Na Benares quinhentista as tendências sincretistas da religião Bhakti [a do amor devoto ao Divino, seja no Cosmos, nos avatares ou no coração] tinham atingido o seu desenvolvimento máximo, e os Sufis e Bramânees parecem ter-se encontrado em debates, pois os membros mais espirituais de ambos os credos religiosos frequentavam os ensinamentos de Ramananda [1400-1476], cuja reputação estava então no seu apogeu. O jovem Kabir, em quem a paixão da religião era inata, viu logo em Ramananda o seu mestre predestinado; mas sabia quão frágil era a esperança de um guru hindu aceitá-lo como discípulo. Escondeu-se portanto junto às escadarias [dos gaths] do rio Ganges, onde Ramananda costumava banhar-se e isto fez com que o mestre, descendo para a água, chocasse com o seu corpo e exclamasse espantado: " Ram! Ram!" - o nome da incarnação na qual ele adorava Deus.
Om Sri Ramamanda |
Kabir declarou então que tinha recebido o mantra da iniciação dos lábios de Ramananda, e foi por isso admitido no discipulado. Apesar dos protestos dos brâmanes e islâmicos ortodoxos, Kabir persistiu no que ele clamava, exibindo deste modo activamente o próprio princípio de síntese religiosa que Ramananda procurava estabelecer pelo pensamento. Ramananda parece tê-lo aceitado e, apesar das lendas islâmicas falarem do famoso Sufi Pir, Takki de Jhansi, como o mestre de Kabir na parte final da vida, o santo hindu [Ramananda] é o único mestre indiano para quem ele em algumas das suas canções se reconhece devedor.
O pouco que conhecemos da vida de Kabir contradiz muitas das ideias correntes concernentes a mística oriental. Ignoramos completamente os estágios da disciplina através das quais ele passou e o modo como o seu génio espiritual se desenvolveu. Parece ter permanecido durante anos discípulo de Ramananda, juntando-se às discussões teológicas e argumentações filosóficas que o seu mestre mantinha com os grandes Mullahs [religiosos islâmicos] e Bramanes [os religiosos hindus]; e a esta fonte causal devemos provavelmente a sua familiaridade com a terminologia [e conceitos próprios] de filosofia Hindu e Sufi.
Ele pode ter-se submetido ou não à educação tradicional do contemplativo Hindu ou Sufi: é claro, que de modo algum adoptou a vida do asceta profissional, ou a de estar retirado do mundo com o objectivo de se entregar às mortificações corporais e à demanda exclusiva da vida contemplativa. Lado a lado com a sua vida interior de adoração, a sua expressão artística em música e palavras - pois ele era um hábil músico tal como poeta - ele viveu a sã e diligente vida do artesão Oriental. Todas as lendas concordam nisto: que Kabir era um tecelão, uma pessoa simples e sem estudos, que ganhava a sua vida no tear. Tal como Paulo [de Tarso, o apóstolo], o fabricante de tendas, [Jacob] Boehme [1575-1624, místico ocultista], o sapateiro, [John] Bunyan [1628-1668, puritano], o funileiro, [Gerhard]Tersteegen [1697-1768, pietista protestante], o fabricante de fitas, ele sabia como combinar visão e indústria; o trabalho das suas mãos ajudava mais do que impedia a meditação desapaixonada do seu coração.
Detestando as austeridades meramente corporais, ele não era um asceta mas um homem casado, o pai de uma família - uma circunstância que as legendas hindus de tipo monástico em vão tentam esconder ou explicar - foi a partir do coração da vida comum que ele cantou, arrebatadas pelo amor divino, as suas líricas.
Nisto as suas obras corroboram a versão tradicional da sua vida. Constantemente enaltece a vida doméstica, o valor e a realidade da existência diurna, com as suas oportunidades de amor e renúncia, ridicularizando a santidade profissional do Yogi, que "tem uma grande barba e os cabelos enlaçados, e que parece um bode", e todos aqueles que pensam ser necessário fugir de um mundo penetrado pelo amor, a alegria e beleza - o próprio teatro da demanda do ser humano - para encontrar a Realidade Una que "espalhou a Sua forma de amor através de todo o mundo".
Não é preciso muita experiência da literatura ascética para reconhecer a coragem e a originalidade desta atitude em tal tempo e época. Do ponto de vista da santidade ortodoxa, seja hindu ou islâmica, Kabir era plenamente um herético, e o seu sincero desagrado de toda a religião institucional, de todas as obrigações externas - que eram tão árduas e intensas como as dos Quakers [reformistas místicos protestantes] - completavam, no que diz respeito à opinião eclesiástica, a sua reputação como um homem perigoso. A A simples união com a Realidade Divina que ele enalteceu constantemente, tal como o dever e a alegria de cada alma, era independente tanto dos rituais como das austeridades corporais. O Deus que ele proclamava não estava nem na Kaaba nem no monte Kailas. Aqueles que o procuravam não precisavam de ir tão longe, pois Ele esperava ser descoberto em qualquer lugar, mais acessível "à lavadeira e ao carpinteiro" do que ao que se considera uma pessoa santa. Deste modo, todo o aparato de piedade, tanto hindu como islâmico - o templo e a mesquita, o ídolo e a água santa, as Escrituras e os sacerdotes - eram denunciados por este inconveniente poeta de visão clara, como coisas mortas materializando-se entre a alma e o seu amor -
«Todas as imagens não têm vida, não podem falar:
Eu sei, pois gritei-lhes alto.
As Puranas e o Alcorão são meras palavras:
Levantando a cortina, eu vi.» (Poemas XLII, LXV, LXVII)
Este tipo de pensamento não podia ser tolerado por qualquer igreja organizada, e assim não surpreende que Kabir, tendo a sua sede em Benares, o próprio centro da influência sacerdotal, tivesse sido sujeito a uma perseguição considerável. A conhecida lenda de uma bela cortesão ter sido enviada pelos Bramânes para tentar a sua virtude, e que contudo se converteu, como a Maria Madalena, pelo seu súbito encontro com um amor mais elevado, preserva a memória do medo e do desagrado com que ele era olhado pelos poderes eclesiásticos. Pelo menos uma vez, após a realização de um suposto milagre de cura, foi levado diante do sultão de Delhi [e depois rei] Sikandar Lodi [1458-1517], e acusado de possuir poderes divinos [ou mesmo, como o mártirAl-Allaj, uma unidade-identidade-não dual com a Divindade]. Mas Sikandar Lodi, um governante de considerável cultura, era tolerante com as excentridades das pessoas santas pertencendo à sua fé. Kabir, sendo pela nascença islâmico, estava fora da autoridade do Brâmanes, e classificado tecnicamente [ou considerado pertencer] nos Sufis, para os quais uma grande liberalidade (latitude) teológica era permitida. Pelo que, embora no interesse da paz tivesse sido banido de Benares, a sua vida foi poupada. Isto parece ter acontecido em 1495, quando ele estava com cerca dos 60 anos de vida. É o último acontecimento da sua carreira do qual temos um conhecimento seguro. A partir de então parece ter-se movido por entre várias cidades do norte da Índia, o centro de um grupo de discípulos, continuando em exílio essa vida de apóstolo e poeta de amor, para a qual, como ele declara numa das suas canções, estava destinado "desde o começo do tempo". Em 1518, um homem idoso, quebrado na saúde, e com as mãos tão fracas que já não conseguia mais fazer a música que amava, morreu em Maghar, perto de Gorakhpur.
Uma bela lenda conta-nos que após a sua morte os discípulos islâmicos e hindus discutiram a posse do seu corpo, o qual os islâmicos queriam enterrar e os hindus queimar. Enquanto eles debatiam juntos, Kabir apareceu diante deles e disse-lhes que levantassem o véu e que olhassem o que estava em baixo. Assim fizeram, e encontraram em vez do cadáver um monte de flores, metade das quais foi sepultada pelos islâmicos em Maghar, e a outra metade levada pelos hindus para Benares a fim de ser queimada - uma conclusão apropriada para uma vida que tornara fragrante as mais belas doutrinas dos dois grandes credos.»
Diz-nos Evelyn Underhil que sabemos pouco dos passos ou técnicas praticadas pelo poeta místico, e Rabindranath Tagore que as devia conhecer nada disse, mas podemos deduzir que elas foram as típicas dos sufis e hindus, de que os bauls da Bengala são o melhor exemplo, e que se baseavam na oração, no canto e na dança exaltada no amor ao divino e com posteriores momentos de silencio, meditação, visão, esta em espacial da presença divina no coração.
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