terça-feira, 16 de novembro de 2021

Pensamentos, Reflexões e Máximas, do Padre Transfiguração, franciscano, publicados em 1806 e comentados em 2021.

Em 1806 saía a à luz no Porto, na Tipografia de António Alvarez Ribeiro, o Tomo I das Obras Póstumas do Reverendo Padre Mestre Transfiguração, franciscano, professor de Filosofia. Esse Tomo I que contém os seus Pensamentos, Reflexões e Máximas,  é dado à luz por "José Pedro da Cunha Coutinho, presbítero secular professo da Congregação de Oliveira do Douro [em V. Nova Gaia], único amigo do autor"...

E, passados 214 anos, possuindo o livro, resolvi seleccionar alguns desses pensamentos, transcrevendo-os e comentando-os, numa disposição anímica de comunhão com os geradores de um livro de sabedoria,  aparentemente algo trágico, pois diz-se que a obra é póstuma, que o seu autor «nunca pode resolver-se a dar à luz alguns de seus Escritos» e, morrendo cedo, «aos trinta e tantos anos», dependera «do único amigo» para os publicar, o que apontaria para que o autor estivesse  bastante isolado, apesar de ter sido Lente ou professor da ordem de S. Francisco, e alguns amigos ou colegas o tivessem instado a publicar as suas cogitações. 

É  valiosa a descrição da amizade dos dois:« Ora, este Padre, como era muito meu amigo, como fiava muito de mim, porque na verdade eu e ele éramos uma só alma, e posso dizer sem hipérbole, que eu a seu respeito fui este outro eu, que ele chame num dos seus Pensamentos - o só verdadeiro, e único amigo do homem; nas vésperas da sua partida legou-me todos os seus papéis, indicando-me os que podiam ver a luz da impressão...» 

A obra não é rara, tem pouca cotação como alfarrábio, e valorizarmos plenamente todo o seu conteúdo é difícil, pois se encontramos bons pensamentos, justos e sãos, de facto, como o "autor diz ao leitor", o tónus é o de uma visão crítica dos defeitos humanos, por vezes até com  preconceitos, nomeadamente em relação à pessoa normal, à mulher, aos protestantes, aos ateus, embora reafirme haver muita pessoa boa. 

Todavia, pelo amor aos livros e nomeadamente aos de reflexões, valiosos para a tradição espiritual portuguesa e até pela sua função de biblioterapia, porque  me veio parar às mãos algo cansado e manchado e, como já dissemos, ecoar certa incomunicabilidade, resolvi-me a ressuscitá-lo, relativamente, claro, nos pouco leitores do blogue, e fazendo votos que algumas energias de luz e de amor cheguem até aos dois amigos, que contudo na realidade serão um só e o mesmo, conforme nos esclarecem Sampaio Bruno, no Porto Culto, de 1912, e recentemente Joaquim Domingues num excelente artigo de investigação e contextualização O Padre Transfiguração na génese da nossa contemporaneidade, publicado na revista Itinerarum, no nº 199, de 2011, onde narra alguns dados importantes da sua vida,  tendo nascido em 1740 com o nome José Pedro da Cunha, o tal amigo  e editor, e vivido até 1740 e 15-IV-1815, como professor de filosofia e pregadora apreciado, pelo que vemos portanto que não era póstuma a obra, editada em 1806, em que entraremos agora um pouco...

                 O autor, na Justificação, deseja que todos entrem no fundo de si mesmos e, saindo do mundo e da natureza corrompida, encontrem o seu bem último e bondade intrínseca, tanto como espíritos individualizados imortais como também enquanto seres provindos da Divindade.
                                   

A obra tem a dedicatória e uma prefação do editor, da qual já transcrevemos partes, e umas palavras Do Autor a quem ler, e logo a Justificação do Autor a propósito, tudo encavalitando-se em mais  352 páginas de reflexões críticas das negatividades humanas, por vezes ousadas ou difíceis, e por isso não admira o P. Transfiguração ter de advertir de início (como se pode ler nas imagens) que há gente boa e não só desnorteada pelas paixões e corrompida, e na última página apresentar uma bem arquitectada Protestação, pois se em «algum destes meus sentimentos não vou coerente com o sentir comum da Santa Igreja Universal ou com o verdadeiro sistema da minha Pátria, de que eu faço muita glória, para eu me explicar, desdizer ou retractar, sendo possível, ou preciso. Sou igualmente filho da Igreja e Vassalo do Império». Justificava-se pois o autor era algo ousado na sua sede de justiça e perfeição para o meio português de então e já tivera problemas com isso.

Entremos então em alguns pensamentos dos professor de Filosofia, o Padre Mestre freire José da Transfiguração, que nas suas palavras introdutórias confessa ter apreciado muito «a obra imortal dos Pensamentos de Rochefoucauld  (...) embora muito antes de eu conhecer a este homem raro, e extraordinário, tinha eu já produzido em muitos dos meus Sermões não poucos dos Pensamentos do meu Livro; não me atrevo contudo a afirmar se com a mesma facilidade, que ele.»  Desses sermões foi publicado um volume de vários no Porto em 1790, e outro de um pronunciado em Braga em 1803, e Joaquim Domingues transcreveu de manuscrito o Sermão de São Marcos pregado na capela Real de N. Senhora da Ajuda em 1785, onde está patente a sua inteligente pregação e a sua exigente visão dos trabalhos a que todos somos chamados para um dia recebermos a paga justa do mestre Jesus, onde interroga quase erasmianamente os religiosos, os juízes, os oficiais, os pobres, e ele próprio quanto à correcção das suas vidas e esforços, pois «cuidamos tão  pouco em trabalhar por nos vencermos a nós mesmos e ao mundo, que são os dois únicos inimigos que se atravessam no caminho da nossa Salvação», aqui curiosamente saindo da tradição cristã que fala num terceiro inimigo, o Diabo.

O Padres Mestre Transfiguração,  aceitando a relatividade das verdades humanas, adverte, no final Do Autor a quem ler, que não iria responder a críticas, «porque sendo verdade, que o pensar de cada um dos homens se compõem directamente do espírito, do génio, e das instituições, cada um dos meus Leitores deverá ser racional para não me criminar de eu não discorrer como ele: e para estes é que eu deixo pesar um trabalho, em que só a boa fé teve toda a parte. Quanto aos Censores da língua, nem quero a sua aprovação, nem temo as suas notas.»

I - Amigo Verdadeiro.  1. «Um amigo verdadeiro é uma pedra preciosa; pode dar-se tudo para o topar.»  2. «É tão difícil achar-se um amigo verdadeiro, como é impossível encontrar-se outro eu.» (...) 4. Em toda a vida do homem há só um caso de se provar o amigo verdadeiro; que é o desconsolado momento da nossa desgraça. Em quanto somos felizes, e só o interesse quem nos faz roda. O comum dos amigos é bem como estas aves, a quem vemos somente na Primavera.»

Para além de enaltecer o valor das almas verdadeiramente amigas, e como tal é tão raro de se topar, e portanto tão merecedor de ser amorosamente cultivado, o padre mestre Transfiguração insere-se na tradição pitagórica discretamente, ao ecoar o famoso dito: "não tenhas andorinhas na tua casa", que se interpreta nesta linha de interesse, de egoísmo, de ingratidão e ainda da superficialidade no falar e nos interesses de algumas pessoas que se fazem amigas , ou o são, mas dispersantes das nossas melhores potencialidades.

II - Amor. «Não é bastante para enfraquecer um amor, que ele tenha sido mal pago: um amor generoso não espera retribuição, e uma alma grande paga-se de si mesma.»

Este pensamento ajuda-nos a discernir quão grande ou verdadeiro ou forte é um amor: não se enfraquece quando é mal respondido ou pouco reciprocado. E a razão que o P. Transfiguração dá é boa: característica do verdadeiro amor é não esperar retribuição, ´ter suficiente em si mesmo, de alma e de amor, que se satisfaz, se retribui, se replenifica ainda que tenho dado muito e nada recebido do outro.»

III -  Filosofia. «A Filosofia por uma de suas partes é tão necessária para os outros conhecimentos, de que se precisa nesta ordem coisas, como a alma é necessária para mover o corpo; de sorte que sem aquela, um grande Letrado será bem como um Navio carregado de géneros, mas imposto da barra sem leme.»

Nestes tempos de menosprezo pelo saber humanista e filosófico, é importante relembrarmos esta valorização do saber filosófico como a alma não só dos conhecimentos como da própria direcção ou orientação da vida.

«O primeiro bom efeito de uma sã Filosofia é ensinar aos seres humanos a conhecerem-se a si mesmos. Um Filósofo inchado é um odre de vento, que cede ao mais leve furo de uma agulha.»

Este auto-conhecimento implica muito ou a meditação ou uma escrita interrogante, às vezes num estilo de diário, ou então diálogos fortes e sinceros com alguém muito próximo.

IV - Paixões. «Somos tão cegos com as nossas cousas, que por mais defeitos, que elas tenham, nunca lhos divisamos; a nossa paixão é bem como um denso véu, que elas trazem sobre si, que não as podemos atravessar com a vista; de sorte que precisamente hão de ser boas, porque são nossas, e não nossas porque são boas.»

Bastante valiosa esta ideia que cobrimos seja as coisas seja a nossa percepção delas com um véu que nos impede de discernir verdadeiramente o seu valor, a sua justiça, e até que ponto é que estão a desviar-nos da verdade e da felicidade, acontecendo isto sobretudo ao que nós gostamos ou nos habituamos, ou ao que chamamos nosso.

V - Sábio. «O Verdadeiro Sábio parece algumas vezes ficar vencido não prosseguindo com calor nas demonstrações da verdade. É imprudência empreender de ensinar em um instante a ignorância, ou desabusar de repente a um juízo, encabeçado de puerilidades do berço, de preocupações dos Mestres, e das impertinências de alguns livros»

Estes pensamentos do nosso franciscano são valiosos, pois mostram-nos a necessidade de segurarmos com as rédeas o fulgor apaixonado de um diálogo ou discussão, quando podemos intuir que a outra pessoa sabe muito pouco do assunto e não vai gostar nada de consciencializar-se de tal. Como também, porque, certas vezes, as pessoas estão já tão habituadas a um conceito ou juízo, que tirá-las dele de uma vez ou muito depressa é contraproducente ou inútil.

A expressão "encabeçado das puerilidades do berço", também é muito forte e rica, pois mostra-nos algumas pessoas com grandes cabeças cheias de infantilidades ou imaginações recebidas na infância. É certo que este dito até se pode aplicar contra algumas puerilidades que a Igreja ensinou às crianças e aos católicos.

"Encabeçado das preocupações dos Mestres", é também uma boa crítica à dependência excessiva dos grandes teólogos, ou filósofos, ou professores, e quando quase já não se pensa ou medita por si mesmo. Já no Renascimento Erasmo e Ulrich von Hutten se ergueram contra os mestres sorbónicos e dominicanos que, petrificados na escolástica medieval e na literalidade das Escrituras se tornavam impermeáveis à crítica textual e ao sentido espiritual e  crítico libertador.

Finalmente "encabeçados pelas asneiras e insensatez dos Livros", tanto profanos e sagrados, e muita, muitíssima gente ficou apanhada nas malhas subtis de tanto livro sagrado, ou revelado, ou canalizado.  Em tudo isto sente-se bem a experiência do professor de filosofia e história eclesiástica e quem sabe mesmo se algo das críticas irónicas de Elogio da Loucura, de Erasmo, certamente lido por ele, ecoa em algumas destas imagens encabeçadas que se formam na nossa imaginação, quando o que devia brilhar são conhecimentos vividos e que geram auréolas, nimbos de sabedoria e amor, aberturas ao Sol divino da Verdade...

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