quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Giovanni Pico della Mirandola e os Anjos, Arcanjos e Espíritos celestiais. Tradução do latim da sua "Oratio". No dia da sua libertação da Terra há 527 anos.

Pintura seiscentista de Pico della Mirandola e que pontificava no scriptorium de José de V. de PIna Martins. Fotografia do autor.

Comemorando-se hoje, 17 de Novembro de 2021, os 527 anos da libertação da Terra do genial Giovanni Pico della Mirandola, quando apenas perfizera os 31 anos de idade, mas já tanto se realizara ou divinamente se religara, resolvemos contribuir partilhando aspectos da sua visão do Ser humano e dos Espíritos celestiais,  traduzidos do seu famoso e valioso livro de 1486, e que era um preâmbulo a um debate público sobre 900 Teses filosóficas e teológicas que redigira,  De Hominis Dignitate Oratio ou, conforme as duas traduções portuguesas existentes, de Maria de Lurdes Sirgado Ganho e de Maria Isabel Aguiar, Discurso sobre a Dignidade do Homem, tendo eu em muitos aspectos divergido das palavras escolhidas por elas.  A pintura quinhentista inicial pertenceu ao notável humanista e amigo José Vitorino de Pina Martins, autor de dezenas de obras sobre o Humanismo, como consta na biografia que lhe traçei recentemente, que muito me estimulou no studium humanista e a quem dediquei o Modo de Orar a Deus, de Erasmo, que traduzi com Álvaro Pereira Mendes, e contextualizei e anotei.

Não é  tarefa fácil descortinar-se dos textos de Pico della Mirandola  plenamente a sua compreensão e visão dos Anjos, ou seja, a sua doutrina angélica,  pois as referências a eles estão dispersas por várias das suas obras e frequentemente ecoam os ensinamentos tradicionais do Cristianismo mas também das teologias antigas,  do chamado Paganismo, que todavia se pode denominar antes, e assim o foi, de Filosofia ou Teologia Perene,  ou ainda Prisca (antiga), e que Marsilio Ficino, Angelo Poliziano e Pico della Mirandola, Erasmo (moderadamente), Filippo Beroaldo e Eugubino Steuco, entre outros humanistas, pioneiros em tal comparativismo, muito pesquisaram e valorizaram. 

Que acreditava na sua existência não há qualquer dúvida, seja por fé, por razão ou por visão. Que conhecia as posições e doutrinas angélicas dos principais filósofos e teólogos pagãos ou gentios e cristãos há amplas evidências por citações de suas obras ou doutrinas. Que esteve frequentemente animado por grande amor a eles (ou com eles, a Deus), também não se pode pôr em causa,  sendo talvez mesmo animado por eles, e por isso provavelmente foi designado  como o Anjo sábio do Renascimento, tanto mais que o seu aspecto e alma eram bastante angélicos, tal como podemos observar no centro dum fresco florentino da época, entre Marsilio Ficino e Angelo Poliziano.  Vamos então seleccionar algumas das menções, e para já apenas do Discurso sobre a Dignidade Humana,  para que possamos senti-las, meditá-las e aproveitá-las interiormente, para crescimento das nossas asas, para incremento da nossa comunhão com a Divindade e a sua Luz e Amor.

Nesta sua mais famosa obra, a Oratio,  para muitos o manifesto do Humanismo, Giovanni Pico della Mirandola partilha bastante da sua compreensão e visão bastante original das hierarquias angélicas e eleva-se através delas de um modo tão fulgurante e belo que valerá a pena transcrevê-la, ainda que muito provavelmente não se trate de fruto de experiências espirituais, místicas ou iniciáticas, embora por detrás de tão belas palavras e intensos sentimentos possam estar não só leituras mas também vestígios de boas meditações coroadas de certezas, intuições, visões ou sensações-sentimentos fortificantes e, assim sendo,  vivências espirituais, embora ele não o afirme explicitamente e antes se inclua, humildemente, na humanidade caída. Talvez por tal humildade e "miserabilidade", nos últimos anos de vida recebeu a influência mais ascética e pessimista do frade dominicano Girolamo Savonarola (1452-1498) e do seu círculo anti-platónico de S. Marcos.
                                      
  O princípio da obra reza assim: “Li, padres colendissímos [de colendu, respeito], nos monumentos [livros] dos árabes, que o sarraceno Abdallah interrogado, sobre o que nesta quase cena mundana via com mais admiração, respondeu que nada via de mais admirável de que o homem. Sentença esta que está conforme com aquela de Mercúrio: "Grande milagre, ó Asclépio, é o homem".

Cogitando a razão deste dito não se me fazia suficiente o que por muitos foi referido da prestância [superioridade] da natureza humana: esse homem internúncio das criaturas, familiar dos superiores, rei dos inferiores, intérprete da natureza pela perspicácia dos sentidos, a indagação da razão e a luz da inteligência, interstício entre a estável eternidade e o fluxo do tempo e, como os Persas dizem, cópula ou mesmo himeneu [vínculo] do mundo e, como testemunha David, pouco menos que os anjos  (...)

Hermes, ou Mercúrio, Trismegisto, três vezes grande, na catedral de Siena. Um dos elos da Filosofia Perene, muito citado ao ser-lhe atribuído o Corpus Hermeticum, colectânea anónima de textos neo-platónicos e ocultistas escritos nos séc. II a IV d. C. na zona de Alexandria,  e que foram traduzidos por Marsilio Ficino do grego para latim em 1471, e a partir de tal se divulgando mais facilmente na Europa renascentista.
Que invada a nossa alma aquela ambição sagrada de não nos contentarmos com as coisas medíocres e que aspiremos pelas maiores (...)» 
 
Pico della Mirandola imagina então e narra o hipotético pensamento-programa de Deus quanto ao ser Humano, a sua geração, o seu posicionamento no meio do mundo, o seu livre-arbítrio e a capacidade de se transformar no que quer, e estabelece depois com bastante e esforçado engenho  uma visão dos mundos celestiais, com as suas hierarquias caracterizadas, apoiando-se nos autores e personagens do Antigo Testamento, e do Novo, nos Primeiros Padres da Igreja e no Pseudo-Dionísio Areopagita, já que conheceriam e saberiam mais dos Anjos, o que frequentemente não é o caso, mas também alargando-se aos mistérios (délficos, báquicos e apolíneos) e filósofos espirituais gregos, onde, para além de afirmar a concordância de Aristóteles e Platão, cita bastante Pitágoras, seguindo-se Zoroastro, os caldaicos, cabalistas, árabes e persas (tal como Avicena), e faz algumas analogias originais, próximas do seu famoso dito «A filosofia procura a verdade, a teologia afirma-a e a religião possui-a», co-relacionando-as com o trilho purificador e ascensional do Caminho espiritual, que tem como fim ou objectivo a religação à Divindade. 

Oiçamo-lo: «Quem se absterá de admirar o ser humano? O homem, que se encontra designado com justiça nos textos sagrados de Moisés e dos Cristãos, tanto pela expressão «todo de carne», tanto pela expressão "toda a criatura", tomando qualquer aspecto de carne ou as qualidades de não importa qual criatura, pois ele mesmo se figura, se modela, se transforma. Também o persa Evantes pode escrever, quando ele expõe a teologia caldaica, que o homem não tem qualquer imagem inata própria, antes tem muitas estrangeiras e adventícias. Donde a fórmula dos Caldeus: Enosh hou shinnoujim vekammah tebatoth baal haj, "o homem é um ser de natureza variável, multiforme e voltigente".

Mas a que tende tudo?  A fazer-nos compreender que ele nos pertence, pois a nossa condição nativa permite-nos ser o que nós queremos, e de velarmos sobretudo para que não nos acusem de termos ignorado a nossa elevada missão, ao tornar-nos semelhantes às bestas de carga e aos animais privados de razão. Que digamos antes, com o profeta Asaph [Salmos, 81, 6]: "Vós sois todos deuses e filhos do muito Alto". Guardemo-nos de abusar da extrema boa vontade do Pai, fazendo um uso funesto do livre arbítrio que nos deu para a nossa salvação. Que uma espécie de ambição sagrada invada o nosso espírito e faça que, insatisfeitos da mediocridade, aspiremos aos cimos e trabalhemos de todas as nossas forças a atingi-los (pois nós podemos, se nós o queremos). Desdenhemos as coisas terrestres, não nos preocupemos com as do céu e, para acabar, releguemos para segundo lugar tudo o que é do mundo, voemos à corte que está para além do mundo, perto da supra-eminente Divindade. É lá, como nos relatam os mistérios sagrados, que os Serafins, os Querubins e os Tronos têm o primeiro lugar; quanto a nós, doravante incapazes de bater em retirada e de suportar o segundo lugar, esforcemo-nos por igualar a sua dignidade e a sua glória. Por pouco que nós o queiramos, não lhes seremos em nada inferiores...

Mas de que meio dispomos nós, e o que podemos enfim fazer? Vejamos o que eles próprios fazem, que vida  vivem eles. Se nós assumirmos tal vida, também nós teremos posto a nossa vida ao nível da deles. O Serafim arde do fogo da caridade; o Querubim brilha do esplendor da inteligência; o Trono eleva-se na firmeza do julgamento.
Se portanto,
dados à vida activa, nós tomarmos conta das coisas inferiores mantendo direita a balança, seremos mais firmes na imutável solidez dos Tronos. Se nos pusermos retirados da acção para meditar o trabalhador na obra, a obra no trabalhador, e se a nossa actividade tomar a forma de umas férias contemplativa, nós resplandeceremos de todas as partes do brilho dos Querubins. Se nós ardermos de amor apenas para o próprio trabalhador e para ele só, é do seu fogo, que é voraz, que à imagem dos Serafins seremos abrasados, abraçados subitamente. Sobre o Trono, ou seja o justo juiz, Deus, senta-se e julga os séculos. Sobre o Querubim, ou seja sobre o contemplador, ele voa; e, como se o chocasse, ele aquece-o.

Quando o Espírito do Senhor move-se sobre as águas, eu entendo aquelas que estão em cima dos céus e que, segundo Job, louvam o Senhor nos seus hinos matinais. Aquele que é Serafim, ou seja amante, está em Deus como Deus está nele, ou melhor Deus e ele não são que um. Grande é a potência dos Tronos, à qual nós atingimos pelo julgamento. Suprema a sublimidade dos Serafins, à qual atingimos pelo amor. 

Mas como levarmos o nosso julgamento ou o nosso amor sobre o que não conhecemos? É o Deus que ele viu que Moisés amou; é do que ele viu na sua contemplação sobre a montanha que ele fez na qualidade de juiz, uma regra para o seu povo. Intermediário, portanto, o Querubim prepara-nos pela sua luz ao fogo Seráfico, tal como ele nos orienta pelo seu brilho para o julgamento dos Tronos.

Tal é o nó dos primeiros espíritos, a ordem paládica [de sabedoria de Palas], que preside à filosofia contemplativa: é ele que devemos primeiro obrigar e nos esforçar de atingir, aquele que devemos compreender ao ponto de sermos raptados pelo facto do amor, para descermos de novo bem equipados e preparados para as obrigações da vida activa (...)» 

Ora se Pico della Mirandola nas descrições das hierarquias ou coros de que trata, os mais elevados, os Serafins, Querubins e Tronos, está algo devedor do pseudo-Dionísio Aeropagita, mesmo assim dá os seus toques pessoais e originais nas ligações deles com as metodologias purificadoras e aperfeiçoadoras do ser humano, nomeadamente a justiça, a firmeza e o abrasamento amoroso, realçando bem como por trabalharmos tais qualidades sintonizamos com os espíritos celestiais, pois o Serafim arde do fogo da caridade-amor; o Querubim brilha do esplendor da inteligência; o Trono eleva-se na firmeza do julgamento.  

                     

E concluiremos por ora, com o seu valioso contributo para a melhoria das nossas possíveis relações com os três Arcanjos principais, ou mais conhecidos e venerados na Cristandade, conforme Pico nos segreda então  com bastante originalidade: «Invoquemos Rafael, o médico celeste, a fim de que ele nos liberte pela moral e a dialéctica, como por remédios salutares. Então, nos que formos restaurados, habitará doravante Gabriel, a força de Deus, que nos conduzirá através dos milagres da natureza: ele mostrar-nos-á por toda a parte a virtude e a potência de Deus, e por fim levar-nos-á a Miguel, o sacerdote supremo, para que, tendo-nos alistado ao serviço da filosofia, nos cinja, como duma coroa de pedras preciosas, do sacerdócio da teologia».

 E se não conseguirmos purificar tão bem o nosso pensamento e discernimento, nem sentirmos tais ligações tão elevadas ou excelsas, pratiquemos ao menos tais virtudes e concentremo-nos mais humildemente na oração, aspiração e comunhão, adorativa até da Divindade, com o "nosso" Anjo da Guarda....

E que Pico della Mirandola (muita Luz e Amor estejam com ele) possa inspirar-nos...

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