domingo, 2 de fevereiro de 2020

Antero de Quental: da Filosofia e do Budismo ao suicídio e à realização espiritual e Divina.

Quando equacionamos as vastas leituras, reflexões e diálogos a que Antero de Quental (1842-1891) se consagrou, desde jovem, em especial Michelet, Proudhon, Hegel, Kant, Hartman, entre muitos outros, somos levados a pensar que talvez tenha valorizado demais a busca filosófica, dentro de conceitos e doutrinas, como o meio principal para a compreensão do ser humano e dos mistérios da vida, em vez de a tentar (ou pelo menos culminar) pela meditação, a intuição e a comunhão, já entrando numa dimensão não apenas racional e objectiva mas religiosa e sobretudo espiritual.
Antero de Quental constantemente surge-nos como alguém que ficou num "no man's land", numa terra de ninguém, num umbral entre a terra e o céu, entre a vida e a morte, a realidade psico-física e o absoluto ou o divino, com quem não conseguiu estabelecer a relação interior ou vivida de amor e conhecimento, em parte também pela doença psico-somática que o enfraqueceu...
Toda a sua afectividade natural, tão pujante na adolescência para a mulher, idealizada mesmo como Beatrice de Dante, e depois para a humanidade livre, com todas as suas aspirações de justiça e de revolução, expressa em belos e poderosos poemas começou a enfraquecer, a esfumar-se, conseguindo-a sublimar contudo nos imortais Sonetos, que retratam os caminhos filosóficos de luta entre a aspiração e a dúvida, a vida e a morte, o fatalismo e a liberdade, o deus vingativo e o deus amoroso, o vazio e o amor, rumo a uma luz e unidade  apenas levemente entrevista.
Morta a fase poética, desiludido da política, restou-lhe a filosófica, que sempre tivera mas pouco realizara por escrito apesar de vários programas ou projectos, que consegue todavia no último ano da sua vida culminar ou cumprir no seu testamento As Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, publicado em três números da revista Portugal
Certamente que restava a grande fraternidade idealista com vários amigos, com maravilhosas ou sábias cartas enviadas, e o amor para a família e as duas crianças adoptadas.
Mas isso não era suficiente e o seu coração foi cada vez diminuindo na irradiação equilibrante necessária face aos problemas da saúde nervosa e ao isolamento ambiental profissional, social e de missão.
 Uns meses antes de morrer ainda respondeu presente a um apelo estudantil da invicta urbe portuense para presidir a uma causa nacional, na efémera Liga Patriótica do Norte, contra o imperialismo inglês, mas aí viu de novo surgir em si a amarga desilusão e partiu do continente já sem desejos nem esperanças, como nos narrou Guilherme de Vasconcellos Abreu no seu contributo para o In Memoriam, a propósito de um sutra sânscrito do Hitopadexa que discutiram:
«Tudo estudou, aprendeu tudo e tudo executou, quem voltou as costas à esperança e se ampara descansado em nada esperar.»
Antero ficou mais sombrio depois de lermos este aforismo sanscrítico, e por vezes interrompia-me dizendo:
"-É exacto!... Não tinha consciência deste facto!"
Digo interrompia-me porque ele pouco falava, queria-me ouvir acerca do panteísmo hindu, acerca do pessimismo, do nirvana.»
Certamente se Antero de Quental tivesse estudado mais a tradição vedântica, em especial das Upanishads e na linha dwaita, ou seja, a que aprofunda a individualidade humana e a sua capacidade de uma relação pessoal com a Divindade, ter-se-ia iluminado, e vivido, mais...
Antero de Quental podia ou deveria ter aprofundado  a realização espiritual pelo coração, pelo amor, para com a Fonte, tanto dentro de si como no mundo espiritual ou mesmo no Absoluto, por uma busca e consciencialização do espírito e da Divindade.
Por múltiplas razões, e embora Antero tivesse raízes familiares religiosas e sensibilidade mística, e tivesse até lido os místicos alemães medievais, como refere mais de uma vez (a theologia germanica), esse cristianismo porque demasiado pietista ou devocional e excessivamente dependente de Jesus não lhe podia servir, seja como estudante de Coimbra, ou apóstolo de um socialismo idealista, ou já depois tão aberto ao ecletismo que o caracterizava e mesmo ao panpsiquismo, de que vimos uma alusão de Vasconcellos Abreu e de que a sua correspondência por vezes fala, tal como com Carlos Cirilo Machado...
Por outro lado o pessimismo e sobretudo o budismo, se por um lado o desapegavam do egoísmo e o tornavam mais moral  e ético, por outro lado, com as suas limitações de realização amorosa, espiritual e divinal, acabaram ainda por enfaixar mais Antero em liamas e numa linha de renúncia, de perda do eu e de desesperança. 
E assim o caminho espiritual iniciático interior que se baseia muito na meditação e contemplação, na consciencialização do espírito e na religação amorosa a Deus não foi suficientemente discernido como fundamental e realizável por Antero de Quental.
Quando o corpo enfraqueceu demais e a inserção positiva na sociedade, na sua missão de vate ou pensador se esfumara, as amizades de uns poucos de amigos distantes não chegaram para deixar de sentir-se demasiado desiludido do seu tempo e sociedade, sobretudo, quando regressado no fim de tudo à sua ilha dos Açores, as duas jovens adoptivas foram retiradas da sua tutela e teria de regressar para Lisboa envelhecido e quase sem nada nem ninguém...
Para o peregrino que sempre fora, as amarras quase estavam cortadas e o balão da sua alma balançava-se aos ventos atlânticos, sob o capacete algo opressivo da atmosfera coberta pelo que Antero, provavelmente após uma certa luta interior, se faria bem se faria mal, cortou as amarras da sua âncora e partiu samuraicamente, simultaneamente desesperançado e sob a Esperança...
Escrito na noite de 02.02.2020, após uma ida ao jardim da Estrela onde uma estátua o comemora...
Luz e Amor para ele, rumo à Divindade, no corpo místico da Tradição Espiritual Portuguesa...

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