domingo, 14 de novembro de 2021

Sonho Oriental, Idílio e Aparição, sonetos de Antero de Quental, oferecidos inéditos a Maria Amália Vaz de Carvalho, para o "Feixe de Penas", sonhando o amor e intuindo a sua via solitária.

Em Março de 1884,  a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho,  convidada a colaborar numa festa de caridade, intuiu que a sua participação auxiliadora do Asilo das Raparigas Abandonadas seria organizar uma antologia, e  no ano seguinte nascia Um Feixe de Penas e, como  nos narra no fim das Duas Palavras de Explicação prefaciais, «pedi então a muitos dos mais formosos espíritos, das mais robustas individualidades literárias, dos pensadores mais sinceros e mais convencidos, dos mais finos e delicados cultores da poesia que me auxiliassem, e todos aqueles a cuja porta fui bater - romeira da Caridade - responderam fidalgamente e bizarramente à minha súplica.
A todos agradeço a obra boa e a obra bela, que a colaboração de tantos espíritos iluminados produziu.
Guardarei sempre no tesouro das minhas recordações
melhores, a memória deste momento, em que tantos nomes ilustres e geralmente queridos, vieram reunir-se num impulso generoso e santo, a pedido meu, sob a mesma bandeira caridosa, cujo lema abençoado, será sob todas as formas ainda as mais imperfeitas, para todos os espíritos ainda os mais cépticos, um das consolações eternas, uma das consolações inesgotáveis da cansada velha e entristecida Humanidade.» 

A colaboração foi ampla e valiosa, como ela diz e dos nomes estampados na capa do livro destacaremos apenas Camilo Castelo Branco, que o abre  com uma carta bastante irónica e até etnográfica, nos seus 59 anos adoentados e castigados com tanto pedido de colaboração, mas perenemente actual, pois conclui-a assim: "Além de que, Ex. Snr.ª, da maneira como neste país se está mendigando para tudo e por todos os motivos, o colaborador assíduo dos jornais de um número só [e por vezes almanaques], tornou-se o velho mendigo das romarias e das portas dos templos, garganteando clamorosamente: Ó pais e mães da caridade, contemplai... etc.

 Não seria indiscreta coisa, minha senhora, ver se os governos podem aguentar-se na sua missão providente de socorros à miséria dos seus administrados sem a nossa colaboração de Andadores das almas numa efectividade quase humorística».

Já Antero de Quental, em resposta ao pedido de colaborar nessa obra que sairia no ano seguinte, o Feixe de Penas, escreveu-lhe a seguinte carta  de Vila do Conde, a 1 de Abril de 1884: 

«Minha Senhora,  

Penhoradíssimo com a simpática confiança e boas palavras de V. Ex.ª, sinto não poder enviar-lhe coisa de mais valor do que três sonetos antigos - e oxalá não lhe pareçam, além de antigos, velhos também! Tentaria escrever algumas páginas em prosa, sobre matéria que valesse a pena, se V. Ex.ª me não dissesse que há pressa; e, com tal aperto, creio que me seria impossível achar um assunto, que é essa a dificuldade para mim maior. Eu mesmo pasmo às vezes, ao considerar quantos pensamentos e conhecimentos que tenho acumulado em tantos anos de estudo parecem não ter servido senão para me tornarem indeciso e para me esterilizarem! Mas, enfim, o que é, é.  - Os sonetos, que envio, apesar de antigos, são inéditos; e como imagino que o livrinho é destinado principalmente a correr mãos femininas, achei preferível contribuir com aquelas coisinhas antigas e ternas, que, em suma, são inocentes e não apavoram, a enviar-lhe dos Apocalipses que agora faço, "pesadelos rimados", como lhe chama um amigo meu, entendido em rimas e em pesadelos.

Folgo deveras por esta ocasião de poder dar a V. Ex.ª um testemunho da muito grande e respeitosa simpatia que sempre me inspirou e da admiração que professo pelo seu raro talento.

Sou, minha senhora, de V. Ex.ª

Criado humilíssimo, Antero de Quental»

 São então oferecidos a Maria Amália os sonetos Sonho Oriental, Idílio e Aparição, e esta carta é o único testemunho de Antero de Quental quanto a eles  e, tal como diz, são mais ou menos poemas inocentes e ternos, que pouco têm a ver com as suas produções denominadas "pesadelos rimados", estilo apavorante Apocalipse, este uma obra de imaginação de facto algo aterrorizante e messiânica e que hoje se sabe não ter sido escrita por S. João Evangelista, mas por um zelota que acreditava que brevemente seria o fim e julgamento do mundo, e a vinda de Jesus.  Todavia, além dos três sonetos, misteriosamente, o Feixe de Penas finda com mais uma colaboração de Antero de Quental, O que diz a Morte, que será posicionado como o penúltimo da edição dos Sonetos Completos, em 1886. 

 De quem partiu a iniciativa desta publicação, de novo de um poema inédito, e que não tem sido equacionado nas publicações modernas dos Sonetos? Falta o elo documental, tal outra carta, mas deverá ter havido um pedido de Maria Amália, ao qual Antero anuiu, disponibilizando o soneto final da antologia...

Escritos em Coimbra em 1864, como Antero assinala no envio, os três sonetos escolhidos, que estavam inéditos, andaram  20 anos com Antero até serem salvos do anonimato e dados à luz para mãos femininas de Maria Amália Vaz de Carvalho e das futuras leitoras dos poemas, como Antero imagina, descrevendo-se "humilíssimo" no respeito à viúva do poeta Gonçalves Crespo (1846-1883), aos quais muito empaticamente se referira por causa do desenlace, numa carta de Junho de 1883 a Joaquim de Araújo:«Senti a morte do Crespo, de que só agora tive notícia. Não conheço a Maria Amália, mas nem por isso tenho deixado de pensar nela com pesar e simpatia sincera.»

O primeiro soneto, Sonho Oriental, é muito simples, com um ambiente totalmente orientalista do final do séc. XIX (presente até noutras colaborações do Feixe de Penas, tal a de Cristóvão Aires) e permite-nos viajar um pouco com a imaginação oriental ou mesmo indiana com que Antero se revestiu animicamente para o compor, nada difícil pois sabemos que  para além do seu interesse pelos Vedas, o sânscrito e a sabedoria indiana (o que partilhava com o seu colega e amigo Guilherme Vasconcelos de Abreu, futuro 1º professor de sânscrito em Portugal), numa carta de Março de 1866 ao seu dilecto companheiro António de Azevedo Castelo Branco, interrogando-se para onde deve ir, diz, numa observação bem perene, que «talvez indague dum emprego para a Índia, para Goa ou Macau, países aonde a vida moderna não deve ostentar-se em muito excessivo luxo do seu vermelho sangue burguês e gordura de banalidade, como cá acontece nesta Europa soesmente comodista, esta Cartago sem Moloch, mas com muitos mercenários.» E continua instando-o:  «Tu deves, nesse caso, ir comigo: mesmo que só eu vá empregado, aquelas terras, que alimentaram a descuidada infância da humanidade, são fáceis para a vida e, quais santos richis ou macerados budas, viveremos de arroz e bananas. Continuaremos os nossos desprezados estudos orientais; e, em face das ruínas do que já foi ruidoso e imponente, aprenderemos a desprezar todos os ruídos e imposturas que hoje nos assoberbam e ensurdecem.»

Os aspectos orientais que lhe vieram do inconsciente e das suas leituras mais ao de cima vemos que foram a natureza tropical, a ilha frondosa de bosques, a lua refulgente na noite, os aromas das flores e árvores, nomeadamente o da baunilha, o mar e a sua espuma rítmica, e ele meditando numa torre de marfim enquanto a a amada passeia no jardim, com um  leão aos seus pés.

O que há de mais onírico?  Sonhar-se rei, numa utópica ilha, bem longe do que o rodeia, a lua cheia brilhante nos céus e espargindo seus mil raios na água, uma noite mágica de cheiros e luzes, pois o próprio ar se mostra diáfano, e o mar doce e terno lambendo a ilha, deixando transparecer em tais movimentos os seus desejo sensuais e amorosos pela amada, que contudo anda ao longe no bosque, e  tem um leão aos seus pés.
Este leão, e
m termos de projecção psicológica, poderá ser ele próprio Antero, ou o seu ardor do amor e do coração, calmo aos pés dela, mas capaz de se tornar o animal poderoso a qualquer momento.

                                      

É um soneto de grande calma e paz, com alguma irrealidade, transparecendo a força interior contida, ou não fosse ele rei. Quanto à amada, que não é apresentada senão com esse estatuto, ao contrário dele que cisma, divaga, e há neste contraste uma certa afirmação de maior concentração na sua actividade mental, enquanto a mulher apenas divaga, embora expandida pela luz da lua, enquanto que ele interiorizou-se mais, absorveu-se, queda-se absorto quase sem fim. 

É uma atmosfera irreal, simbolista, fazendo lembrar a da peça de teatro estático de Fernando Pessoa (que leu e traduziu vários sonetos de Antero para inglês, e o elogiou muito), o Marinheiro, náufrago numa ilha, e também sob um vago luar, onde três irmãs divagam, uma das suas primeiras publicações, em 1913, na revista portuense A Águia,  dirigida por Teixeira de Pascoes e Leonardo Coimbra. Todavia, se o ambiente psíquico no Sonho Oriental é de grande paz e harmonia com uma natureza idílica, já o envolvimento amoroso entre os dois paira numa certa interrogação que só a expressão "meu amor" a vence.  

                                         SONETOS ANTIGOS

                                                             I  

                                            Sonho Oriental

Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha, 
Muito longe, nos mares do Oriente, 
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha... 


O aroma da magnólia e da baunilha 
Paira no ar diáfano e dormente... 
Lambe a orla dos bosques, vagamente, 
O mar com finas ondas de escumilha3... 

E enquanto eu na varanda de marfim 
Me encosto, absorto n'um cismar sem fim, 
Tu, meu amor, divagas ao luar, 

Do profundo jardim pelas clareiras, 
Ou descansas debaixo das palmeiras, 
Tendo aos pés um leão familiar.»

Anote-se  estarem os três sonetos enviados por Antero de Quental como I, II e III e constituem um todo sob a designação de Sonetos Antigos,  e que portanto devem ser lidos de algum modo como um avançar na declaração de amor e vivência,  idealizado no 1º, Sonho Oriental,  embora com certa apreensão  face ao futuro, perante tanto amor e pudor, sensibilidade e intuição, comunhão e absorção, que os dois sentem, pois já no 2º Idílio, Antero surge como visionário do estranho, do triste e do trágico, pois acaba por sentir dúvidas quanto à luz húmida do olhar, ao emudecimento da amada e  ao estremecimento das mãos, mesmo com a entrada das vozes amorosas do universo no coração dos dois...

 Idílio 

    Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.» 

Já o 3º e último soneto, Aparição, revela, após a tese e a antítese,  a sua síntese amorosa algo derrotada e perdida. Desilusão da amada, que não o quis, e lhe estalou o coração, auto-biográfico, deveremos deduzir ou intuir? Cada um que o sinta ou adivinhe...

                                                    Aparição

Um dia, meu amor (e talvez cedo,
Que já sinto estalar-me o coração!)
Recordarás com dor e compaixão
As ternas juras que te fiz a medo...

Então, da casta alcova no segredo,
Da lamparina ao tremulo clarão,
Ante ti surgirei, espectro vão,
Larva fugida ao sepulcral degredo...

E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos
E aflictos ais, estenderás os braços
Tentando segurar-te aos meus vestidos...

— «Ouve! espera!» — Mas eu, sem te escutar,
Fugirei, como um sonho, aos teus abraços
E como fumo sumir-me-hei no ar! »

Anote-se que, tomando os três sonetos como um todo (embora saibamos que na ordenação final dos Sonetos Completos em 1886 eles estejam espaçados), passamos do "meu amor", do 1º soneto,  para o "meu anjo", do 3º soneto final, e quem fora rei no 1º e depois no 2º namorado em idílio campestre e unidade de corações, transforma-se no 3º e último soneto, Aparição, num espectro, numa aparição que rejeita os pedidos da amada, ou porque já não a quer, ou porque já não pode.  

Há na obra de Antero, para além do seu grande amor, destemor e idealismo social, constantes sinais da solidão, de morte e mesmo de suicídio. Por vezes interrogo-me quantos dos seus amigos terão sentido intuitivamente isso, sobretudo com o avançar da idade, seja vendo-o ao longe a aproximar-se, seja nos silêncios das conversa.  Ou ele próprio, quantas vezes terá sonhado ou intuído que teria essa quase que predestinação à sua espera?

                                    

Há algo de desilusão e quase maldição do Amor humano. Ou a consciência de quão difícil  seria vivê-lo numa sociedade ainda com tantos aspectos injustos e opressivos e com as pessoas por vez tão divididas e longe da sua totalidade e sinceridade. Não é um Apocalipse, como disse na carta a Maria Amália, mas não era de modo algum um poema terno ou para sossegar jovens leitoras, sobretudo o último soneto. Anote-se que nesta época Antero, assinando como o Bacharel José,  entre 1864-1865, para o jornal O Século XIX, de Penafiel, testemunhava uma grande ironia e irreverência. E assim o amor terno e romântico era dissipado por um espectro, numa consciencialização da fragilidade da vida e dos sentimentos. Talvez devamos admitir que Antero só vivenciou na verdade o amor paixão unitiva nos namoros juvenis, o que alguns poemas das Primaveras Românticas espelham bem. E ficou mais com o da mãe, dos amigos, da poesia, da filosofia, da morte e da liberdade, o que já foi muito, e que nos fazem hoje enviar-lhe muita luz e amor para a sua ascensão espiritual...

Sem comentários: