sábado, 29 de maio de 2021

Regina Frank expõe no Museu Nacional de História Natural até ao dia 30 de Maio.

A exposição de Regina Frank em Lisboa no Museu Nacional de História Natural da Faculdade de Ciências, à Escola Politécnica, termina este Domingo, dia 30 de Maio às 17:00, pelo que tem já tempo limitado para desfrutar da sua arte, sabedoria e animada alma, seja na instalação com enraizamentos têxteis, ecológicos e intimistas na Sala de Química Analítica, seja em mandalas de pinturas e tapeçarias irradiantes na Sala Azul.
Estas são algumas imagens que poderão estimular a sua ida, tanto mais que a Regina Frank, artista nascida na Alemanha e representada em numerosos museus e colecções privadas, estará presente durante a tarde para guiar as pessoas ao longo do labirinto da sua obra tão feminina quão científica e espiritual. 
Em simultâneo tem decorrido uma exposição na Galeria António Prates (sábio editor e curador que lhe consagrou um belo catálogo, com bons textos contextualizantes), a qual estará aberta até 4 de Junho, intitulada Silenced Sides, que tem tido algumas performances bem como visitas guiadas às suas incursões com materiais diversos (tais como papel feito à mão, tinta japonesa, acrílico, linhas, tecidos bordados, tapeçarias, fotografias e mapas) nos mundos históricos, científicos, íntimos, naturais e espirituais por onde a sua desperta e criativa alma se tem debruçado, trabalhado, assumido, peregrinado, realizado.










segunda-feira, 24 de maio de 2021

Ensinamentos de Bô Yin Râ sobre o Caminho para o Espírito e para Deus. Resumo parafraseado por Pedro Teixeira da Mota.

Bô Yin Râ, e o seu ensinamento espiritual e pictográfico perene. Traduzido e resumido da sua obra e parafraseado por ....

É através da totalidade da nossa vida que nos qualificamos para termos ou não acesso ao mundo espiritual, e para podermos ou não sermos considerados discípulos dum mestre espiritual, em geral vivente no mundo espiritual.

Incluem-se neste merecimento os pensamentos, as palavras, os sentimentos, os actos, as intenções, a vontade. Neste sentido já no seu tempo Jesus confessou que muitos diriam que eram seus discípulos e não o eram, e que outros só por palavras o reverenciavam ou seguiam mas não por actos e realizações.

Assim, quando se lê um ensinamento, não basta recebê-lo mentalmente mas há que o tornar vivo em nós, pela acção, pelos modos de ser, as atitudes e formas de vida. Devemos pois organizar a nossa vida em função das ilações e consequências que resultam do ensinamento. E face a críticas externas há que discernir de que tipo de pessoa ela vem, que atenção merece e como tirar partido das apreciações ou críticas para as nossas posições e trabalhos futuros. Mas um ensinamento só pode ser bem julgado se quem o critica o conhece bem, ou se está ou esteve a seguir as suas metodologias. Não devemos contudo  dispersar as nossas forças internas, que exigem a mais íntima concentração para atingirem os níveis espirituais, entrando em discussões ou dispersando-nos demasiado.

Um erro cometido com frequência pelas pessoas que entram no caminho espiritual  é quererem logo converter outras, ou pelo menos indicar-lhes o caminho, impingindo, por exemplo, os livros do seu ensinamento ou mestre, o que  pode ser contraproducente, pois a pessoa pode não estar preparada e ficar mesmo traumatizada, pelo que é melhor deixar  a propaganda comercial da editora e a distribuição normal dos livros os levar a quem deles necessita.

É inútil para o nosso caminho espiritual acrescentarmos, de constantes leituras esotéricas, novas linhas de força que amalgamos num todo. Face aos muitos instrutores que papagueiam teorias e doutrinas cabalísticas ou ocultistas mais ou menos mirabolantes, ou face às modalidades mais modernas de seminários e cursos online, por pessoas que apenas falam em geral sem grande realização espiritual,  será bom lembrar-nos que só podemos avançar no caminho pela meditação interior, a vida harmoniosa e justa e pelo conhecer ou viver Deus em nós através do espírito substancial e eterno cuja irradiação penetrante em si é o próprio Deus.

Não podemos pois reduzir o Espírito a um produto cerebral, já que pelo contrário foi Ele próprio quem engendrou o cérebro e dele não depende. E assim  há um elevado conhecimentos que não provém dum trabalho cerebral, mas sim duma experiência vivida do Espírito substancial e eterno.

Para conhecer o Espírito, para o aprofundar e o vivenciar do interior, temos de estar nele, pois ele penetra-nos dum modo vivo, e vive em nós, mesmo se nós não conseguimos ainda viver conscientes nele. Cada pessoa chegará a esta experiência dum modo diferente, condicionada pelas suas disposições kármicas, ou resultantes das suas acções anteriores. Mas o caminho não é feito segundo o gosto ou apetite de cada um, e os autênticos iniciados dos antigos Mistérios sempre falaram dos obstáculos, os quais chegaram até nós tipificados como as provas dos quatro elementos. Em verdade, só as pessoas que tiveram acesso ao espírito conseguem discernir os sinais que diferenciam a superstição e a mistificação do conhecimento ou vivência da realidade espiritual.

O Espírito é o Ser Original donde provém toda a existência, e donde esta recebe a sua vida. Mas para experimentarmos a presença deste Ser Original em nós, precisamos de participar conscientemente em tal demanda, desenvolvendo a faculdade de o experimentar ou vivenciar, do que resulta o desvendar do que nos é acessível do mundo do Espírito real e substancial, o qual é um cosmos ordenado, com as suas formas sempre em mutação mas que permanecem na sua essência idênticas a elas próprias.

Para desenvolvermos estas capacidades temos de perceber que o organismo do corpo espiritual pode ou deve se tornar activo e que os sentidos puramente espirituais desenvolvem-se, tal como os sentidos corporais. E assim no mundo espiritual conforme os sentidos estão mais desenvolvidos assim se desenvolvem percepções específicas.

É pois muito importante a escolha das forças da alma que unimos no seio da nossa vontade mais profunda, ou seja, aquelas que nós identificamos ou unimos a tal vontade. Temos então que as proteger muito bem dos perigos que as ameaçam, dos quais um dos maiores é o conhecimento friamente objectivo cerebral da realidade, tão desenvolvido por alguns esotericistas, cientistas, materialistas...

Este trabalho de despertar tem  de ser já realizado em vida terrestre, e não depois de morrermos, começando-se a desenvolver o organismo espiritual substancial, tornando-o apto a vivenciar experiências pessoais. Podemos assim dizer que não é o Espírito que se desenvolve, mas sim o organismo espiritual, ou seja, a combinação alma-espírito individualizada em que nos tornamos e somos, a que corresponde o Jivatman, ou atman individualizado, da Índia...


Para isto temos de educar o corpo terreno para ele se tornar a expressão do espírito substancial que nos anima, sem cairmos nos extremos quer de procura só de prazeres e confortos corporais quer de mortificações exageradas, pois estas ao enfraquecerem o corpo e o cérebro podem provocar males, tais como alucinações e fantasias, e também passividade aberta a influências de subtis e quase desconhecidas entidades invisíveis, sempre desejosas de se alimentarem de seres humanos a elas abertos, algo disto sucedendo com os mediums no espiritismo, algo que entre nós portugueses, por exemplo, o próprio Fernando Pessoa praticou mas depois se alarmou e algo melodramaticamente renunciou...

Para se percorrer o caminho para o espírito é preciso muita paciência, e muitos erram quando pensam que podem galgar fases e chegar à meta muito cedo. A experiência do Espírito eterno substancial não se atinge em meses, antes implica uma determinação perseverante na qual a única violência que se pode exercer é contra os obstáculos que a própria mente e a personalidade criam a essa experiência.

Quando se chega ao fim do caminho percorrido passo a passo, esse caminho não será abandonado como qualquer coisa de que já não se precisa mais, mas torna-se a propriedade espiritual daquele que chegou ao fim da sua demanda.

Percorrer o caminho que permite chegar ao espírito é “andar” no tempo exterior, mas também no seu próprio espaço interior espiritual. E o que diferencia a progressão no caminho interior são estados ou estações de sensibilidade, os maqam tão tipificadas e desenvolvidas pelos filósofos místicos islâmicos, que se sucedem uns aos outros. E perante as dificuldades da ascensão só podemos dizer que uma certeza ou confiança tranquila e uma fé dinâmica na  própria força de cada um aproximam mais do fim supremo que as pressas, precipitações e crispações de vontade.

Ao longo dos séculos e em todos os povos sempre houve uma minoria de seres que conseguiram elevar-se ao conhecimento das realidades pré-existentes no Espírito Eterno, e que se tornaram discípulos ou iniciados pelos seus esforços.

Para além deles houve muitas pessoas que não deixaram atrofiar as forças com que organicamente se formou a alma, e que se mantêm abertas às forças da Anima mundi, ao oceano infinito das forças anímicas livres, ao omnisciente, omnisentiente e omnivivente Divino.

Não se trata dum inconsciente colectivo, como algumas escolas psicológicas nomeiam, mas do que a alma eterna sempre conheceu, mas que a consciência cerebral ainda não conhece. Devemos pois com perseverança apelar ao que é conhecido da alma, sem ter ainda atingido a consciência cerebral, se queremos abrir as portas de acesso ao espírito.

Quanto à expressão "substância espiritual" importa que cada vez que se fala do espírito substancial, - por oposição a uma concepção do espírito correspondente ao entendimento humano e aos produtos dos movimentos ou operações do cérebro – se compreenda por substância espiritual  que tal é o que há de mais real, ou seja, a plenitude de todas as forças do ser original!

Esta substância do espírito não está  fixa ou presa em nada. É, por essência, o que há de mais livre, não conhece qualquer obstáculo, é eternamente móvel, eternamente em movimento. Não é criada mas, sem intervenção particular da vontade, ela é dada unicamente pela presença do Ser Original, tal como é necessário designar, para o descrever, o mais íntimo do que É.

A verdadeira tomada de consciência na substância do Espírito eterno, situa-se sempre fora ou para além de toda a ciência ou comprovação científica e mesmo os mais vastos e mais elevados conhecimentos científicos não poderão aproximar o ser humano um centímetro que seja da experiência vivida do espírito substancial, algo que nunca será demais repetir perante tanto endeusamento da ciência, que tantas limitações têm, para não falar dos cientistas, frequentemente tão arregimentados...

O ser humano não pode ser ajudado directamente por nenhum Deus, mas somente pelo homem, e quando se trata de ajuda divina, unicamente por um homem que se tornou um transformador de forças espirituais substanciais. A ajuda espiritual que ele obtém então é proporcionada à sua faculdade de recepção e permanece assim até que possa viver nele próprio, no seu organismo espiritual desperto do seu estado latente, o que é do domínio do Espírito eterno e substancial.

Existem inumeráveis graus de desenvolvimento e isto é igualmente verdadeiro quanto à única experiência da Divindade que é possível ao ser humano e que é realmente autêntica, - a experiência que faz, no interior da sua alma, do seu Deus vivo.

Esta experiência única e verdadeiramente real de Deus, de Deus que não é somente o Espírito mas que pode-se dizer que é de certo modo a auto-criação  mais subtil do Espírito Absoluto, não está unicamente dependente do pleno desenvolvimento do organismo substancialmente espiritual, mas este já deve ter sido ou estar  desperto de maneira a poder fazer  brilhar na alma a consciência distinta do Eu espiritual, enquanto forma de experiência singular de todos os domínios eternos. Que um ser humano consiga vivê-la numa só vez, dum modo repetido, ou dum modo ininterrupto, só depende da pessoa, ou seja do desenvolvimento das suas possibilidades anímicas.»

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Glossário sânscrito de termos espirituais e de Yoga Vedanta: 2º, Ananta, Infinito...

Pintura de Bô Yin Râ

     Ananta, infinito, ilimitado, eterno, ininterrupto, perene. Eis uma das aproximações descritivas de Brahman, a Divindade ou o Espírito Absoluto, Primordial. Tanto pode ser enquanto infinito no espaço e no tempo que dele brotaram, como em Si mesmo, como no que se possa predicar Dele, pois tudo transcende, mormente a frágil mente humana tão condicionada pelo cérebro e o corpo físico. Em tal sentido podemos constatar a existência de uma teologia apofática e negativa atingida ou confessada tanto no Vedantā indiano como em místicos cristãos, tais Eckart, Nicolau de Cusa, pela qual Deus ou o Absoluto está para além da relação predicativa, e "não é isto, nem aquilo", pelo que o melhor é nada se predicar e menos ainda se tentar definir Dele.  

Este "não é isto, nem aquilo", é na Índia o “Neti, neti”,  e é quase um mantra, ou frase de poder espiritual, desde que surgiu pela primeira vez expresso no Avadhuta Gita, 1.25, atribuído a Datatreya: «tattvamasy ādivākyena svātmā hi pratipāditaḥ / neti neti śrutirbrūyād anṛtaṁ pāñca bhautikam», ou seja, «Tu és Isto", assim falaram do  Eu próprio (espiritual) os livros sagrados. Não isto, não isto, diz a tradição escrita do que provém dos cinco elementos.»
Ao longo dos séculos muitos meditaram nesta
complementaridade da afirmação positiva Tat Twam Asi, Tu és Isto-Ele (o Espírito), e  a negativa Neti, neti, "não és isto, não és isto", o que de material te constitui ou te rodeia. E, em termos práticos, caminhar na vida ou na rua repetindo, sentindo e assimilando este mantra é até uma boa forma de dissipação de identificações e atracções mundanas e logo de intensificação da auto-consciência.

No século XX  Ramana Maharish (1879-1950, em cima na fotografia, à esquerda)  foi um mestre que realizou bem tal realidade última e infinita e que recomendava o vichara, auto-conhecimento interrogativo constante, "Quem sou eu, quem sou eu", baseado no discernimento do atmam (espírito] e do neti neti, aos seus discípulos, em Arunachala, onde o seu centro ou ashram ainda mantém tal tradição viva e onde estive em peregrinação e sadhana (práticas espirituais) duas vezes, a primeira com carta de recomendação do Kavi Yoga Shudhananda Bharati, já então com 80 e tal anos, mas que vivera alguns anos em jovem com Ramana Maharishi.

A meditação no espaço infinito, ou ainda na fonte oceânica primordial de onde todas as possibilidades de manifestação consciencial e energética emanaram ou brotaram, denominado já no nível dos elementos subtis o Ākāśa luminoso, e que podemos contemplar olhando o céu, é ainda outro método recomendada pelos mestres dos Upaniṣadas e do Vedānta, tanto mais que a sua transparência e luminosidade quase ilimitada tem a a similitude de infinidade com o próprio Absoluto ou Brahman.  

 "O que nós contemplamos, nos tornamos", é um ditado popular por muitos mestres dedilhado...

Na valiosa Taittiriya Upanishad. 2. 1, foi dito, realçando-se o coração como sendo  a porta: «Aquele que conhece Brahman como verdade, conhecimento e infinito (satyam jñānam anantam) no lugar secreto (guha) do coração e no espaço celestial mais longínquo ou elevado, obtém qualquer desejo em comunhão com Brahman, a Inteligência em si mesma».

Este versículo Taittiriya Upanishad é muito valioso pois assinala a união entre o microcosmos e o macrocosmos e diz-nos que pela experiência interior contemplativa descobrimos, vemos, sentimos e realizamos tanto o mais íntimo como o mais longínquo e de um modo unificador. Quem pratica a meditação, a aspiração amorosa e  a contemplação recebe tais graças de quando em quando. Já os grandes ou verdadeiros mestres, estabilizados no Espírito interior e Divino, desfrutam-na quando querem e em níveis bem mais profundos e amplos que os das pessoas penas no caminho..

É  bem provável que alguns cientistas, físicos, astrónomos ou amantes do cosmos e dos mundo distantes, graças às belíssimas imagens e até filmes de galáxias, constelações e estrelas maravilhosas possam desse convívio e contemplação do macrocosmos ter algumas experiências e intuições do infinito consciencial em  que vivemos e em que temos o nosso ser essencial, que não é isto nem aquilo, nem corpo, personalidade ou ego... 

                                            

No Astavakra Gita, texto clássico da filosofia não dual Vedanta, que traduzi e comentei em 2007, encontramos alguns versículos que utilizam esta palavra e conceito, e que são poderosos: II.23: «Em mim, Oceano Infinito (maya anantam aham bhodau, ou no oceano sem limites que eu sou). quando se ergue o sopro da Inteligência Cósmica (cittavate) logo se produzem as várias ondas de mundos».  24.: «Em mim, Oceano consciencial infinito, ao cessar o sopro da Mente Cósmica, para infelicidade do negociante que é o Eu incarnado (jiva), o barco do universo afundar-se-á.» 25.: «Em mim, Oceano Infinito, maravilha das maravilhas, as ondas dos eus individuais erguem-se, chocam, jogam e desaparecem de acordo com as suas naturezas específicas.»

Nestes versículos realça-se a  natureza pura e infinita   do Ser primordial e que quem se mantém mais como observador do que identificado ao corpo e ao ego, consegue mais sentir e realizar esta dimensão consciencial divina que está subjacente à multiplicidade tão ilusória do universo. E que, embora ela seja o suporte ou o acume de cada indivíduo, se torna bastante mais difícil de ser realizada ou vivenciada no mundo moderno, com tanta agitação de informação e desinformação, com tanta obrigação e opressão, pelo que bem de temos de invovar e aprofundar a Paz, o  Om  Shanti, Shanti, Shanti....  

No cap. XVII, do Astavakra Gita refere-se  como pessoa mais capaz de vivenciar Brahman, a consciência infinita e beatífica, aquela que de mente vasta (citta udara) não se deixa prender nas atracções e aversões, tão desenvolvidas nos dias de hoje.  Já no cap. XVIII, por exemplo, valoriza-se a capacidade de silêncio, de afastamento da agitação exterior, afirmando-se mesmo: «Para o ser silencioso (muni) que vê com o olho espiritual o Espírito imperecível (Atman aksaya) e livre de tristeza, onde está (ou o que importa) o conhecimento, o universo, eu sou o corpo ou o corpo é meu?»

A este ver com o olho espiritual no versículo 78 faz-se corresponder o ser de visão firme, aquele que não se deixa perturbar nem amedrontar pelas forças contrárias ou opostas.

Concluamos esta breve, breve entrada do Glossário de termos espirituais em sânscrito com a lembrança que Infinito diz-nos também que não tem nem princípio nem fim, nem alfa nem ómega, que o Ser divino sempre foi, é e será, e é esta a dimensão mais desafiante para o ser humano enquanto espírito....

Possamos nós, senti-lo, sê-lo e vivê-lo mais, em sabedoria, coragem, verdade e amor, diariamente, com persistência e em especial ao levantar e ao acordar, em uníssono ou comunhão invocadora dos mestres e dos nomes-faces da Divindade: Aham Brahmasmi anantam anandam Eu sou um com a Divindade, infinita, beatífica; ou ainda meditando com amor e gratidão o famoso Sat Chit Ananda (este já no nosso glossário), ou como vem na Taittiriya Upanishad, 2.11   Satyam Jnaanam Anantam Brahma, a Divindade, ou seja, o Espírito é Ser verdadeiro, Consciência inteligente e Harmonia beatífica..

Ornamento por Bô Yin Râ: Jivatman...

segunda-feira, 17 de maio de 2021

César do Inso, " Céu, Espírito e Luz". Antevisões sobre a vida depois da morte, por um elo quase perdido da Tradição Espiritual e Irenista Portuguesa.

César do Inso foi um escritor do final do séc. XIX, começo do XX, que, embora tendo publicado em jornais e em livros (e ignoramos o impacto) está hoje completamente ignorado mas que deve ser reconhecido como um elo valioso da Tradição espiritual Portuguesa. Se pesquisarmos na web referências a ele só encontramos um documento na Torre do Tombo, o da carta de outorga  a Augusto César Correia do Inso da posição de Primeiro Oficial da Contadoria da Junta do Crédito Público, 1887, passada pelo rei Dom Luís. Regista-se ainda que a sua vida terrena decorreu entre 1841 e 1919. A base de dados dos livros existentes nas bibliotecas públicas portuguesa, a PORBASE, menciona dos seus livros: Agronomia elementar ao alcance de todos os lavradores. 1890. Ceo, Espírito e Luz: digressão do pensamento em busca da verdade. 1900. O duello e a guerra. Conferencia. 1900.  Os perigos de guerra, 1902. Os amigos da guerra. 1904. Guerra á guerra. Conferencia. 1904. Nesta última obra vemos na página final menção a outros trabalhos, publicados nos jornais Revolução de Setembro (1840-1901) e Diário da Manhã, além de uma conferência em 1902 na Liga da Paz Portuguesa, da qual era 1º secretário e que foi importante alfobre de republicanismo, pacifismo e feminismo. Fundada por Alice Pestana em 18 de Maio 1899 e extinguindo-se com o começo da 1ª grande guerra, teve grande sucesso, participando nela as personalidades mais avançadas da época, tal Adelaide Cabede, Albertina Paraíso, Beatriz Pinheiro, Branca Gonta Colaço, ou ainda Sebastião de Magalhães Lima, César Porto, Bernardino Machado e Teófilo Braga.

Já após deste artigo ter a sua primeira redacção, consultando a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira na livraria Antiquária do Calhariz, no coração da Lisboa alfarrabista (cada vez menor, lamentavelmente), fundada por Arnaldo Oliveira, como leiloeira também,  e continuada por José Manuel Rodrigues e agora pela filha Catarina (redigindo com periodicidade catálogos), ficamos a saber que Augusto César Correia do Inso nascera em Alter do Chão em 22-XI-1841 e, completado o liceu, estudara Teologia no Seminário, formando-se como engenheiro Agrónomo, em Santarém,   servindo trinta anos como funcionário público e aposentando-se em 1901.  Além de escritor  e "distinto conferencista", colaborara no Diário de Notícias e no Correio da Manhã, tendo rumando para o Céu como espírito de luz em 18-IV-1919.

Constatamos assim ser um amante e conhecedor da natureza, da agricultura terrena e celestial, bem como do pacifismo, e provavelmente em  publicações do irenismo ou pacifismo e de espiritualismo, na época ligadas à Liga da Paz Portuguesa, a Tolstoi, ao Anarquismo, ao Naturismo, ao Esperanto, ao Espiritismo e as ciências psíquicas nascentes, encontraremos colaborações suas, ou  menção dos seus livros e conferências...
Deixando p
ara outra ocasião o seu irenismo (da palavra grega irene, paz), ou pacifismo, entremos antes na sua obra maior, Ceo, Espírito e Luz: digressão do pensamento em busca da verdade, publicada em Lisboa na Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, então sita num dos principais corações livreiros de Lisboa, o Largo do Camões, nº 5 e 6.
Num
in-4º de 253-5 pp., narra uma imaginária viajem aos mundos subtis e espirituais, explicando duplamente a sua génese:  fora publicado  um resumo da parte inicial em nove folhetins do jornal Correio da Manhã, e escrevera tal digressão imaginária em casa durante um mês, quando recuperava de uma partida de brincalhões perigosos que o fez  cair num buraco de obras, disfarçado, verberando a crueldade humana patente ainda nessa Lisboa de 1900. Conseguindo erguer-se sozinho da cova ("pude, louvado Deus!"), «quando cheguei a casa levava a cerola e a meia alagadas em sangue. Vendo-me entrar, lívido como um cadáver, toda a minha família me interrogou ansiosamente. - Não se assustem, respondi-lhes com calculada serenidade: tirem-me lá esta calça.».  Ficamos assim a saber que era casado e tinha filhos. E que foi tratado durante os trinta e oito dias que esteve em casa pelo Dr. Leão de Oliveira, «cujos primores de humanidade não são menos relevantes do que a sua elevada competência médica.»
Ora a viagem imaginada que descreve com um espírito guia aos
mundos do além contém bastante sabedoria, seja política, científica, filosófica e religiosa e embora nos diga "que foi durante o tempo em que estive de cama, que escrevi a maior parte deste trabalho, sem outro auxiliar senão o da minha reminiscência", cremos que a sua reminiscência não é a da vida ante-natal mas a de leituras várias, na época de ocultismo e espiritismo, mencionando apenas Camille Flammarion e, quanto a propósito de ser crédulo ou incrédulo, aponta o escritor Joaquim Oliveira Martins, nomeadamente as últimas páginas do seu livro A Inglaterra de Hoje (Cartas de um viajante), de 1893.
Ao l
ermos tais cartas observamos Oliveira Martins apreciar o sucesso obtido pelo recém fundado Exército da Salvação, assente numa religiosidade básica (a que O. Martins chama incorrectamente mística) democrática ou para todos,  bem necessária já que nas igrejas normais protestantes só entrava gente dita respeitável ou mais abastada, o Exército da Salvação destinando-se a combater a pobreza, como queria o seu fundador em 1865 William e Catherine Booth. E depois criticar em seguida o sucesso do espiritismo, que considerava fruto da tendência animista e supersticiosa, e pouco filosófica e metafísica, dos ingleses entra numa abordagem semelhante da Teosofia e lamenta não ter conseguido entrevistar Annie Besant. Embora céptico,  através de um interlocutor, Oliveira Martins admite nas últimas páginas que se sabe pouco dos mistérios da vida. Talvez isso tenha impulsionado César do Inso a responder-lhe...

Quanto ao que César do Inso intuiu por ele próprio, o que terá meditado e deduzido ou então visto clarividentemente não será fácil deslindarmos, mas como é obra invulgar, impressa um só vez na saudosa tipografia da r. D. Pedro V, 84 a 88, vamos transcrever e comentar brevemente excertos onde se aventura a especular ou imaginar os aspectos da vida nos mundos subtis e espirituais,  utilizando  um diálogo com um espírito já mais evoluído, no qual propõe as suas hipóteses e, graças à resposta do espírito já em tais planos, apresenta propostas-respostas, no fundo como frutos duma hipotética clarividência.

Como todos desejaríamos saber mais sobre a vida depois da morte, sobretudo para fazermos já nesta vida terrena o que a tonará melhor, ou para sabermos o que podemos fazer pelos que já partiram, para as suas almas estarem  mais luminosas ou mais unidas  ao Bem, ao Amor, à Verdade, à Divindade, pesquisemos nas antevisões oferecidas  as que terão mais possibilidade de se aproximarem da realidade no além.
«Na Terra os sentidos são apenas 5 ou 6 quanto muito; os do Espírito, nesta divina morada são talvez dez, elevados a um tal grau de intensidade, que nem saberias medir-lhe o alcance.»
Que quatro outros admite, onde os foi buscar? Sabemos que há a clarividência, a clauriaudiência, o sentir interior psico-energético, o sentido da unidade com o que nos rodeia.Será a eles que se refere?
Muito pacifista ou irenista, César do Inso escreve a dado momento: «Oh! a guerra, o supremo prazer dos grandes heróis terráqueos, é o maior flagelo com que Deus castiga os povos que se desviam do caminho da justiça.»

Parece mais correcto pensar-se que são os terrenos que se castigam a si próprios e que a Divindade está acima de tal, ainda que interiormente nas almas dos seres se possa manifestar quando eles estão em situações que o justificam. Mas não há um Deus castigador. Quanto muito à uma Providência Divina, assente em leis e harmonias e que se exerce naturalmente, na Índia, denominada Dharma como dever ordem e Karma, enquanto causa-efeito, o que gera a roda da vida, na cultura simbólica ocidental tipificada no arcano X, a Roda da Fortuna... 

                                                           
No 2º cap. p. 30 escreve o que viu: «Como eram a própria alma e não tinham corpo ou matéria que dirigir, os Espíritos obedeciam instantaneamente à vontade que esta ou aquela ordem de motivos formulava no seu seio. Creio que tinham o dom da rapidez eléctrica, pois desapareceram como por encanto».
Eis-nos num facto, num senti
do de movimentação instantânea e também numa ideia verdadeira, a de que a decisão mental se cria por motivos ou motivações interiores e que ela obriga os espíritos, ou é acompanhada pelos espíritos já que foram estes que a geraram. Acerca dos polos da matéria e da luz, escreve na pág. 50: «A Matéria é o quid com que tudo se fabrica, se organiza, se cria na terra. A pedra, a água, o ferro, a carne, a terra, o sangue, a árvore, os ossos, olhos, os nervos... tudo é matéria. Da matéria vem tudo: com ela tudo se fabrica, para ela tudo volta.
No império dos Gloriosos Espíritos que acabamos de admirar, a matéria é substituída pela Luz. Tudo é Luz. Da Luz vem tudo: com ela tudo se fabrica, para ela tudo volta.
Por isso são de Luz os Espíritos, era de Luz o grandioso templo, cujas maravilhas, as portas que – eram uma das maiores – acabavam de esconder dos nossos olhos, encerrando-se!
Mas por ser tudo de Luz, não vades imaginar que era tudo idêntico, ou pelo menos igual.» E eis-nos com um valioso ensinamento para procurarmos perseverar mais na meditação até a Luz se manifestar, e para estarmos mais conscientes dela em nós e na nossa aura-irradiação no dia a dia e no aqui e agora...


A obra está cheia de páginas muito luminosas e de bons questionamentos, e assim na pág. 55 podemos ler e imaginar: «E as ordens de seres espirituais que vivem nos Planetas e nas Estrelas inumeráveis que povoam, aí! É absolutamente impossível conjecturá-las sequer a nossa inteligência!
Ó Astros radiantes! Em qual de vós, continuam, e se completam os entes que nos foram caros; os que amámos de todo o nosso coração, os que mais admirámos pela sua virtude ou saber? (...)
Em que consiste a vossa civilização, ó habitantes dos mundos desconhecidos? Será a civilização compatível com a vossa natureza? Sois vós seres civilizáveis, ou progressivos?
Sentis também no íntimo da vossa alma, uma como força misteriosa, impelida e alumiada por esse luzeiro imarcessível que se chama o Ideal e que vem do Infinito?»

O reconhecimento da importância do coração-amor surge poderosa:  «Amor! Amor! Tu és a mais pura emanação de Deus; porque és o elo que prende e liga entre si, no universal conjunto, as peças que constituem o mecanismo do Infinito que nós exprimimos numa palavra só: - Universo.»

E depois de ter recebido uma visão de uma pomba-fénix: símbolos da inocência e imortalidade, altamente iluminadora, propõe um bom exercício de alargamento de visão: «Suponde que uma fada transformava uma pomba em um brilhante com igual figura e tamanho e o colocava sobre uma coluna, no meio de um salão alumiado por milhares de luzes. Pedi à vossa fantasia, que vos deixe supor um aparelho, onde fossem recebidas simultaneamente todas as cintilações que se observassem de cada ponto do salão: pedi-lhe do mesmo modo que vos deixe imaginar uns olhos que pudessem apreciar nitidamente aquela impressão. Pois quem dissesse que um tal deslumbramento era a imagem da pomba celeste, faria uma limitadíssima ideia da realidade que tinha diante dos meus olhos».
Quanto à nossa aspiração de maiores experiências ou revelações, "aqui e agora, já", o seu guia acalma-o: «Não é para os ouvidos terrenos que o Divino Maestro compôs as sublimes melodias que constituem a música ideal, a música que cantam os Anjos nas esferas de Luz, onde vivem os espíritos que o Amor vai conduzindo pela eternidade fora, até à sua presença e quem sabe se até à absorção na Sua própria essência».  E no "quem sabe se", interroga-se bem, para além de dar uma certa orientação clarificadora aos que desejam ou se esforçam  por ouvir interiormente vozes ou música...

Uma pintura dos mundos espirituais por Bô Yin Râ
São repetidas as menções dos Anjos e demais entidades, ou ainda ao beijo da morte iniciática que eles podem dar,  tal como:«Os anjos são invisíveis aos nossos olhos. Sentem-se, ouvem-se dentro da nossa própria alma; mas não se vêem; não se podem ver senão em circunstâncias que me não é permitido conjecturar [provavelmente faltou-lhe tal experiência...]. Já os vimos em forma de pontos luminosos, é verdade; mas em forma de pontos luminosos, é verdade; mas que são pontos luminosos para a forma dos anjos, as criaturas mais sublimes do Universo? Ainda assim foi a influência maravilhosa da Pomba-Phoenix, o seu esplendor supersensível que permitiu aquela visão, quase imperceptível. Mas as almas não são também anjos?
- Chegam a sê-lo, e algumas terás tu talvez admirado, que tenham já essa categoria. Depende o fenómeno de circunstâncias em que não posso agora entrar». Boas interrogações, que anos depois Fernando Pessoa equacionou e em apontamento escrito deixou...
Quanto aos grandes ideais que moviam as melhores almas do séc. XIX, tal como entre nós a Geração de 70 e particularmente Antero de Quental, o espírito guia de César Inso explicará num texto muito valioso: «A liberdade, a igualdade e a fraternidade constituem o viver comum dos Espíritos. Não que seja uma liberdade, uma igualdade e uma fraternidade, como as que debalde procurais na Terra; que essas nem no Céu são possíveis.
Aqui somos todos iguais, mas é perante o Amor que mutuamente nos votamos: e este Amor é como o ideal da mais pura e santa fraternidade.
Somos todos iguais perante a Verdade que se oferece à nossa contemplação, perante o Bem que fraternalmente se distribui à nossa vontade; perante os gozos e venturas da alma, que temos a liberdade plena de procurar em todos os pontos do Céu que melhor se adaptem ao desenvolvimento que cada um trouxe da Terra; perante o afecto enfim do Supremo Ordenador do Universo, que a todos faculta igualmente os tesouros da sua generosidade inesgotável.»

Para concluirmos a nossa pequena ressurreição dum ser bem luminoso, o César do Inso, oiçamo-lo sobre o valor do debate:    «-Não, meu amigo, respondeu a Visão, Espírito ou Anjo, a discussão não é inimiga da Verdade nem da Justiça; nem tão pouco incompatível com a natureza dos Espíritos, mas tão somente com determinado grau de desenvolvimento.
No Céu, co
mo na Terra, a discussão é um dos melhores instrumentos que a inteligência pode empregar para conquistar a Verdade. Não me refiro, é claro, a toda a amplidão do Céu mas simplesmente a determinadas regiões. A discussão é desnecessária, ou para melhor dizer, impossível, na região onde o Espírito toca o último grau (?) do seu desenvolvimento. Aí, a Verdade sacia toda a ânsia de saber, porque só aí brilha em toda a sua plenitude; é a região contemplativa, onde a alma criada parece confundir-se com a Força Criadora.
Sim! O último termo da viagem do espírito pelos espaços é
a absorção no seio de Deus, que em relação à Verdade é como mar do vosso planeta, em relação à água. Do mar sai toda a água que forma as nuvens e que banha a terra: ao mar volta outra vez, pelo seu pendor natural, como o filho que procura a mãe.
Assim da Divindade. Dela parte toda a Verdade que o Espírito anda procurando; a ela volta (como filho que procura a mãe) absorvendo-o no seu seio infinito».
Realcemos a hum
ildade com que César do Inso especula, ou mesmo coloca um ponto de interrogação, e saibamos nós aspirar mais ao Oceano (samudra) Divino de Amor e Verdade, por exemplo na Índia com Sri Ramakrishna tão vivenciado como Sat Chit Ananda, Ser- Verdade, Consciência e Felicidade, algo que tanto necessitamos nestes tempos de tanta manipulação, violência e opressão... 

Realcemos, para concluir, alguns aspectos ou psico-morfismos da Tradição Espiritual Portuguesa expostos por César do Inso (muita Luz e Amor para ele): aspiração à Divindade pelo amor devocional, a adoração e a contemplação; hesitação quanto à sobrevivência individual do espírito na eternidade ou fusão no seio da Divindade no término evolutivo; comunhão afectiva com os antepassados, grandes seres, mestres e anjos, no que outrora se designava como corpo místico da Humanidade ou da Igreja e hoje se pode  equiparar ao Campo de consciência, energia, informação que nos interliga, mais ou menos emaranhada e limpidamente. Que haja muita Luz e Amor nas nossas almas e ambientes e na Humanidade em geral!

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Natália Correia e Antero de Quental: argumento do filme "Santo Antero", de Dórdio Guimarães. Lido e comentado por Pedro Teixeira da Mota

Em 1979 Dórdio Guimarães realizou o filme Santo Antero com argumento de Natália Correia, através das Produções Cinematográficas Manuel Guimarães. A música original foi de Fernando Guerra e os dois intérpretes de Antero de Quental em criança e adulto foram Luís Filipe Rieff e António Rieff, cabendo a Maria Helena Cantos "as mulheres que Antero amou". No folheto de oito páginas de apresentação do filme, editado pelo Governo Regional dos Açores e que me foi oferecido pelo Luís Ferro, Dórdio Guimarães apresenta muito bem a sua visão da relação do cinema e da poesia, e o desafio enfrentado:

 «Creio que o cinema é um acto eminentemente poético. Creio mesmo até que o cinema é a expressão estática mais identificada com a Poesia e por via do seu conteúdo expoentalmente plástico. Nele as imagens ganham um corpo substantivo, o subjectivo objectiva-se, o sonho materializa-se mas tudo através de um trajecto mágico, alquímico, de um real superlativo, de um encantamento exactamente visionado. A palavra poética encontra no real impressionado um registo auditivo, complementar, tridimensionado, a sólida harmonia que nos faz ver todos os ritmos e movimentos sortílegos dos vocábulos. Toda a Poesia é cinematizável porque o cinema é como que uma nova dimensão encontrada da essência que a anima; o Espírito ao alcance dos nossos dedos, melhor dos nossos olhos e sentidos. (...) Antero de Quental não é mais uma figura como outras tantas da fértil história da poesia e literatura portuguesa. Nele se reúne um singular e específico sentimento de portugalidade açoriana ou de insularidade lusíada, de dicotomia mística e racionalista, de religiosidade tradicionalista, de activismo sociológico, de misogenia e altruísmo. Antero, em síntese, preenche boa parcela do senso português, ou seja, de todos nós. (...)», sem dúvida uma boa síntese da alma de Antero...
Destaquemos em Dórdio Guimarães a sua visão bastante espiritual da vida, da poesia e do cinema, reconhecendo no Espírito a essência que anima a poesia, e que o cinema objectiva tridimensionalmente, encantadoramente mesmo. Quanto à síntese caracterológica de Antero de Quental talvez ficasse mais certo  "religiosidade tradicionalista e transcendentalista", já que Antero expandiu-a pela metafisica e o orientalismo, em especial o panpsiquismo e o budismo. Valorize-se ainda a sua exclamação desabafo ou oração final, a fazer-nos lembrar o que correu  pelos humanistas e os estudiosos posteriores em relação a Erasmo: «Que Santo Antero nos valha».

 Quanto a Natália Correia, a argumentista do Santo Antero, filme que ainda não vi, e com quem só falei uma vez (curiosamente sobre Antero), presenteia-nos com uma bela e valiosa «súmula deste meu argumento sobre a vida e obra de Antero» e que foi lida e registada no vídeo que encontra no fim, tendo comentado brevemente a 1ª parte. Eis a súmula da Natália:

                     

«O poeta incinera o seu existente precário no fogo do seu essente, emanação do Eterno. Como, por outras palavras, dirá Unamuno, por Antero passam as primeiras sombras que hão-de adensar-se no "desespero humano" de Kierkegaard. Mas, Antero diverge do filósofo dinamarquês acreditando em alguma coisa pela qual vale a pena existir. E vislumbra-a nas próprias possibilidades do ser cujo drama termina na libertação final pelo bem. Trata-se, como ele diz, dum «espiritualismo realista, enxertado para florir e frutificar no tronco robusto do materialismo». Daí a sua busca incansável das vias que puderam conduzir à bondade social de um socialismo espiritualizado. Mas a materialidade da experiência agride a sua sensibilidade aristocrática. Não o esconde. E crucifica-se na decepção. É outro passo para a santidade em que culmina o seu anseio de dormir no seio profundo do Não-Ser. Afunda-se na noite mística e põe termo à vida para nela se perder, para nela se fundir na substância divina.»

A esta 1ª parte mais filosófica e essencial seguir-se-á uma 2ª acerca da insularidade do poeta, que não transcrevemos mas reproduzimos e lemos. Comentemos então agora brevemente a bela e profunda visão de Antero dada por Natália, outra alma revolucionária e poética açoriana: 

Talvez o que tenha mais decepcionado Antero de Quental tenha sido a pouca fraternidade existente nos meios que conheceu, dado o egoísmo, o partidarismo e a ignorância reinantes, estilhaçando o seu ideal juvenil "da bondade social de um socialismo espiritualizado" que na época de facto vários acreditaram e por ele se esforçaram. Mas também o enfraqueceram contribuindo para a sua decepção as desilusões amorosas e familiares sofridas. Forte porém é a imagem por Natália gerada de que Antero é que se crucificou por tal decepção ou decepções, pois poderia ter reagido de outros modos. E nesse sentido, por exemplo, o seu amigo e prolífero publicista Silva Pinto considerava que à grande bondade de Antero faltou o riso, ou seja, certo desprendimento em relação ao que se passava...

É bem difícil discernirmos quando surge, quanto dura e o que subsistirá no fim e além da vida em relação ao seu anseio de dormir no seio profundo do Não-Ser. Os seus sonetos encaminham-se, e autobiograficamente mostram-nos portanto encaminhando-se para algo disso, ainda que cristianizados por vezes, tal até no coração querer descansar por fim "Na mão de Deus". E talvez possamos considerar ainda as insónias de que sofria, uma condicionante psico-somática importante desta imagem e anseio de repouso e adormecimento. 

Quanto à valiosa frase «Afunda-se na noite mística e põe termo à vida para nela se perder, para nela se fundir na substância divina» tem também de ser bem cogitada para se compreender relativamente a Antero de Quental. Teremos então de observar no conceito caracterizante, clássico até nos tratados místicos, de "noite mística" a indicação da insuficiência que ele "sofreu" longamente de sinais de luz ou de amor do espírito e do mundo espiritual , para não falarmos sequer de Jesus ou de Deus, como sentiram mais alguns místicos, e que Antero só em jovem estudante sentiu e exprimiu em  vários poemas.

 Portanto a visão da Natália Correia de que ao perder-se nessa falta de luz, ao entrar nesse Não-Ser, Antero de Quental acreditava que estaria a fundir-se na substância divina, não me parece que tal fosse muito evidente para Antero. Pensamos mais, até por alguns dos seus sonetos tal como os Nossos Mortos, que Antero acreditava numa sobrevivência individual da alma espiritual e que pelo seu aspirar e lutar pelo bem ao longo da vida, e o desistir desta quando o corpo físico já pouco lhe servia de suporte de trabalho, mereceria uma não  condenação pelos valores ou normas da Ordem Cósmica do Universo, ou se quisermos Deus, que ele tanto interrogara ou demandara tanto, tendo até referido o suicídio como uma solução pouco moral ou digna, mas a que ele não conseguiu escapar....

Cremos que Antero de Quental estava demasiado desiludido da vida, nomeadamente da política e social, após fracasso da Liga Patriótica do Norte, que ele encabeçara contra o imperialismo britânico e que falhara. E demasiado isolado afectivamente, pois tinha só alguns amigos e sobretudo as duas crianças adoptadas, Beatriz e Emília, e que subitamente lhe foram retiradas. Quando dá os dois tiros na sombra de noite em Setembro de 1891, provavelmente fá-lo sem saber bem para onde vai. Porém quais as percentagens da crença em que se quantificariam as suas conjecturas hipotéticas de destino de sobrevivência no além não é fácil discernir-se...

Melhor será aceitarmos que partiu como cavaleiro do Amor ferido, cansado, mas não plenamente derrotado, pois levara sempre «o lema do Bem no seu estandarte» e provavelmente admitindo  uma vida depois da morte e na comunhão do corpo místico da humanidade, em que neste momento passados mais de cem anos da sua morte nós o celebramos, meditamos, ou mesmo oramos e apoiamos-valemos em reciprocidade ao que Dórdio Guimarães exprimira: "Santo Antero nos valha!"

A segunda parte do texto de Natália, que reproduzimos no todo na imagem acima, não transcrevemos mas está lida no vídeo de nove minutos que não foram suficientes para comentarmos senão brevemente a parte inicial. Mas nove minutos nos nossos dias, e anterianos, já é muito para a maioria das pessoa, que preferem empregar o seu tempo de vida na bola, no preço certo e nos noticiários amedrontadores e comentaristas alienadores. Será então para pouca gente, a gens anteriana e dos fiéis do Amor na demanda do Graal do espírito e da ligação divina... Valete Fraters et Sorores!