sexta-feira, 15 de julho de 2022

Introdução aos "Poemas de Kabir", (2ª p.) por Evelyn Underhil e Rabindranath Tagore. Tradução brevemente comentada por Pedro Teixeira da Mota

«A história de Kabir está rodeada de lendas contraditórias, e não se pode confiar em nenhuma delas. Algumas emanam de uma fonte hindu, outras de fonte islâmica, e apropriam-se dele ora como um santo hindu ora como um santo sufi. O seu nome é, porém, praticamente uma prova concludente da sua ascendência Islâmica: e a mais provável versão é a que o apresenta como um filho verdadeiro ou adoptivo de um tecelão islâmico [Niru e da sua mulher Nima] em Benares, a cidade na qual tiveram lugar os principais acontecimentos da sua vida .

Na Benares quinhentista as tendências sincretistas da religião Bhakti [a do amor devoto ao Divino, seja no Cosmos, nos avatares ou no coração] tinham atingido o seu desenvolvimento máximo, e os Sufis e Bramânees parecem ter-se encontrado em debates, pois os membros mais espirituais de ambos os credos religiosos frequentavam os ensinamentos de Ramananda [1400-1476], cuja reputação estava então no seu apogeu. O jovem Kabir, em quem a paixão da religião era inata, viu logo em Ramananda o seu mestre predestinado; mas sabia quão frágil era a esperança de um guru hindu aceitá-lo como discípulo. Escondeu-se portanto junto às escadarias [dos gaths] do rio Ganges, onde Ramananda costumava banhar-se e isto fez com que o mestre, descendo para a água, chocasse com o seu corpo e exclamasse espantado: " Ram! Ram!" - o nome da incarnação na qual ele adorava Deus. 

Om Sri Ramamanda

 Kabir declarou então que tinha recebido o mantra da iniciação dos lábios de Ramananda, e foi por isso admitido no discipulado. Apesar dos protestos dos brâmanes e islâmicos ortodoxos, Kabir persistiu no que ele clamava, exibindo deste modo activamente o próprio princípio de síntese religiosa que Ramananda procurava estabelecer pelo pensamento. Ramananda parece tê-lo aceitado e, apesar das lendas islâmicas falarem do famoso Sufi Pir, Takki de Jhansi, como o mestre de Kabir na parte final da vida, o santo hindu [Ramananda] é o único mestre indiano para quem ele em algumas das suas canções se reconhece devedor.
O pouco que conhecemos da vida de Kabir contradiz muitas das ideias correntes concernentes a mística oriental. Ignoramos completamente os estágios da disciplina através das quais ele passou e o modo como o seu génio espiritual se desenvolveu. Parece ter permanecido durante anos discípulo de Ramananda, juntando-se às discussões teológicas e argumentações filosóficas que o seu mestre mantinha com os grandes Mullahs [religiosos islâmicos] e Bramanes [os religiosos hindus]; e a esta fonte causal devemos provavelmente a sua familiaridade com a terminologia [e conceitos próprios] de filosofia Hindu e Sufi.
Ele pode ter-se submetido ou não à educação tradicional do contemplativo Hindu ou Sufi: é claro, que de modo algum adoptou a vida do asceta profissional, ou a de estar retirado do mundo com o objectivo de se entregar às mortificações corporais e à demanda exclusiva da vida contemplativa. Lado a lado com a sua vida interior de adoração, a sua expressão artística em música e palavras - pois ele era um hábil músico tal como poeta - ele viveu a sã e diligente vida do artesão Oriental. Todas as lendas concordam nisto: que Kabir era um tecelão, uma pessoa simples e sem estudos, que ganhava a sua vida no tear. Tal como Paulo [de Tarso, o apóstolo], o fabricante de tendas, [Jacob] Boehme [1575-1624, místico ocultista], o sapateiro, [John] Bunyan [1628-1668, puritano], o funileiro, [Gerhard]Tersteegen [1697-1768, pietista protestante], o fabricante de fitas, ele sabia como combinar visão e indústria; o trabalho das suas mãos ajudava mais do que impedia a meditação desapaixonada do seu coração.
Detestando as austeridades meramente corporais, ele não era um asceta mas um homem casado, o pai de uma família - uma circunstância que as legendas hindus de tipo monástico em vão tentam esconder ou explicar - foi a partir do coração da vida comum 
que ele cantou, arrebatadas pelo amor divino, as suas líricas.
Nisto as suas obras corroboram a versão tradicional da sua vida.
Constantemente enaltece a vida doméstica, o valor e a realidade da existência diurna, com as suas oportunidades de amor e renúncia, ridicularizando a santidade profissional do Yogi, que "tem uma grande barba e os cabelos enlaçados, e que parece um bode", e todos aqueles que pensam ser necessário fugir de um mundo penetrado pelo amor, a alegria e beleza - o próprio teatro da demanda do ser humano - para encontrar a Realidade Una que "espalhou a Sua forma de amor através de todo o mundo".
Não é preciso muita experiência da literatura ascética para reconhecer a coragem e a originalidade desta atitude em tal tempo e época. Do ponto de vista da santidade ortodoxa, seja hindu ou islâmica, Kabir era plenamente um herético, e o seu sincero desagrado de toda a religião institucional, de todas as obrigações externas - que eram tão árduas e intensas como as dos Quakers [reformistas místicos protestantes] - completavam, no que diz respeito à opinião eclesiástica, a sua reputação como um homem perigoso. A A simples união com a Realidade Divina que ele enalteceu constantemente, tal como o dever e a alegria de cada alma, era independente tanto dos rituais como das austeridades corporais. O Deus que ele proclamava não estava nem na Kaaba nem no monte Kailas. Aqueles que o procuravam não precisavam de ir tão longe, pois Ele esperava ser descoberto em qualquer lugar, mais acessível "à lavadeira e ao carpinteiro" do que ao que se considera uma pessoa santa. Deste modo, todo o aparato de piedade, tanto hindu como islâmico - o templo e a mesquita, o ídolo e a água santa, as Escrituras e os sacerdotes - eram denunciados por este inconveniente poeta de visão clara, como coisas mortas materializando-se entre a alma e o seu amor - 

«Todas as imagens não têm vida, não podem falar:
Eu sei, pois gritei-lhes alto.
As Puranas e o Alcorão são meras palavras:
      Levantando a cortina, eu vi.» (Poemas XLII, LXV, LXVII)

Este tipo de pensamento não podia ser tolerado por qualquer igreja organizada, e assim não surpreende que Kabir, tendo a sua sede em Benares, o próprio centro da influência sacerdotal, tivesse sido sujeito a uma perseguição considerável. A conhecida lenda de uma bela cortesão ter sido enviada pelos Bramânes para tentar a sua virtude, e que contudo se converteu, como a Maria Madalena, pelo seu súbito encontro com um amor mais elevado, preserva a memória do medo e do desagrado com que ele era olhado pelos poderes eclesiásticos. Pelo menos uma vez, após a realização de um suposto milagre de cura, foi levado diante do sultão de Delhi [e depois rei] Sikandar Lodi [1458-1517], e acusado de possuir poderes divinos [ou mesmo, como o mártirAl-Allaj, uma unidade-identidade-não dual com a Divindade]. Mas Sikandar Lodi, um governante de considerável cultura, era tolerante com as excentridades das pessoas santas pertencendo à sua fé. Kabir, sendo pela nascença islâmico, estava fora da autoridade do Brâmanes, e classificado tecnicamente [ou considerado pertencer] nos Sufis, para os quais uma grande liberalidade (latitude) teológica era permitida. Pelo que, embora no interesse da paz tivesse sido banido de Benares, a sua vida foi poupada. Isto parece ter acontecido em 1495, quando ele estava com cerca dos 60 anos de vida. É o último acontecimento da sua carreira do qual temos um conhecimento seguro. A partir de então parece ter-se movido por entre várias cidades do norte da Índia, o centro de um grupo de discípulos, continuando em exílio essa vida de apóstolo e poeta de amor, para a qual, como ele declara numa das suas canções,  estava destinado "desde o começo do tempo". Em 1518, um homem idoso, quebrado na saúde, e com as mãos tão fracas que já não conseguia mais fazer a música que amava, morreu em Maghar, perto de Gorakhpur.
Uma bela lenda conta-nos que após a sua morte os discípulos
islâmicos e hindus discutiram a posse do seu corpo, o qual os islâmicos queriam enterrar e os hindus queimar. Enquanto eles debatiam juntos, Kabir apareceu diante deles e disse-lhes que levantassem o véu e que olhassem o que estava em baixo. Assim fizeram, e encontraram em vez do cadáver um monte de flores, metade das quais foi sepultada pelos islâmicos em Maghar, e a outra metade levada pelos hindus para Benares a fim de ser queimada - uma conclusão apropriada para uma vida que tornara fragrante as mais belas doutrinas dos dois grandes credos.»


                             

Como breve comentário apenas destacaremos o ambiente sincretista
que se viveu frequentemente na Índia dos séculos XV e XVI entre os místicos hindus e islâmicos, de que Kabir é um exemplo, tal como Dara Shikoh (1615-1659) será uns anos depois, este também deixando obras tão valiosas que manifestam bem esse dialogo inter-religioso, e a quem já dediquei alguns textos no blogue e gravações no youtube. Foi pena terem sido poucos os missionários portugueses ou ocidentais a conseguirem sair das camisas de forças que a dogmática ou a ortodoxia católica lhes impuseram.
Segundo realçar a espiritualidade directa e profunda de Kabir em nada dependente de textos e rituais, templo e mesquitas, hierarquias humanas, mas basicamente desenvolvendo pelo Amor a sua espiritualização e comunhão com a Divindade
Diz-nos Evelyn Underhil que sabemos pouco dos passos ou técnicas praticadas pelo poeta místico, e Rabindranath Tagore que as devia conhecer nada disse, mas podemos deduzir que elas foram as típicas dos sufis e hindus, de que os  bauls da Bengala são o melhor exemplo, e que se baseavam na oração, no canto e na dança exaltada no amor ao divino e com posteriores momentos de silencio, meditação, visão, esta em espacial da presença divina no coração.
Talvez por isso surja um pouco como uma posição mais preservadora das duas religiões que realista a afirmação de Evelyn Underhill que Kabir tornara mais fragrantes as melhores doutrinas das duas religiões, já que mais do que doutrinas se tratava sobretudo da experiência do amor, bhakti, dedicado ao ser divino, claro utilizando algumas das práticas dos sufis e yogis, nomeadamente os cantos e a repetição dos nomes divinos, que em geral se recebe directamente do guru na iniciação e que, como vimos, Kabir recebera de um modo algo ardiloso de Ramananda. Deste Ram, Ram, que foi também o mantra principal do ou quem sabe mesmo dado por um guru, Mahatma Gandhi, ficou em português o ramram, pois esse repetir cadenciado do mantra, na nossa psicologia linguística ficou associada a uma alma paciente, capaz de repetir ou de viver calmamente, repetindo demoradamente um simples nome de Deus, mas com efeitos muito profundos por vezes nos corpos subtis e espirituais, tal como algumas poesias ou canções de Kabir ilustram, por vezes ligadas com o centro íntimo do coração ou ainda ao 3º olho, mas isso veremos num próximo comentário às canções de Kabir, sem dúvida um mestre guru ou pir, da realização divina transversal à essência de todas as verdadeiras religiões... Aum Kabir!

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