quarta-feira, 24 de novembro de 2021

João de Deus e Antero de Quental, ou as "Folhas Soltas" enaltecidas por Antero. Com o poema "Adoração, dedicado a Fernando Leal e comentado por Pedro Teixeira da Mota..

                                      

ADORAÇÃO

 (A Fernando Leal)


Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par!
Contemplei-o de longe, mudo e quedo,
Como quem volta d'áspero degredo,
E vê, ao ar subindo,
O fumo do seu lar!

Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual!
Suave como lâmpada sagrada,
Benvindo, como a luz da madrugada,
Que rompe ao navegante
Depois do temporal.

Vi esse corpo de ave!
Que parece que vai
Levado, como o sol ou como a lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!

Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!

Tremo apenas pressinto
A tua aparição!
E, se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor o que eu sinto!
É uma adoração!

Que as asas providentes
Do anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!»
 
Eis um dos belos poemas de João de Deus publicado nas Folhas Soltas,   dadas à luz pela Livraria Universal de Magalhães & Moniz, Editores, ao Largo dos Loios, no Porto, em 1876. 
Adoração dedicada ao seu grande amigo Fernando Leal, e embora  pouco saibamos de tal amizade, como Leal foi amigo de Antero de Quental desde Junho de 1880 observamos em algumas cartas posteriores de Antero de Quental a João de Deus interrogá-lo  por ele (e Gomes Leal, pois eram parentes e amigos) e enviar-lhes cumprimentos.
João de Deus, nascido em S. Bartolomeu de Messines em 8 de Março de 1830, tinha já 46 anos, e era bem mais velho que Antero de Quental, nascido em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, em 18 de Abril de 1842, e que Fernando Leal, nascido em Margão, na Índia, em 15 de Outubro de 1846, e que após uma vida de oficial e explorador botânico, a conselho de Antero, regressou à Índia e se casou, curiosamente com a irmã da minha bisavó. Foi a dedicatória a Fernando Leal, a 1ª do livro, seguindo-se-lhe uma a Luciano Cordeiro e outra a Gomes Leal, que me impulsionou a escrever este artigo quando folheava as Folhas Soltas.
 

Dessa maior madureza e classicidade estava bem consciente
 Antero de Quental que numa carta ao poeta  Tommaso Cannizaro, seu tradutor para italiano, e amante da Literatura Portuguesa, dez anos depois, em 5 de Dezembro de 1886, refere deste modo as Folhas Soltas:
 «Não sei porque esquecimento deixei em tempo de lhe enviar esse outro volume de João de Deus: Folhas Soltas. Remedeio agora esse esquecimento. Há neste volume muita coisa satírica e jocosa, que só os da terra podem apreciar e até entender, pelas alusões a coisas e pessoas de cá e pela linguagem familiar. Entretanto no meio dessas composições especiais, que para Você não oferecem interesse, encontrará outras líricas, do mais alto valor, e até não sei se diga das mais belas entre todas as deste incomparável poeta, pelo menos esteticamente, pois representam o seu período de equilíbrio e madureza perfeita, o período clássico ( se assim posso dizer) em que cada artista ou poeta atinge a sua maneira definitiva e a plena harmonia das suas faculdades de expressão. Pelo contrário, 3 ou 4 dessas composições (como, por exemplo, "Quando a luz dos teus olhos contemplo") são das primeiras que ele fez e quase ao sair da adolescência. João de Deus, como Rafael, tem variado umas poucas vezes de maneira, sem deixar de ser sempre o mesmo». Anote-se que uns meses depois Antero, respondia  a Tommaso Canizaro, que lhe pedira a morada de João de Deus ( Rua de S. António à Estrela, 138): «Deste nosso lírico lhe enviei, haverá três meses, o volume das Folhas Soltas, onde ao lado de muitas fantasias epigramáticas ou burlescas e de interesse só local, encontraria algumas das mais belas inspirações líricas do Autor»
Sentiria Antero de Quental esta Adoração, de João de Deus, como das mais belas? Creio que sim: na primeira sextilha, há a sensação da visão ao longe do olhar da amada,  como a do peregrino ou desterrado avistando por fim o lar.  Na segunda sextilha, João de Deus discerne no olhar dela um fluido especial, certamente do amor, e a luz santa, sagrada que irradia é como o bom porto para o navegante. Na terceira,   sente a sua corporalidade como que celestial, leve e majestosa. Na quarta, catolicamente, e João de Deus sempre o foi, ao contrário de Antero, face à atracção que o tenta, eleva-se à luz que ela irradia e sente-a mais como mãe. Na quinta, João de Deus vai ainda mais longe na sublimação da mulher que o atrai e encanta, pois se próximo dela estivesse, cairia de joelhos e a adoraria. Há como que uma elevação da mulher amada a face feminina da Divindade, algo que ao longo dos séculos muitos já sentiram enquanto cavaleiros do Amor perante a Amada que deixa passar através de si algo da Divindade, e se torna de certa maneira Deusa, Grande Deusa. Finalmente, na sexta e última sextilha, João de Deus vai ter de abandonar o seu voo poético amoroso e, podendo conclui-lo de várias maneiras, escolhe uma sublimação última, a amada não será como um anjo para ele, mas sim reza para que o seu  Anjo da guarda a proteja, já que ele se limitará à adoração de longe. 
Resta-nos concluir este poema de encantar contando que João de Deus se casou com Guilhermina das Mercês Battaglia em 1868 e teve dois filhos (um dos quais o continuador da sua obra pedagógica) e duas filhas, viveu na Terra até 1896, e certamente encontrou na sua mulher tanto os olhares e formas encantadoras como na sua alma e amor a Luz que todos demandamos, adoramos e eventualmente irradiamos.
 
Vinheta subtil e a contemplar-se de Bô Yin Râ, intervencionada...
 
Que a Luz e o Amor divinos fluam bem em João de Deus, Antero de Quental e Fernando Leal e que possamos nós comungar em tal fraternidade e luminosidade, agora e sempre, Amen, Aum...

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