domingo, 3 de julho de 2022

Jorge Ferreira de Vasconcelos. Um humanista e cavaleiro do Amor. Contributos para a sua compreensão e valorização

Escrito já há uns anos, em 2015, aquando do Colóquio Internacional Jorge Ferreira de Vasconcelos, realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, este texto que não chegou a ser ultimado a tempo de ser publicado nas Actas, já que a minha intervenção fora oral (encontrando-se no Youtube), resolvi agora em 3 de Julho de 2022 ultimá-lo, como simples contributo para o conhecimento da vida, pensamento e obra de tão notável humanista e dramaturgo português...
Se nos interrogarmos sobre qual era a visão do ser humano de  Jorge Ferreira Vasconcelos (1515-1585), que cursou Direito em Coimbra e exerceu cargos na Administração Pública, casando e tendo uma filha e um filho, este morrendo em Alcácer Kibir em 1578, diremos que encontramos bastantes indicações que consubstanciam a de um ser de origem divina, constituído de corpo, alma e espírito, perfectível, animado de uma natural vontade de alcançar a verdade, realizando tal por diversos meios, donde se destacam a aprendizagem, o estudo e a experiência, o sofrimento, a virtude e a paciência, o diálogo ou conversação, o amor, a contemplação e a liberdade, pois como nos diz corajosamente em tempos de começo inquisitorial: "Sem liberdade todo o gosto é desajeitado" ou ainda "Amor vence todas as coisas em força e muito mais em gosto".
No Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, uma das suas obras mais profundas e animadas do espírito dos Cavaleiros do Amor, escrito em 1567, já depois da Inquisição e a Censura estarem em pleno funcionamento, e já depois das suas obras anteriores terem entrado no Índice, afirma a excelência da demanda livre da verdade pois “a educação excelente consiste num conhecimento de coisas divinas e humanas a príncipes sobre todos necessário, que não se alcança senão lendo e vendo muito.” Ou ainda "pouco podem as forças corporais; no espírito está o vigor do homem..., e pois este me obriga eu confio, que ele me leve a bom porto." 
Ou ainda como reafirma mais à frente, e utilizamos a 2º edição, de 1867 (e anoto que a 3ª edição, de 1998, tem um prefácio anti-cavalaria espiritual): “Ca [porque] o homem nasceu livre, dotado de tal entendimento, que compreende ao mesmo homem: o qual compreende tudo, e foi-lhe dado para reparo e arma defensiva e ofensiva o livre alvedrio, que pacifica, concorda e vence tudo, quando se dispõe para seguir a bandeira da razão. Donde se diz "O sabedor domina as estrelas; e de si mesmo procedem também os seus defeitos”...
Esta é um linha claramente humanista espiritual, diremos mesmo erasmiana (sábia e fortemente afirmada na polémica de Erasmo com Lutero), a da valorização do livre arbítrio e da individualidade humana e logo contra determinismos, fatalismos e censuras, tal como na parte final do Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda reafirmará, no seu estilo terso e proverbial: «Corpo mortal e em tormento/ imortal o pensamento...»
Esta ideia de que há um caminho árduo a trilhar-se e que são necessários mestres e guias para melhor discernirmos e nos elevarmos é expressa por mais de uma vez, nomeadamente no cap. XXXVI onde medita sobre a diferença da Natureza quanto aos animais, logo preparados para a vida, e os humanos onde «se mostra tão escassa que por tempo longo, e experiência larga, trabalho contínuo, pouco e pouco, e com grandes quebras lhe vai dando notícia do mal e do bem, sem acabar em todo o discurso de sua vida de subi-lo no ponto alto do puro juízo donde vem, que nenhuma alimária nascendo mais inábil; parece que como nasce envolto em simpreza nunca acaba de se isentar dela (...) Sentindo pois esta falta da natureza humana, os Poetas, de claro juízo, e peregrino engenho, pretenderam dar guias aos homens, e daqui veio Homero escrever a peregrinação de Ulisses e Virgílio o de Eneias, como desenho e baliza do que o varão heróico deve seguir, e sobre todos se extremou Amadis de Gaula. Grande roteiro para nobres príncipes. Este seguiu o cavaleiro das armas peregrinas, e todos os da távola cada um como lhe coube a sorte. (...) E eu vejo agora que sois um dos esforçados do mundo»
 O que no Renascimento foi valorizado como a prisca teologia, a philosophia perenis, a continuidade da Revelação e do Conhecimento, encontramos várias  vezes afirmado, e ousadamente pois a Inquisição e  em parte a Reforma e a Contra-Reforma tinham começado o seu reino opressivo.
Assim o caminho para a Verdade é uma demanda esforçada, humilde
e contínua, e para manter a chama dela se aduzem nomes de grandes filósofos ou sábios, como Orfeu, Platão, Sócrates, Pitágoras, Astarxarxes, Ciro, Cipião, Séneca, e se Deus, o Governador do Mundo, a Prima Causa, a Distribuição do Mundo, é frequentemente evocado em ditos, citações ou mesmo diálogos filosóficos, já Jesus e os santos pouco são citados, tal como escassamente o Espírito Santo,  dando assim a entender a sua adesão à corrente humanista e erasmiana de "união" entre a cultura clássica (e não só ao incluir com frequência a Persa) e a cristã ou, como diz a "enxertia" delas, como também a uma certa linha crítica da dogmaticidade católica e de algumas das suas práticas correntes, nomeadamente a sacramental ("casaram-se numa lapa", por si mesmos, sem cerimónias), e que na época tinham sofrido já os embates do humanismo libertador, desde os tempos de Lorenzo Valla (1407-1457, com as suas Anotações ao Novo Testamento e os 6 livros Da Elegância da Língua latina, bem apreciado por Erasmo e que Ferreira de Vasconcelos cita), os dos místicos e beatas (por vezes demasiados ligados aos conversos hispânicos e a formas muito despidas dos sacramentos). Ora a corrrente reformista e protestante, acabaria por gerar a Inquisição e a Contra-Reforma que se abateram com particular empenho na Península, originando as desventuras de tantos escritores e pensadores e suas obras, tal como Jorge Ferreira de Vasconcelos bem conheceu..
Ao encontrarmos na sua obra múltiplos passos nos diálogos em que emergem o destemor da morte e a sua preparação natural em vida, o pôr-se em causa o purgatório e os meios de aplacar ou diminuir as suas penas, o criticar da pretensa superioridade  dos frades e clérigos
e bem como dos seus defeitos, um certo menosprezo das orações aos santos e uma familiaridade algo valorizadora das livrarias e saberes secretos, mágicos e astrológicos, somos levadas a discernir em Jorge Ferreira de Vasconcelos uma clara estratégia de pôr em causa posições ortodoxas, dogmáticas, inquisitoriais, no fundo controladoras do ser humano e do seu livre arbítrio, algo que hoje verificamos de novo estar a verificar-se, seja nas narrativas oficiais dos média, seja nas redes sociais aparentemente livres mas tão espionadas, controladas e opressivas.
A corrente mais avançada na época era claramente a Humanista, e já não a Escolástica ou a autoritária (a sorbónica, como lhe chamava Erasmo), brilhando com o seu conceito da dignidade e de perfectibilidade humana, e a de o Homem ser o microcosmos por excelência do Macrocosmos, ordenado pelo e para o Bem, o Belo e o Verdadeiro, que estavam tanto dentro de si, como na comunidade, no Universo e na Divindade, e que está acessível a nós por uma pedagogia acertada enquanto Intelecto Primordial, Juízo Puro, Logos, Palavra. E que se manifesta também enquanto Providência: “Gostosa sorte é a das pessoas que a divina providência escolheu e destinou para por elas distribuir seus benefícios ao mundo...”
Esta fé no Dharma, Providência ou Ordem do Universo aparece afirmada na linha da Cavalaria do Amor em numerosas passagens, tal como esta:
«Pondo a confiança em Deus que deu ao homem ser superior das coisas do mundo foi-se a ele com a espada feita e o seu escudo adiante...
São na realidade muitas as passagens em que Jorge Ferreira de Vasconcelos afirma a Tradição Perene, no Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, logo enaltecida no valioso Prólogo  que
é dedicado a D. Sebastião, então uma criança,  ao mencionar a tradição iraniana por isso “eu seguindo o costume dos Persas que não se apresentavam ante a Majestade Real sem oferenda,” apresentando em seguida a genealogia "da nobre Ordem da Cavalaria" que tem a sua origem  no  Baco índio, filho de Júpiter, o qual assim a inicia:« Amigos e estimados companheiros. De hoje avante vos faço livre de todo o tributo e servidão. Quero e mando que vos chameis Heróis Veteranos, obrigados a manterdes sobre todos lealdade, sustentar verdade, defender e amparar as fracas mulheres. Por todas as regiões vos concedo passagem franca, habitação segura, dos Reis tereis assentamento e podereis por vós mesmos castigar a quem de palavra ou obra vos ofender e anojar».
 E de novo no cap. XIX,  valorizando a sabedoria pagã que com os seus deuses está intimamente ligada com a cristã, esta vindo coroar aquela, aconselha bela ou afortunadamente: «Diz um poeta gentio, deixa ir a tua mão por onde os ventos ta levarem, que mais amigos são os deuses do homem, que ele mesmo de si.»
Também no cap. XXX vemo-lo reafirmar os valores universais da nobre ordem da Cavalaria, nomeadamente a da força da vontade toda poderosa, num não cristão, pois «Brandabur inda que pagão era muito inteiro de grande saber e virtude, e dobrava a vontade a toda a razão por mais caro que lhe fosse...»
Esta valorização da religião do dever, na Índia chamado o Dharma, e chegará a referir os Naires, os guerreiros ou ksatryas indianos do Malabar, aliados dos portugueses, é ainda enunciada a partir do espírito, da individualidade livre, esforçada e amorosa: «donde o desenho do nobre espírito seja sempre fazer o que deve, e aja-se por satisfeito com o bom nome que consegue, e que sempre acompanha os bons feitos.»
Após séculos de lento avanço cultural e científico, a descoberta da imprensa nos meados do séc. XV, o começo dos descobrimentos marítimos e o acesso dialogante a múltiplas fontes de conhecimento, nomeadamente na Europa culta e humanista, onde tantos letrados portugueses estagiaram e se desenvolveram, vieram permitir pôr-se em causa justificadamente, porque «a experiência era madre de todas as coisas», muitas concepções antigas, nomeadamente as contidas na ciência, na filosofia, na religião e na ordem social.
O ser humano, e em especial os letrados, guerreiros e marinheiros, levantaram  a face ao Céu, acreditaram mais nas suas virtualidades e iniciou-se um grande desabrochamento do saber que pôs em causa a  autoridade da Igreja Católica e do papado em Roma, não só pela arrogância, superficialidade e superstições, como também por certa ferocidade e cupidez, tal a da venda de indulgências e as extorsões inquisitoriais.
As críticas que encontramos em Jorge Ferreira de Vasconcelos, e que respiram esse grande sentimento de participar numa renovação da humanidade, embora não sendo muitas (e sabemos hoje que houve bastantes cortes da censura na sua obra) são bastante significativas e elas são claramente afins do Humanismo em geral, seja na sua vertente filológica, pedagógica, histórica, cultural e religiosa como também filosófica, esta na sua afirmação das duas vertentes principais, 1º de auto-conhecimento: o mal vem da ignorância da pureza do coração e do que é o bem e o mal:  (“o animal mais inimigo do homem é o mesmo outro homem, por o desconhecimento que tem da pureza de seus corações: ca [porque] o bem e o mal conhecesse nas coisas, em que consiste, e o verdadeiro e o falso na alma, em que se encobre”, e 2º da auto-determinação, tão repetida na condenação do sujeitar-se ao outro, ou ao seu estado e opinião, ou ainda em relação aos fados, dependendo estes dos nossos pensamentos e esforços e estando o sabedor acima da influência das estrelas.
Contudo Jorge Ferreira de Vasconcelos  desenvolvera bem a visão da interdependência dos seres, afirmando-a frequentemente, tal quando cita e transcreve Cícero: «o que dizia Platão ser bem dito, que não nascemos para nós sós. Mas parte pera a pátria, e parte pera os amigos, e assim dizem os Estóicos que tudo o que se gera na terra é pera o uso dos homens, pera que uns aos outros pudessem aproveitar-se».
Embora aceitando a transcendência e a Providência Divina, aqui e acolá citadas em provérbios populares,
Jorge Ferreira de Vasconcelos valoriza mais a imanência do espírito e a sua manifestação e conquista pelo esforço e a virtude, a cavalaria e a contemplação, havendo ainda uma forte consciência e sensibilidade ao poder do amor e aos seus efeitos e sinais psico-somáticos, algo que podemos considerar uma característica da Tradição espiritual portuguesa e dos seus fiéis do Amor.
Face a uma religião que apresentava um pai punitivo e um filho sofredor e vencido,
Jorge Ferreira de Vasconcelos, recorrendo aos filósofos antigos e à sabedoria perene, acaba por valorizar a assunção espiritual e guerreira, que traz ao de cima o resplendor da glória, seja no contentamento simples do amor e da sua branda conversão, e na vida simples e não cobiçosa, seja ainda na cavalaria esforçada e amorosa.
Desta valorização do espírito humano e da sua vontade e amor resultavam novas mentalidades e logo realizações sociais, já que tudo circulava então por uma Europa relativamente unida numa idade de Ouro, tal como Erasmo e outros humanistas sentiram e clamaram durante alguns anos quando a Paz florescia nessas primeiras décadas do séc. XVI.
No princípio de 1524, Erasmo concluía as Paráfrases aos quatro Evangelhos, dedicando a última ao rei de França, Francisco I, onde tanto confessa como espera que os quatros monarcas unidos em simetria com os quatro Evangelhos, tenham também os seus corações unânimes no espírito de concórdia evangélica, ou que a divulgação crescente dos livros sagrados nos leigos tenha efeitos positivos purificadores e restauradores nas comunidades, e ousadamente critica os conflitos entre os povos cristãos e todos os que aconselham a guerra.
Ecos desta revolução humanista podemos ouvir num dos opositores portugueses de Erasmo, Aires de Barbosa, no seu Antimoria em que se alarma porque o Elogio da Loucura andava entre todas as mãos. 
Mas, ao contrário, esse destemor perante os papões do Cristianismo, sejam eles o diabo, a magia, a Bíblia traduzida em vulgar língua ou o criticar os frades ou as indulgência, está muito presente na obra de Jorge Ferreira de Vasconcelos, e por isso não nos admiremos de a sua obra ter sido bastante censurada ou mesmo feita desaparecer como sucedeu quanto ao Tratado das Sortes e ao Diálogo da Parvoíce.
Assim, na sua valiosa Aulegrafia (pág. 80 e utilizamos a edição anotada por António Machado de Vilhena, dos anos 60) ouvimo-lo dizer: «Daqui lavo as mãos destes feitos, mas eu fico que vós me nomeeis, que o demo sempre me fez adivinhas nestas coisas, já me vós ouvireis de crer para bem.» e esta relação muito à vontade com o demónio, tão mitificado e aproveitado pela Igreja Católica, dá a entender que
Jorge Ferreira de Vasconcelos, via mais nele o resultado de concepções humanas supersticiosas ou atemorizadoras do que um ser exterior, e nesta citação elevando o demónio a inspirador das artes ocultas ou da clarividência ou adivinhação, põe-nos antes diante da sua aceitação de haver capacidades supra-discursivas ou supra-racionais no ser humano, e que não deveriam ser diabolizadas, negativizadas.
Noutras vezes é a facilidade em aceitar a presença dos espíritos, a comunicação entre os vivos e os mortos, algo que a Igreja reprovava, não permitia e diabolizava. Numa amostra disso valiosa diz-nos, na pág. 110: «Andai por cá, vamos ao deserto onde possa gritar, se quereis que não arrebente. Dou-vos minha fé que outrem podia estar de pior veia do que eu: parece que falava de mim algum espírito, segundo estive bravo: dera quanto tinha porque me ouvireis». Há aqui como que a afirmação do ser humano conseguir ultrapassar-se, inspirar, ser possuído pelo furor poético, ou o amoroso ou o profético, tão bem doutrinados por Marsilio Ficino que
Jorge Ferreira de Vasconcelos conheceria certamente pelas suas traduções de Platão ou mesmo de Plotino.
Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano
Entre nós um elo importante da cavalaria do Amor foi o infante D. Pedro das Sete partidas, morto tragicamente em Alfarrobeira em 1449, e que escreveu nas Ordenações Afonsinas uma bela definição de milícia e cavalaria, que já citei no Livro dos Descobrimentos do Oriente e do Ocidente: «Cavalaria foi chamada antigamente companhia de nobres homens que foram ordenados para defender as terras e por isso lhe puseram o nome de Milícia, que quer dizer, companhia de homens duros e fortes e escolhidos para sofrer grandes medos e trabalhos e lazuras por prol do bem comum».
A valorização do espírito da cavalaria portuguesa vai ser excelentemente realizada no final do Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, no cap. XLVI, com a descrição do "Torneio ordenado pelo Príncipe Dom João, filho de D. João III" e onde "três fadas, Cloto, Lachesis e Antropos" cantam versos histórico-proféticos: «De cujo estandarte com o sinal da redenção humana será alferes mór da redondeza./ (...) De um Fénix que vivo ardendo/ logo outro Fénix nasceu/ por Deus a Portugal dado/ para ser mais exaltado/ que Israel por Salomão/ tais prognósticos nos dão/ os aspectos celestiais/ e seus principio Reais,/ como foram trabalhosos/ assim hão de ser famosos/ os meios e fins da vida/ que longa lhe é concedida/ ca o que foi sopesado / dos céus sempre foi estremado/ tão benignas as estrelas/ lhe serão, que suas velas/ no mundo sejam espanto/ e ele outro Afonso santo/ que o Reino renovará,/ e os termos lhe aumentará/ muito melhor que eu canto/.»
Podemos dizer que na obra de Jorge Ferreira de Vasconcelos sobreleva o ensinamento do Amor, tão elevado e valioso quão disperso e multifacetado ( e ainda não recolhido nem realizado),  em todos os seus livros altamente sentido e expresso, tal como podemos ver no passo da Aulegrafia p. 87 em que Dinardo é um ilustre cavaleiro do amor: «para ele heresias são desconfianças do amor, ingratidão. - Ah senhora, não fazeis heresias; eu para vós ingrato, quando só de me abrirdes esses olhos cuido que triunfo do mundo? …. “Ora como isto assim seja, e vós senhora sois quem eu contemplo, e o meu ídolo, crede de mim, que vos sacrifico esta alma apurada no amor que se vos deve...»
Deparamo-nos aqui com afirmações claras da cavalaria do Amor, tal a divinização do ser amado, denominado mesmo ídolo, que surgindo tão naturalmente,  não deveria ser muito agradável ao "Santo" Tribunal da Inquisição. «Para isso sois vós senhora muito discreta, e eu tão enleado, que nada do que sinto sei encubrir-vos: lanço a alma, e estilo-me de desejos de vossa conversação: velando ardo nestes pensamentos dormindo não me consentem repouso algum, aborreço-me a mim mesmo por o pouco que valho convosco...»
Uma tentativa moderna de adivinhar a vera efígie de Jorge Ferreira de Vasconcelos
 Há toda uma teoria do amor humano, galante, profundo, a ser transmitida já em plena época reformista puritana e tanto católica como protestante e assim ouvimo-lo mesmo clamar, na p. 89 o seu desprezo pelos ricos e riquezas, «vão bugiar os Fucaros, e quanto trato há em Trapizaonda....Não há coisa que chegue a isto, é manjar de alma falar com pessoa discreta, e galante, e acha-se raramente... 
Afirma assim o valor supremo do amor, acima do dinheiro e cristaliza-o e apura-o no Memorial, verdadeiro breviário do amor puro. 
Oiçamamo-lo a teorizar um pouco, na pág. 314 «sendo o amor um desejo de lograr coisa boa», ela explica-se numa linha mágica e neo-platónica como uma comunicação de fluidos e uma operação interior anímica, explicando como é o namoro por fama: «tanto que à nossa notícia vem de ouvidas alguma coisa digna de estima, correm logo os olhos invisivelmente para a contemplação, e na imaginação a vêm e compreendem, formando na sua alma a sua Ideia e figura, com que está esperta e desejosa de a ver por efeito.»
Esta valorização do Amor, através da operação interior da imaginação e contemplação, tão ficiana, inclui contudo a sua concretização no amor sexual e o assim afirmará corajosamente face ao dualismo católico, considerando-se como um degrau para o amor divino, tal na pág. 315, «o amor é perfeito e não pode ser mau. Porque procede de Deus em que não pode haver senão bem, e por amor participamos o bem de Deus e a sua formosura de que a humana é retrato: por amor alcançamos conhecimento de Deus, por o que não somente é bom mas necessário: amor ata as almas em conformidade, e sendo amizade boa, melhor é o amor que a causa: amor levanta os ânimos as grandes coisas que por ele se fazem (…) sem o amor não se conheceria o ódio, como pela paz a guerra...»
Saibamos passar pelo ódio e pela guerra, o mais rapidamente possível, para chegarmos ao Amor e à Paz...
Dante, guiado pela sua alma gémea e Beatriz beatificante, contempla o Sol do Amor Primordial

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