sexta-feira, 3 de julho de 2020

Guru Ranade, um verdadeiro yogi e filósofo. Biografia e ensinamentos, no seu aniversário (3-VII-1886, e até a 6-VI-1957)

Ramchandra Dattatray  Ranade nasceu a  3 de Julho de 1886, em Jamkhandi, na Índia, numa família bastante devota, que o soube impulsionar no caminho espiritual, e foi um dos mais brilhantes yogis, filósofos e comparativistas religiosos indianos do século XX, e no verdadeiro sentido da palavra, pois juntava ao trabalho intelectivo e de estudo das várias filosofias, religiões e tradições, um modo de vida harmonioso e uma prática diária devocional de aprofundamentos da vivência espiritual.
Nesse sentido elogiou-o em 1954, pouco antes de ele deixar a Terra,  o então Presidente da Índia, o filósofo e historiador Radhakrishnan:«Com Ranade, a Filosofia é a demanda da sabedoria e não um mero exercício intelectual. É para ele uma meditação no Espírito, um modo de vida dedicado».
 Aos 15 anos, em 1901, foi iniciado por Sri Bhausaheb Maharaj e foi-lhe dado um nome invocador de Deus pois, tendo aprendido com ele e existindo afinidades internas, na ocasião propícia meditaram juntos e Sri Bhausaheb Maharaj tocou-lhe no 3º olho e transmitiu-lhe um nome de Deus (ou mantra). Ranade privilegiará sempre a proximidade com o seu mestre ou guru, recusando cargos que o afastassem do  ashram e presença de Sri Bhausaheb Maharaj.  
Tendo-se formado com notas excelentes, embora com problemas nos pulmões graves, foi (em part-time para ter mais tempo para a sadhana)  professor de Inglês e depois, já com o Mestrado, professor de Filosofia no Fergusson College em Poona durante dez anos e chegará a vice-Chanceler na Universidade de Allahabad, onde ensinou de 1927 a 1946, tendo publicado vários livros valiosos sobre espiritualidade, pois sabia sânscrito, hindi, marata e kanada, além do persa, inglês e algum grego e latim.
 O primeiro livro, a partir de conferências pronunciadas em 1915 na Sanskrit Academy de Bangalore, foi dado à luz  em 1926, A Construtive Survey of Upanishadic Philosophy, e veio a ser muito considerado, já que as Upanishads são uma das fontes mais profundas e elevadas do pensamento indiano. Em 1928, após ter conferenciado sobre outra fonte imortal da sabedoria indiana, publicou o seu conteúdo em The Bhagavad Gita as a Philosophy of God-realization, seguindo-se Vedanta, the culmination of Indian Thought. Em 1933 deu à luz Indian Mysticism: Mysticism in Maharastra, onde traça sumariamente o desenvolvimento do misticismo indiano até Jnanadeva (séc. XIII), consagrando depois a ele e à sua obra Jnanesvari, a Namadeva, a Ekanata, a Tukaram e a Ramadasa brilhantes páginas de recolha e hermenêutica, no prefácio explicando: «Misticismo denota a atitude mental que envolve uma apreensão intuitiva em primeira mão, directa e imediata de Deus», considerando-a ainda como uma contemplação serena e amorosa, um desfrutar silencioso, de Deus.
Em 1937 pronuncia um importante discurso Presidencial no Congresso Filosófico Indiano, em Nagpur, onde afirma: «É só quanto toda a humanidade vier a reconhecer o Princípio Espiritual único que subjaz todas as coisas, que nós poderemos criar uma harmonia entre os diferentes credos, nações e raças. Sri Radhakrishnan é um embaixador do Pensamento Indiano para a Cultura Ocidental. Devemos desejar que cadeiras da Filosofia da Religião, tal como há em Oxford, fossem estabelecidas em todas as Universidade para que toda a Humanidade se possa encontrar na Filosofia do Espírito. Não é por um apelo aos dogmas das diferentes fés que podemos juntar as seitas que se guerreiam. É apenas levando-as a alcançar uma  consciência semelhante ou comum da vida espiritual que poderemos realizar o fim para o qual nos esforçamos»
1954 será o ano do Pathway to God in Kanada Literature, onde na hermenêutica das experiências desses místicos antigos partilha algumas das suas experiências interiores. E em 1956 dá à luz  The Conception of Spiritual Life in Mahatma Gandhi and Hindi Saints, saindo no mesmo ano e no dia do seu septuagésimo aniversário publicado pela Sri Gurudeo Ranade Satkar Samiti, em Jamkhandi,  em homenagem a ele, uma recolha, ilustrada, de ensaios e apreciações de livros e filósofos (Heraclito, Aristóteles, Xenófanes, Parmenides, Protagoras, Zeno, Melisos,  etc.) sob o título Philosophical & Other Essays. Part I, com um prefácio valioso de N. G. Damle, seu sobrinho e discípulo, que realça a reconciliação da linha Advaita, do monismo intelectual, com a Bhakti marga, o caminho devocional, alcançada por Ranade.
Algumas das obras de gurudev Ranade.
Anote-se que desde 1946 se retirara do cargo de vice-chanceler da Universidade de Allahabhad (embora continuando a acompanhá-la como professor emérito),  para o seu centro espiritual ou ashram de Nimbal, que fundara em 1925, a fim de aprofundar a realização espiritual e partilhá-la,  iniciando bastantes discípulos, o que fez até deixar a Terra em 6 de Junho de 1957. 
Tendo dedicado mais de quarenta anos da sua vida à demanda divina, pela filosofia e a mística, teórica e praticamente, Guru Ranade encontrou-se ou correspondeu-se com vários pensadores, filósofos ou espirituais que muito o apreciaram, entre outros, Tillak, S. Radhakrishnan, Rudolfo Otto, Sri Aurobindo, Dada J. P. Vaswani e Jacques de Marquette, este tendo sido mesmo iniciado, com a sua mulher em 1954, tendo eu traduzido e comentado as suas referência a Ranade para artigos neste blogue. Recentemente, Rajendra Chaun e Deepak V. Apte publicaram uma valiosa recolha de dezenas de testemunhos de convivências, aprendizagens ou apreciações: Tributes to and Remembrances of Gurudev R. D. Ranade, The Saint of Nimbal, by Rajendra Chauan and Deepak V. Apte.
É dele que transcrevemos, agradecendo aos compiladores, o testemunho de S. Radhakrishnan, 2º Presidente da Índia e filósofo: «Para Ranade, a filosofia não era uma profissão, mas uma paixão consumidora. Ele pensava, não apenas com seu intelecto, mas com toda a sua vida», de fato um chamado para que sejamos sinceramente íntegros em tudo o que fazemos. E «ele exprimia as suas convicções mais profundas com palavras e formas inteligíveis à pessoa comum. As almas realizadas com Deus formam uma comunidade abençoada,  "Anubhava mantapa", que trabalha com amor pela humanidade aflita. A história é a concretização progressiva da visão da fraternidade humana, culminando numa sociedade de espíritos livres, um corpo de seres dedicados à busca da verdade. Ranade passou sua vida na busca desse ideal. Ele nos lembra do verso  Moha Mudgara, de Sankaracharya.»  
                                                
Valioso é ainda o belo testemunho Dada J. P. Vaswani, o fundador da Sadhu Vaswani Mission (e autor do inspirador livro The Rishi), tanto mais que quando estive há décadas em Poona ainda estive nesse centro e dialoguei com o  familiar que lhe sucedeu: «Gurudev Ranade foi um grande sábio, um autor brilhante, um homem altamente erudito. Na história da humanidade, houve muito poucos académicos que alcançaram a iluminação espiritual. Gurudev Ranade foi um deles. Ele era um homem de livros que alcançou a ananda, beatitude divina, por meio da sabedoria espiritual. Ele era um sábio que se tornou um santo [tal como em Portugal foi Antero de Quental, no dito com as mesmas palavras de Eça de Queirós, que ilumina o In-Memoriam que lhe oi dedicado]. Era um professor que se tornou um profeta.
A aceitação da vontade de Deus e a meditação em Sua forma e nome: estas duas características fizeram de Gurudev Ranade a grande alma que ele foi. Possam a vida e os ensinamentos de Gurudev Ranade serem uma fonte perene de inspiração para todos nós!»
Entre os seus ensinamentos faremos agora uma pequena grinalda nesta breve apresentação pioneira em Portugal, onde infelizmente a palavra Yoga foi tão desfigurada ou diminuída, por culpa de vários instrutores desequilibrados e egóicos e a grande sabedoria da Índia ainda pouco conhecida.
«A minha filosofia não é diferente da minha vida... 
 As dores e as misérias que eu possa vivenciar ajudarão a purgar a mente das suas impurezas...
Uma vez gerada a devoção, a qualidade torna-se mais importante que a quantidade...
A miséria pode ser suportada; os ataques de tentação e o ódio, podem ser tolerados; mas a dor física torna-se insuportável a partir de certo limite. Em tais ocasiões a única via que permanece aberta é orar a Deus para nos permitir meditar... Os critérios de perfeição maior na vida espiritual são: a consciência de estar sem pecar, de ser um com Deus (bem exigente), e saber que de certo modo ninguém é (verdadeiramente) senão Deus  o verdadeiro agente no mundo», algo também muito difícil face à profusão de agentes segundos muito negativos...
Valorizando  a aspiração (mumuksha) e a determinação dos yogis,  gurudev Ranade considerava
todavia indispensável a ligação com um mestre, de quem se deveria receber a iniciação, com um nome de Deus, ou mantra, para se meditar nele depois:
«A forma de Deus deve descer sobre nós, e para isso acontecer deve haver um instrutor ou mestre de elevado nível espiritual. Só então ele pode fazer descer tal para o nível inferior do discípulo. Se o mestre nada tem, o discípulo nada recebe. Por vezes pode acontecer o discípulo receber algo, mesmo que o professor nada tenha. Mas há um limite para tal, e então o discípulo deixa de fazer progressos». 
Esta consciência de que a maioria dos instrutores ocidentais (e hoje em dia também os orientais) pouca ou nenhuma realização espiritual têm não está muito discernida ou desenvolvida pelas pessoas, tanto mais que muitos deles assentam o seu ensino em especulações incomprováveis, em canalizações e revelações imaginadas ou simuladas, ou em meras acumulações de conhecimentos teóricos ou históricos.
Para o guru Ranade, o brâmane [membro da casta religiosa] é, ou deveria ser, quem "realizou" Brahman, a Divindade, ou seja, aquele que conseguiu estabelecer uma comunicação fácil com Deus e para quem nada é mais querido ou amado que a forma com que Deus se lhe manifesta». 
Vemos nesta afirmação como Ranade estava longe dos que se posicionar na não-dualidade (advaita) e se apresentam como realizados, como conhecendo o Brahman, ou mesmo como O sendo, sem terem depois na realidade qualquer verdadeira ligação e visão da Divindade, embora possam receber nos seus ashrams muita gente algo hipnotizada ou iludida pela paz e amor que por lá se possa sentir.
A sua sadhana, ou caminho espiritual, assentava sobretudo na devoção ou sentimento amoroso (bhava) para com Deus e depois na lembrança e meditação no nome de Deus (Nama-Smarana) e, eventualmente, na Sua visão interior. E nessa prática desenvolveu notável sensibilidade, fazendo a dança da mente cessar, discernindo algumas particularidades da fisiologia espiritual que transmitiu, tal como a necessidade de abrir a janela existente no ventrículo do coração, algo que já o poeta yogi Kabir cantara. 

Kabir,  foi por ele bastante estudado e comentado, nomeadamente na obra que li, The Conception of Spiritual Life in Mahatma Gandhi and Hindi Saints, 1956, na qual explica as qualidades e características dum sadguru, ou verdadeiro mestre: alegria e destemor,  sempre ligado ou concentrado em Deus e sem necessidade sequer de práticas, consciência facilmente centrada no coração espiritual, comunhão no som subtil interno (Anahata Sabda) e eficácia social na transmissão dessas realizações aos discípulos.
Guru Ranade, no meio da sucessão dos seus gurus, no pequeno templo que os homenageia no ashram de Nimbal.
Numa das suas cartas, quando esteve doente, confessava ao seu guru: «Estou a tentar praticar a sadhana o mais possível. Muito raramente tenho a visão suprasensorial da lua crescente azul. Se recuperar a saúde estou decidido a praticar a repetição do nome de Deus pelo menos uma hora, duas vezes por dia.»
E nós, quando tempo dedicamos à invocação e adoração da Divindade, nos modos e formas que mais nos dizem, intuímos ou que nos ensinaram? Não nos perdemos demasiado na televisão ou net, ou nas comidas e bebidas, ou em espectáculos e conversas sem valor?
Votos de luminosa realização, ou então de boas práticas e vivências espirituais diárias...

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