1998, realizado com a colaboração das suas discípulas e amigas Maria Valentina Sul Mendes e Margarida Cunha continha 97 espécies muito bem catalogadas e comentadas, em 168 páginas. No estudo introdutório afirma:«A Utopia de Thomas Morus não apareceu em Lovaina em 1516 ao toque de uma varinha mágica. Teve, naturalmente, como todas as grandes obras humanas, os seus antecedentes, os seus elos genéticos, as suas fontes. Fontes clássicas antigas e fontes clássicas modernas», das quais nomeia, e em função dos exemplares expostos, Platão, Plotino, Pico della Mirandola, a Hypnerotomachia Poliphili, de 1499, de Aldo Manuzio, e o Novo Testamento, na tradução bem valiosa de Erasmo, referindo ainda as várias publicações que na época divulgaram a gesta da expansão, e escrevendo mesmo: «É sabido que a Utopia não existiria sem os Descobrimentos Portugueses».

Catálogo de uma síntese biblio-iconográfica e exposição, intitulada a VTOPIA. I de Thomas More e o Humanismo Vtópico, com a pintura de Thomas More de Holbein, na cópia em óleo de Fernando Alves de Sousa e que presidia à sala oriental ou norte (Europa do Norte) da Biblioteca de Estudos Humanísticos.

Na sua última exposição, Europa e Cultura. Alguns livros fundadores da Cultura Europeia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, é  sua a Concepção, Introdução, Coordenação, pesquisa bibliográfica, descrição catalográfica, notas bibliográficas e índices - e a obra está dividida em seis capítulos: Cultura Clássica e Humanística. Cultura Literária. Cultura Filosófica e Ético-Política. Cultura Científica. Cultura Histórica e Pedagógica. A Teologia. A Religião., onde brilham em 207 páginas os 69 livros escolhidos, bem descritos e contextualizados. Conservo um exemplar com uma bela dedicatória sua. 

Resumindo esta sua vertente intelectual, organizativa e estética, diremos que os seus catálogos, e deveremos relembrar outros ainda, não tão imponentes, mas valiosos e consagrados a grandes almas presentes na Biblioteca Nacional, como Erasmo na Biblioteca Nacional, Lisboa, 1987, com 335 cimélios descritos por Maria Emília Lavoura e introduzidos e anotados bibliograficamente por Pina Martins,  Marsilio Ficino (1483-1499) e Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) em Biblioteca Portuguesas, Lisboa, 1989 e Aldo Manuzio, ficam na história das exposições bibliográficas como incontornáveis e dificilmente superáveis. 

O futuro das conferências e exposições dedicadas ao Humanismo é hoje uma incógnita pois embora haja cada vez mais fontes e instrumentos de análise acessíveis aos investigadores, o Humanismo é algo desvalorizado nos nossos dias de cientismo exagerado e de predominância da internet, redes sociais e novas gerações de responsáveis políticos ou culturais menos cultos e mais economicistas e pragmáticos, frequentemente demasiado alinhados ou condicionados, perdendo-se a respiração mental criativa não censurada que apoia ou sustente os bons escritores, investigadores e responsáveis. Cremos contudo que, para além da produção regular de bons artigos e teses, haverá, por ocasião de centenários, novas ressurgências de colóquios e exposições, com valiosos estudos sobre o Humanismo, a par do que foi sendo dado à luz em revistas universitárias ou de estudos especializados.

Em Maio de 2007, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que já em 1990 dedicara um numero duplo (13/14) da sua Revista ao seu Professor, organizou um encontro pelo seu Departamento de Literaturas Românicas, do qual resultou a publicação em 2008 dum livro Magnum Miraculum est Homo. José Vitorino de Pina Martins e o Humanismo, contendo sete comunicações valiosas, as duas primeiras sobre Pina Martins, as de Elsa Gonçalves e José Augusto Cardoso Bernardes, as outras sobre temas do Humanismo e da Cultura Portuguesa, tais as de Maria Vitalina Leal de Matos, Aníbal Pinto de Castro, Maria Lucília Gonçalves Pires, Ana Maria S. Tarrio e Isabel Almeida. De destacar a da Elsa Gonçalves, que encontrei mais de uma vez na casa de Pina Martins e de Primula, e que tendo-o conhecido muito bem, desde 1973, em Roma, pois era a Leitora de Português na mesma Universidade La Sapienza, em que Pina Martins o fora vinte anos anos antes, dá um valioso testemunho pessoal: José V. de Pina Martins: um modo de ser humanista.

Como a serpente-dragão Ouroboros, da Tradição Hermética alexandrina, com a qual José V. de Pina Martins estava familiarizado, por via das edições que possuía de Aldo Manuzio de 1498 e de 1505, na tradução pioneira de Marsilio Ficino, mas não só já que Pico della Mirandola, Beroaldo, Reuchlin, Agostino Steuco e Giordano Bruno, que ele lera, também a cultivaram, serão os últimos anos da sua vida aqueles nos quais a sua criatividade livre, e já não sujeita ao intelecto rigorosamente académico e científico mas antes pessoal e imaginal, vem de novo ao de cima, no que podemos considerar  o seu romance de aventuras da alma dos livros humanistas e dos que a amam: Histórias de Livros para a História do Livro, de 2007, uma obra incontornável para os bibliófilos em geral ou dos que se interessam mais pelos primeiros séculos da tipografia e as grandes correntes de ideias do Humanismo, com as suas lutas e realizações.  

Será porém na tradição utópica que José Vitorino de Pina Martins, como um dos últimos humanistas Fiéis do Amor e da Sabedoria, como foram Pico della Mirandola, Erasmo e Thomas More, ou entre nós Jorge Ferreira de Vasconcelos, nomeadamente com a sua Eufrosina, e o  Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, canto de cisne da cavalaria e do seu quixotismo amoroso, vai pensar, imaginar e propor, com muita originalidade e profundidade, numa verdadeira obra alquímica, a sua Utopia III, dada à luz em 1998, e na qual revisita a obra e o discurso de Rafael Hitlodeu no séc. XVI, e os compara ao que se passa na Utopia III de hoje, que lhe é narrada por um Miguel Hytlodeu,  face ao que se vive na Lísia ou Portugal actual. Estamos assim numa original e desafiante intersecção trina do passado, presente e futuro, que poderá gerar até o nosso quaternário, pelo Bem e a Verdade para hoje e sempre...


A criação da Utopia III,  elo tão importante e português da tradição utópica, tão necessária nos nossos dias, e que ele já trabalhara em 1998 organizando um simpósio internacional sobre o Pensamento Utópico do Humanismo na época do Renascimento, na Academia das Ciências, impulsionou ainda a ressurreição do seu arquétipo renascentista, em 2006,  na Fundação Calouste Gulbenkian, com a entrega à luz da primeira tradução lísia directamente do latim e anotada da Utopia, de Thomas More, feita com grande rigor e qualidade pelo seu amigo e notável latinista e professor Padre Aires Augusto Nascimento, com um  Estudo introdutório à Utopia moreana por Pina Martins.
 

A Utopia III, editada posteriormente em 2005 na sua edição corrigida e definitiva, em volumoso fólio oceânico de 475 páginas de amplas margens,  numa tiragem de 738 exemplares, nas Edições APPACDM de Braga, de Félix Ribeiro (o Dr. Ditoso Cristalino, "que imita na perfeição Aldo Manuzio" e S. João de Deus, como nos diz no livro), é tão valiosa nas críticas e propostas quão exigente do tempo e da receptividade dos leitores, embora quem entre nela emocione-se logo com os enredos e admire os ensinamentos que resultam da comparação entre a modelar vida da Utopia, a III, algures no Oceano Atlântico, e a de Portugal ou Lísia contemporânea. Com bastante de autobiográfico, perpassam muitas das pessoas que mais amou, seja da história passada seja actuais, ou com quem mais trabalhou, sob pseudónimos não muito difíceis de descodificar e, nos luminosos diálogos de Miguel Hytlodeu, o embaixador da Utopia, e Pina Martins,  vai-se comparando salutarmente o estado da comunicação social, da política (na Utopia III, por exemplo, não há partidos), do urbanismo, da ecologia, da cultura, da Academia das Ciências, da educação, da Universidade, da moral, do amor e da religião lisboeta e portuguesa, com sugestões de melhorias da vida individual, urbana e social, tão necessárias face ao estado geral algo dominado pelos interesses particulares e partidários de alguns com  poucos conhecimentos, ideais ou mesmo ética. E assim dirá:«Se os homens conseguirem despoluir-se, acabarão também por despoluir os rios, as fontes, as florestas. Há que começar pela despoluição espiritual da mentira que é, sob todas as suas formas, uma peste que corrói e destrói, sida da alma» (p.111).

 Já os capítulos da Histórias de Livros para a História do Livro, num in-fólio de 339 páginas, ilustrado são bem mais curtos e  menos filosóficos e reformadores sociais, retratando a sua vida de bibliófilo e em especial de especialista em livros  quinhentistas e do Humanismo, com cultas observações e passos por vezes bem divertidos nos quais as amizades e relacionamentos com livreiros, investigadores e pessoas amigas brilham, numa perenização de valiosos seres amantes dos livros e da cultura, com seus propósitos, sensibilidades e intencionalidades. Cada um dos cinquenta e quatro capítulos e o epílogo contêm uma gravura e partilham diálogos, vozes interiores, descrições e considerações acerca de cada livro, livreiro, investigador e amigo, oferecendo-nos ainda aspectos interiores da sua personalidade, do seu libido librorum, das suas alegrias e desilusões, bem como da sua vasta gnose do Humanismo e dos seus mais importantes autores e obras. Quanto às personagens deste filme do mundo dos livros e livreiros, os seus nomes são ocultados sob cripto-nomes que não são contudo impenetráveis à decifração, para quem conheceu o meio alfarrabista e bibliófilo português, perpassando ainda outras personagens,  já que foram muitos os investigadores e estudiosos, ora mais amigos e próximos de Pina Martins, ora que lhe deveram algumas indicações ou apoios,  e que até exprimiram tal em dedicatórias de livros e opúsculos que não ficaram contudo perenizados na preservação da sua biblioteca, ao dispersarem-se. 

                                                 

 Dirige oculus in te ipsum, um convite à auto-consciência e à clarividênciafoi um mote ou empresa que José V. de Pina Martins usou nas capas dos livros das suas primícias de escritor, quando escolhera bem fundamentadamente o pseudónimo de Duarte Montalegre e a sua sensibilidade religiosa, metafísica e mística era intensa, ardente, sendo um cristão activo ou militante, crente nos Evangelhos e adorante do mestre Jesus e da Divindade.

Com o decorrer do tempo, com a abertura a uma erudição mais universal  e o assumir de  tarefas e responsabilidades maiores, embora não fosse um praticante de meditação oriental, em quem se cultua mais a consciência desse olho espiritual e da necessidade do recolhimento meditativo para o ter mais prestável, não deixou contudo de manter o seu fogo interior inato vivo, com as suas introspecções, meditações e intuições, bem indicadas em vários dos capítulos, e mais em especial nos dedicados à religião, na Utopia III, ou referidas nas  Histórias de Livros para a História do Livro, tal como por exemplo no seu diálogo frequente com "a voz longínqua", ou o daimon interior, no fundo, numa linha pitagórica, socrática e iniciática, com o seu subtil espírito. Pelo lado factual ainda, Pina Martins pronunciava até regularmente uma oração mental diante da pintura de S. Thomas More que tinha na sala oriental ou a nascente da biblioteca, para saudação, inspiração ou protecção.

José Pina Martins em comunhão com os seus amigos Thomas More e  Marcel Bataillon, a quem se iria juntar brevemente. Fotografia inédita.
 Porquê não diante da sublime pintura quinhentista de Pico della Mirandola, que era quem eu mais saudava quando entrava na sala ocidental onde ela estava, para depois catalogar a sua biblioteca,  ou mesmo de Erasmo (embora estivesse no andar de cima, raramente frequentado), a quem alguns erasmianos rezavam: Sancte Erasmo, ora pro nobis, segundo o que ele exclamara perante Sócrates, mas sim face a face com a invocação espiritual de Thomas More? 

Fotografia inédita de Pico della Mirandola na biblioteca de José V. de Pina Martins.

 Talvez devido a um respeito de fundo da Igreja Católica pois só ele fora  santificado e logo podia ser legitimamente invocado, sendo hoje até o santo patrono dos advogados. Mas certamente também porque via nele um dos mais completos humanistas ("o melhor da Ânglia", dirá várias vezes na Utopia III, e seguindo o dito de Erasmo), dominando bem o grego e o latim, e que na sua multifacetada personalidade e actividade fez brilhar o  culto da letras humanas, a eloquente defesa  dos direitos humanos e da consciência íntima, sabendo dar a vida por eles e contrapor genialmente, face às injustiças da sociedade inglesa (ainda hoje em parte actuais) dos reinados de Henrique VII e VIII,   o modelo da Utopia, I, e esta III, onde a igualdade dos utopianos, o menosprezo do dinheiro, a vida sóbria e harmoniosa, a educação permanente, o culto da verdade e de Deus, a perfeição e a felicidade de cada ser, dentro do Bem comum, são os valores e objectivos dos seres e do Estado...

 A convivência de tantos anos com as imagens dos seus mestres e amigos, seja nas pequenas fotografias dos humanistas modernos seus pares e mais amigos, tal Marcel Bataillon e Eugenio Asensio, seja dos humanistas antigos, dos quais tinha bastantes gravuras antigas e até pinturas modernas por ele próprio encomendadas aos pintores  Fernando Alves de Sousa e Pedro Girão, tais as de Thomas More, Erasmo, Dante e Damião de Goes e, claro a joia da sua coroa de amante do Humanismo, o belíssimo quadro quinhentista de Pico della Mirandola, sobre o qual fez uma sábia tese e dissertação no seu doutoramento, não podiam deixar de intensificar a aura sacra que os muitos livros quinhentistas, de bons autores e bem encadernados (alguns que ele gizara com o notável mestre encadernador Império Graça) criavam ou emanavam na sua Biblioteca de Estudos Humanísticos.  

 O profundo conhecimento e amor de José V. de Pina Martins ao Humanismo é mesmo a justificação que na Utopia III é dada (pág. 11), para ele ser o redactor escolhido da obra, pois era o  «lísico que mais ama Thomas More, Desidério Erasmo e Pico della Mirandola», e «que mais admira Aldo Manuzio». «Possui (...) um Amor acrisolado, entranhado, visceral, aos três maiores  humanistas do Renascimento e, como sabe, o Amor vence todas as coisas, Amor omnia vincit, assim como a fé transporta montanhas. Sabe ler e escrever, pois tem lido e escrito muito na sua já longa vida. Conhece os textos, ama os seus autores, eles vivem em sua casa, na sua biblioteca, dentro de si.» Grandes verdades que todos nós deveríamos realizar, alcançar e irradiar, na comunhão com estes grandes seres que nos antecederam e inspiram...

Fotografia inédita do corpo mais ocidental da Biblioteca, com Pico a presidir e, com a luz  do sul pelas costas, a secretária onde durante meses cataloguei os livros...

Aí recebia os amigos, mostrava algumas raridades, fornecia indicações a investigadores ou dialogava sobre os autores, os livros e as ideias, por vezes partilhando mais a sua vida e experiência. Também por duas vezes, a 1ª em 1999, celebrou-se nela o Convívio Platónico de 9 de Novembro, que Marsilio Ficino iniciara em Careggi, na Academia Platónica de Florença, em homenagem ao “divino Platão” que nascera e falecera nesse dia, e dentro da nossa comum fé e gnose da existência da comunidade ou  corpo espiritual místico da Humanidade. 

 Durante mais de um ano tive o privilégio de nela trabalhar regularmente catalogando as suas obras e manuscritos e ouvindo as suas visões dos livros e autores e das ideias filosóficas e teológicas que os moviam, transmitindo-lhe também as minhas compreensões  ou as vivências do caminho, algumas devedoras da tradição espiritual da Índia e da qual ele pouco conhecia. Noutras vezes eram conversas e gravações sobre a sua vida tão rica e movimentada, e as suas apreciações de muitos autores e individualidades importantes e de valor.

A ala oriental do andar superior da Biblioteca de Estudos Humanísticos, com a  pintura a óleo de Erasmo. José V. de Pina Martins, já com 88 anos, e eu.
Pessoalmente, como pessoa que conviveu com ele nos últimos dezasseis anos da sua vida (e o acompanhou mais nos últimos tempos, pois libertou-se da Terra com 90 anos), com muitos diálogos e estímulos, tal o da minha tradução (com Álvaro Pereira Mendes), comentada, do Modus Orandi Deum, de Erasmo, em 2008,  dedicada a Erasmo e a ele primacialmente, só posso dar graças por ter convivido com alma tão culta, sábia e bondosa, aberta aos mistérios do ser humano, do espírito e do divino, e capaz de trabalhar incansavelmente, como capricorniano que era, como diria Marsilio Ficino e ele próprio afirmava, apoiado plenamente por sua mulher Primula, alma de profunda bondade e cristandade, e seguido por sua filha Eva Martins, iniciado por ele no amor da cultura, dos livros e da investigação, tal como Pina Martins o fora pelo seu pai, com a sua biblioteca de livros de história, literatura e religião, em Penalva de Alva, concelho de Oliveira do Hospital, e todos nós deveremos ir realizando face ao avassalamento do digital virtual que leva a um minimalismo material natural em prol de uma manipulada artificial meta-realidade frequentemente opressiva, que nada tem a ver com o ler, anotar e reflectir um livro calmamente sentindo-o, intuindo-o nas mãos, ainda que certamente a acessibilidade aos textos e informações tenha melhorado extraordinariamente...

 José V. de Pina Martins confessou mesmo que fora essa pequena biblioteca familiar a despertar-lhe os primeiros sentimentos de amor e posse de livros, já que na tenra idade de três anos se afeiçoara a uma edição minúscula dos Lusíadas, do séc. XIX, com a imagem de Vasco da Gama na capa, e que sempre andava com ela, embora os livros de que se lembrava ter começado a ler fossem os de Conan Doyle e Júlio Verne, só a partir dos 17 anos se aventurando nos dos grandes filósofos.  Assim começara a sua participação na história dos livros e das bibliotecas do mundo, para a qual acabou por dar tão notáveis contributos imorredoiros, fazendo-nos congregar ainda hoje nesta nova obra sua, isto é, neste número de uma revista que ele também apadrinhou e frequentemente colaborou e que tem prosseguido valiosamente a senda dos estudos humanísticos em Portugal, na Europa e no Mundo.

Nos nossos dias em que a dignidade e naturalidade humana com os seus direitos e deveres, está tão manipulada e ameaçada, com tanta negação da paz universal sonhada por tantos e em que há tantas causas a fazerem estilhaçar-se o adágio desenvolvido por Erasmo e que Pina Martins citava Dulce bellum inexpertis, a guerra só é agradável para quem a desconhece, a mensagem dos Humanistas e de José V. de Pina Martins, valorizadora, na sua dimensão tripla de corpo, alma e espírito, da dignidade humana, do livre arbítrio, do studium, da docta pietas, da virtus e da paz, tão aprofundadas pelos humanistas, deve ser mais do que nunca ecoada e transmitida pelas letras humanas e os livros, pela eloquência virtuosa e a consciência fundamentada e livre, tal como José Vitorino de Pina Martins, com muito talento de bem fazer, exemplificou e alquimizou em tantas obras, e em especial na sua desafiante e perene Utopia III, a fim de alcançarmos e vivermos mais o conhecimento verdadeiro, a liberdade, a felicidade, a imortalidade consciente e a ligação amorosa à Divindade...

                                                  Lux, Veritas, Amor! Gratia Dei!

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