terça-feira, 12 de julho de 2022

Introdução aos "Poemas de Kabir", por Evelyn Underhill e Rabindranath Tagore. Tradução brevemente comentada por Pedro Teixeira da Mota.

                                         

Rabindranath Tagore (1861-1941), como grande poeta e místico indiano, quis prestar homenagem a um dos maiores poetas e místicos do seu país e resolveu traduzir para inglês os poemas-cantos de Kabir (1398 ?-1518), dando à luz em Fevereiro de 1915, Kabir's Poems, sendo assistido pela estudiosa inglesa de misticismo Evelyn Underhill (1875-1941)  Como tal antologia não está traduzida em Portugal, embora haja edições dos poemas de Kabir, resolvemos apresentar a introdução, pois é valiosa na sensibilidade e espiritualidade, e assim acrescentamos mais textos neste blogue  dedicados tanto a Rabindranath Tagore como à Tradição Espiritual Indiana, o Sanatana Dharma, e seus mestres, e até porque ainda visitei em 1995 perto de Calcutá o seu centro Shantiniketan, com a famosa ao ar livre Universidade  Visva Bharati, tendo tido um bom diálogo com um dos responsáveis e que espero um dia partilhar.

Embora a introdução esteja assinada por Evelyn Underhill e manifeste a sua cultura de ocidental e cristã, cremos que a aprovação, senão mesmo sugestões, de Rabindranath também se terão exercido no texto. Ora ouvirmos  místicos falarem de místicos, pode impulsionar em nós a correnteza de Amor divino que ambos expressaram tão sincera e ardentemente embora Rabindranath Tagore experimentasse e cantasse também fortemente o amor humano e o da Natureza, enquanto Kabir, embora casado e tendo tido filhos,  sentiu ou dedicou mais o amor ao amor em si, à realização espiritual, à Divindade e à fraternidade dos adoradores de Deus, acima das denominações e dogmas das religiões e seitas, exprimindo os seus poemas a partir de vivências yogicas, meditativas ou devocionais fortes, estimuladas pelo canto ou kirtan, a oração, os mantras, por vezes mesmo a dança, sendo essas canções ainda hoje muito populares, havendo yogis, ascetas e bauls que o têm como mestre do mestre, ou seja, como param guru, e por isso são chamados os Kabir panthis, os que seguem o caminho (panth) de Kabir...


Oiçamos então a introdução: «O poeta Kabir, de quem uma selecção de cantigas é aqui pela primeira vez oferecida aos leitores de inglês, é uma das mais interessantes personalidades da história do misticismo indiano. Nascido em, ou perto, de Bénares, de pais islâmicos [tecelões], e provavelmente perto do ano de 1440,  ainda jovem tornou-se discípulo [após vários esforços] do célebre asceta hindu Ramananda. Ramananda levou até ao Norte da Índia  o revivalismo religioso que Ramanuja, o grande [místico e filósofo] reformador do séc. XII do Bramanismo, iniciou no Sul. Esta reviviscência foi em parte a reacção contra o crescente formalismo do culto ortodoxo, em parte uma asserção das exigências do coração contra o intenso intelectualismo da filosofia Vedanta, o monismo exagerado que esta filosofia proclamou. Na pregação de Ramanuja tal reacção tomou a forma de uma ardente devoção pessoal ao Deus Vishnu, como representando o aspecto pessoal da natureza Divina: essa mística "religião do Amor" que faz o seu aparecimento a certo nível da cultura espiritual, e que credos e filosofias são impotentes em  matar.
Ramananda... Será uma vera efígie...?

Apesar de tal devoção ser indígena [ou inata] no Hinduísmo, e encontrar expressão em muitas passagens da Bhagavad Gita, havia no seu revivalismo medieval um largo elemento do sincretismo. Ramananda, através de cujo espírito, diz-se,  terá chegado [a  devoção a Rama,  avatar ou incarnação de Vishnu, e a influência da Bhagavad Gita] a Kabir, parece ter sido uma pessoa de  cultura religiosa ampla, cheia de entusiasmo missionário.  Vivendo numa época  na qual a poesia apaixonada e a  filosofia profunda dos grandes místicos Persas, Attar, Saadi, Jalalu'ddin Rumi e Hafiz  exerciam uma influência poderosa no pensamento religioso na Índia, ele sonhou reconciliar esse misticismo pessoal e intenso  Maometano com a teologia tradicional do Bramanismo.

Alguns consideram que estes grandes líderes religiosos  foram influenciados pelo pensamento e a vida Cristã; mas como é um ponto sobre o qual as  autoridades competentes mantêm pontos de vista amplamente divergentes, tal discussão não será aqui tentada. Podemos contudo afirmar com segurança, que nos seus ensinamentos, duas - ou talvez três  - correntes aparentemente antagonistas de intensa cultura espiritual se encontram, tal como a Judaica e a Helenística se cruzaram no começo da Igreja Cristã: e  uma das mais notáveis características do génio de Kabir é ele ter sido capaz nos seus poemas de fundi-las [islâmica e hindu] numa.

Sendo um grande reformador religioso, o fundador de uma seita à qual pertencem ainda hoje cerca de um milhão de Hindus do norte,   é todavia  como poeta místico que Kabir vive supremamente em nós. O seu destino foi o de muitos dos reveladores da Verdade. Inimigo do exclusivismo religioso,  procurando acima de todas as coisas iniciar os seres humanos na liberdade das crianças[ou filhos] de Deus, os seus seguidores honraram a sua memória reconstruindo num novo local as as barreiras que ele esforçara-se por deitar abaixo. Mas as suas maravilhosas canções sobrevivem, as expressões espontâneas da sua visão e do seu amor; e é por estas, não pelos ensinamentos didácticos associados ao seu nome, que ele faz o seu apelo imortal ao coração. 

Nestes poemas uma vasta diversidade de emoção mística é trazida à acção: desde as mais sublimes abstrações, à paixão mais extra-mundana pelo Infinito, até à mais íntima e pessoal realização de Deus, expressa em metáforas naturais e símbolos religiosos extraídos indiferentemente da crença hindu ou islâmica. 

É impossível dizer o seu autor se era um Brahman ou Sufi, Vedantico ou Vaishnava. Ele é, como ele  diz, «ao mesmo tempo a criança da Allah e de Rama». Esse Supremo Espírito a quem ele conhece e adora, e a cuja alegre amizade ele procurou induzir as almas de outras pessoas, enquanto incluía todas as categorias metafísicas e todas as definições de credos, transcendia-as; e contudo cada uma delas contribuía algo para a  descrição dessa Infinita e Simples Totalidade que se revelava a ele próprio, e de acordo com a medida deles, aos amantes fiéis de todos os credos». 

Concluindo eu agora,  seja por que nome, mantra sagrado ou concepção divina nos dedicarmos a orar, meditar ou contemplarmos,  consigamos nós estabilizar  a nossa mente e alma e elevar a intensificar  a chama em nós do amor  pela Fonte e deste modo aprofundarmos  a sintonização da nossa consciência com ela, para  podermos comungar mais seja a "Infinita e Simples Totalidade", como sentiram e poetizaram tão bem Kabir e Rabindranath Tagore, seja a devoção amorosa com a Divindade no aspecto ou face pessoal, feminina ou masculina, que mais nos diz ou toca.

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