segunda-feira, 4 de julho de 2022

Madame Blavatsky e os Yogis, por Carlos Cirilo de Machado, o 2º Visconde de SantoTirso. Uma crónica bem humorada.1924.

                                                          

Carlos Cirilo Machado (1865-1919), o 2º Visconde de Santo Tirso, estudou Direito na Universidade de Coimbra, foi Alferes de Cavalaria e muito jovem interessou-se pela filosofia, a literatura, a espiritualidade ("sou espiritualista de nascença, e tenho o espiritualismo agravado pela reflexão"), a política, vindo a ser um jovem discípulo e amigo de Antero de Quental, de quem nos resta uma curta mas valiosa correspondência (duas cartas), por mim já abordada neste blogue. Foi diplomata em Itália, Espanha, Londres, Estados Unidos da América, Bruxelas e Rússia, exercendo com grande qualidade algumas das missões diplomáticas e jurisdicionais espinhosas, nomeadamente contra a ganância inglesa, a incursão do Dr. jameson, no Transvall,  e norte-americana  no caso do caminho de ferro de Lourenço Marques. 

                                      

O texto que transcrevemos, com a ajuda da Cláudia Lopes, é o terceiro dos vinte e nove artigos compilados no livro Cartas de Algures, editado pela Portugália Editora, em 1924, e que tinham sido originalmente escritos para os jornais do Brasil O Estado de São Paulo e O País, onde tais crónicas tiveram grande sucesso pela  cultura, sensibilidade e apurado sentido de humor que Carlos Cirilo Machado manifestava. Aliás os títulos dos artigos mostram bem a sua  funda sensibilidade e a ampla capacidade cognitiva, e como sabia discernir e com verve iluminar as contradições e mistificações, equívocos, paranóias e filosofias baratas ou de massas em que tantos vivem, e destacaremos apenas A ideia de justiça, Da felicidade, Do matrimónio, Da dança, Da música, Do suicídio, Das mulheres, Das crianças, Do jogo, Do alcoolismo, Dos anúncios. Um dos artigos, O Divinitante, destaca-se por ser uma sóbria reflexão sobre a cognoscibilidade e a crença em Deus, temas que sempre interessaram Carlos Cirilo de Machado e que com Antero de Quental os debateu. Interessante, pensei, seria discernirmos o que em alguma destas crónicas teve influência anteriana, já que pelo menos neste último ensaio pressentimos dois passos, um em que parece aludir ao materialismo do dr. Sousa Martins, outro em que realça a incapacidade científico-filosófica para explicar “o espírito ou a alma”: «Porque tudo que sejam células, protozoárias e protoplasmas, selecção natural, luta pela existência, o Logos e o Imanente só nos levam a meio caminho». No fim, porém, do artigo, confirmando a interrogação inicial, ele cita mesmo Antero, pois escreve“não é nem a ciência, a filosofia ou a teologia” que dão o conhecimento da Divindade mas tal «vem da fé. E a fé vem da graça, que é um milagre. Para haver a graça é preciso que haja Deus, e para crer em Deus é preciso que haja graça. É evidentemente um círculo vicioso. Mas, de quantos círculos viciosos eu conheço, é este o mais capaz de produzir virtudes. É por isso que entre os crentes há o tolo que crê porque pensa que raciocina, e há o pensador que reconhece a impotência do pensamento, e que refugia-se na fé consoladora e pacífica [Ou então ora, medita, contempla e inicia-se na gnose espiritual e divina, sob a graça directa ou indirecta, direi eu...].

«Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.»

Foi Antero de Quental quem escreveu isto. Não foi um pensador banal de vulgarização filosófica em folhetos a vintém.
Entre uns e outros - os crentes e os descrentes – há os indiferentes, cujo espírito se engorda com bolota nos montados do Alentejo.» 

Anoto que no seu outro livro de crónicas ou ensaios, De Rebus pluribus, 1923, há três menções magistrais a Antero de Quental e  espero brevemente partilhá-las, comentadas.

Leiamo-lo agora então, nas Cartas de Algures, a propósito da fundadora da Teosofia, Helena Blavatsky e das práticas yoguicas semi-miraculosas, ou talvez mais de fakir, que ela divulgava, apreciadas com bastante humor por Carlos Cirilo de Machado, e que dispensam comentários: 

                                         
                                             Dos Joghi [ou Yogis]

Conta M.me Blavatsky, a pitonissa da Teosophia, que do mesmo modo que

A rosa para ser rosa
Tem de ser de Alexandria
E a mulher p'ra ser formosa
Deve chamar-se Maria

assim também um Yogi, para ser Yogi, tem de ser perfeitamente limpo, não só de espírito, mas de corpo. Esta afirmação inspira-me uma profunda simpatia pelos Yogi, pois há pessoas cujo espírito é perfeitamente imaculado, mas cujo corpo está pedindo os rigores de um banho turco, por se achar fora da alçada do banho ordinário e da espuma de sabão; ao passo que outras, de um escrupuloso asseio corporal, têm almas de suínos. O mais vulgar porém, é encontrar espíritos crapulosos em corpos de suspeita limpeza.
Não sucede isso aos Joghi da Índia, onde M.me Blavatsky bebe a essência da Teosofia, que depois espalha pelo mundo em saquetas e pílulas e artigos nos jornais [ou revistas] daquela religião exótica.
Segundo esta estimável senhora, não basta aos Yogi ter o espírito limpo por dentro e o corpo limpo por fora. Um e outro tem que estar imaculados por fora e por dentro.
A limpeza interior do espírito é uma coisa simples, conquanto não seja vulgar. Quem não tem pensamentos crapulosos, decerto não formula as suas ideias em termos vis – e nisso consiste o asseio interno e externo do espírito. Para o asseio interno do corpo tem a farmacopeia muitos recursos, mas nenhum é satisfatório. Conseguem-no os Yogi recorrendo simplesmente à água.
Eu sempre considerei a água um medicamento perigoso, e estimaria ver nas garrafas em que ela hoje se vende um rótulo amarelo com uma caveira sobre duas tíbias, que é o brasão de armas da Morte, e por baixo em grandes letras pretas o letreiro veneno só para uso externo. A razão do meu preconceito é dizerem-me os sábios que a água é o veículo de vários micróbios – e, portanto, de varias doenças, enquanto a ciência não reabilitar o micróbio. Para ser inocente, a água tem de ser fervida e filtrada, ou então engarrafada, a ponto de deixar de ser água. E neste ultimo caso produz geralmente dispepsias.
Nunca vi peixes morrerem de morte natural, a não ser em bocais de vidro, e esses creio que morrem doidos. Os outros são apanhados em redes, ou então num anzol, quando não preferem, contra as regras do jogo, comer a isca e praticar no anzol operações a que ele não é originariamente destinado, como o prova o seu feitio. A razão disto, a meu ver, é que os peixes empregam a água para uso externo. As pessoas que morrem afogadas, é porque fazem também dela uso interno. Os Yogi, porém, procedem com estas pessoas, cuja prudência tem resultados fatais, e não como, os peixes. Nisso está o milagre. 

Estes santos hindus tem dois meios de purificar o interior. E ambos M.me Blavatsky revela sem pejo, porque não deve haver
pejo de revelar a verdade.
O meio mais natural, ou pelo menos mais compreensível, é
beberem muitas canadas de água, a qual, obedecendo à lei de gravitação universal, providencialmente descoberta por Sir Isaac Newton, quando lhe caiu na testa uma maçã – o que prova que desde o princípio do mundo a maçã teve sempre uma influência decisiva nos destinos da Humanidade, o que não a acontece ao peru – desce rapidamente por o aparelho digestivo, arrastando na caudalosa corrente, todas as impurezas que porventura existam no corpo do Joghi. Compreende-se. A água entra pelo orifício superior e sai pelo orifício inferior da canalização. Não é vulgar, mas compreende-se.
O outro processo é mais maravilhoso. Senta-se o Yogi num semicúpio. E, pela acção do espírito sobre a matéria, a água sai pela boca até o Joghi ficar sentado no enxuto.
Eu, que sou espiritualista de nascença, e tenho o
espiritualismo agravado pela reflexão que vem dos anos e a ignorância que vem do estudo – pois sabe tudo quem nunca estudou nada- acredito piamente na influencia do espírito sobre a matéria. Mas nunca imaginei que ela fosse até ao ponto de, sem bombas nem diferença de nível – antes pelo contrário - converter um homem de bem num repuxo de jardim ou num poço hertziano.
Isto afirma M.me Blavatsky, e, com devota
estupefacão, repetem, crentes, os teosofistas. 

Helena P. Blavatsky com dois teosofistas, em 1884.
Não tentarei explicar o que seja a Teosofia, porque não a entendo, bem, embora haja quem tenha o talento de explicar largamente aquilo que não percebe, e consiga com as suas explicações fazer perceber aos outros, que assim revelam inteligência acima do vulgar. Se a etimologia ainda não levou o destino da genealogia e significa alguma coisa, a palavra, derivada do grego, quer dizer Ciência de Deus. E acho estranho que a Ciência de Deus leve a gente a não saber qual é o lado mais próprio para beber água sem aparelho especial. Esta descoberta de M.me Blavatsky não sei se adianta muito o conhecimento da Divindade; mas é o que eu conheço de mais perfeito em género cambalhotas. Só sei dizer que Teosofia é uma palavra grega, que designa uma religião indiana, professada por uma senhora [ucraniana-russa] em jornais ingleses. Lembra menos uma religião que uma salada russa. E não me refiro à salada russa política, mas à que é feita de legumes, a qual é mais agradável ao paladar e menos indigesta, como o pode ainda testemunhar o malogrado tsar Nicolau II, se são verdadeiras as misteriosas doutrinas teosofistas, em que os mortos vêm conversar com os vivos, de perna traçada e cigarro na boca.
Assim purificados, e estabelecido o predomínio do espírito sobre a matéria, um Joghi pode durante um ano ou mais, estar metido num caixão selado e enterrado, sem comer nem beber, nem gastar roupa e calçado, o que é de um valor incalculável nestes tempos de guerra e de açambarcadores de subsistências e de outros objectos, que são, para quem não é Joghi, de primeira necessidade. Uma família de Joghi deve ser uma coisa extremamente económica.
Um chefe de família, cujos rendimentos não tenham crescido na proporção da carestia da vida, não tem mais que fazer do que meter toda a família num semicúpio. E quando, pelo poder do espírito, houver convertido a mulher e os filhos em outros tantos geisers, faz enterrar-se a si e à família inteira, sem dar parte a ninguém alegando para essa falta de atenção o estado de consternação em que se acha; e determina em testamento que desenterrem tudo quando estiver assinada a paz e restabelecido o preço normal dos comestíveis, dos vestíveis e dos calçáveis. E durante esse tempo não se rala. Terminado ele, volta toda a tropa à vida ordinária, com o capital acumulado, e tendo até recebido, se deixou um procurador honesto, o seu seguro de vida. Não me consta que nas apólices de seguros esteja descriminada a morte temporária. Devo, porém, dizer que esta imprudência me surpreende nas companhias de seguros, que, para serem dignas de crédito, se seguram a si próprias antes de mais ninguém. 

Há muita gente que não acredita nos milagres de Lourdes, e acredita nestas bombas espirituais, que são mais difíceis de fiscalizar e não são mais fáceis de compreender. Para certos milagres incontestáveis, os sábios acharam a explicação natural e óbvia chamando-lhe auto-sugestão. Eu sei perfeitamente o que é um milagre. É a tradução de vocábulo miraculum, que quer dizer coisa admirável, porque é incompreensível. Está cheio de milagres o mundo, e como está cheio de milagres, está naturalmente cheio de superstição e crendices. As crendices políticas são as mais numerosas, e os curandeiros políticos são legião. Estes curandeiros livram com encantamentos e palavreados ás multidões que sofrem de todos os seus males, e têm pastilhas para tirarem as nódoas sociais. Tudo isto são miracula. Todavia, se toda a gente sabe pouco mais ou menos o que seja um autocrata e um automóvel, ainda não encontrei quem me explicasse cabalmente uma auto-sugestão. Que sejam, pois devidos à piedade da Virgem, que apareceu a Bernadette [Soubirus], ou á mágica do vocábulo, que apareceu aos sábios, os fenómenos de Lourdes não deixam de ser milagrosos. Não me admira portanto, o caso da lavagem dos Joghi contado por M.me Blavatsky, mas custa-me a acreditar na sua veracidade, enquanto não vir com os meus olhos o fenómeno da conversão do espírito num motor de bomba hidráulica. O caso mais parecido que eu conheço é o de um amigo que, em que se sentando numa pedra fria, tem uma constipação de cabeça. Mas não lhe sob a pedra à cabeça nem a deita pela boca fora [Caso de um pseudo-guru indiano actual que deita ovos de ouro pela boca]. É portanto um caso muito menos palpitante. Não sei bem o caminho que leva a auto-sugestão, aliás lembraria que seria devido a esta causa, cuja explicação os sábios entendem tão bem, embora a minha ignorância curiosa 
a não penetre.
O que me faria meditar, se não me visse obrigado a pensar em
outras coisas menos importantes, mas mais urgentes, é que a gente que acredita nas operações inversas dos Joghi e nos escritos de M.me Blavatsky, não crê nos milagres de Lourdes, nem nos dizeres dos quatro Evangelistas, nem nas Epístolas do Apóstolo S. Paulo. No género epistolar, preferem acreditar nas epistolas das suas namoradas. Ele há gente para tudo!

Eu nunca fui a Lurdes e nunca fui à Índia. Acreditar nos milagres da Virgem Santíssima é uma questão de fé. Os milagres dos Joghi são fenómenos semelhantes e para crer neles é preciso o mesmo estado espiritual. Mas neste caso da lavagem interna dos Joghi pelo processo inverso, em vez de monosílabo português, eu preferiria empregar o vocábulo italiano de duas sílabas, que designa a mesma beatitude das almas cândidas.» 

Saibamos então discernir bem o que pode verdadeiramente adiantar-nos na realização espiritual, sem cairmos em mistificações nem alienações, e com algum humor libertemo-nos de fanatismos e credulidades. E possa o monosílabo que mais utilizemos ou vivemos, seja o Fé, o dissílabo Fede, ou o Aum ajudar-nos a estabilizar a mente e abrir-nos mais aos raios amor e de luz do espírito e da Divindade. Pax, Lux, Amor!

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