sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Dia da libertação terrena de Fernando Pessoa. Seus ensinamentos, analogias com Antero de Quental. Reflexões. 30-XI-2018.

A morte de Fernando Pessoa, a 30-XI-1935, por volta das 20 horas, não foi certamente tão investigada e meditada como a de Antero Quental, esta ainda hoje se prestando às mais diversas explicações, sempre inconclusivas, pois como adivinhar o que ia na cabeça e coração de alguém que se suicida sozinho e sem nada dizer ou escrever. Todavia, certas causas mais plausíveis têm sido apontadas e com alguma unanimidade, tal o clima insular, a perda da educação das crianças adoptadas, o desgaste nervoso e o sentido que o corpo já de pouco servia e que a sua missão ou obra na Terra findara.
Já a de Fernando Pessoa parece aparentemente mais simples: morre corporalmente após dois dias de internamento no Hospital de S. Luís, diagnosticando-se uma pancreatite, embora se diga que tal foi o simples desfecho de uma cirrose hepática já crónica, pois como sabemos o poeta bebia bem, ou seja, com grande capacidade e simultaneamente imperturbabilidade.
Já quanto ao seu estado psíquico não há uma clara visão de como ele estava, apesar de alguns testemunhos da época e tentativas de explicação de hoje, uma das últimas sendo a de Antonio Tabuchi que escreveu mesmo Os três últimos dias de Fernando Pessoa, um delírio, num registo imaginado de diálogos entre o criador e os seus principais heterónimos.
Dos testemunhos haverá a contar com os das pessoas amigas, os dos últimos poemas e textos, embora alguns destes possam não estar datados, e só muito sábia ou intuitivamente saberemos assim classificá-lo, e, finalmente, os das cartas.
Duas destas, a pouco mais de um mês da morte, são sintomáticas do seu estado interior: em 10-XI-1935, a Tomás Ribeiro Colaço, explicando e desculpando-se por não lhe ter enviado colaboração para a revista Fradique:« (...) Salvo erro, desde 4 de Fevereiro - data em que publiquei no Diário de Lisboa o artigo Associações Secretas - não publiquei senão um breve poema na revista Momento, revista de rapazes, revista simpática, mas, parece-me, muito mais secreta que as «associações» acima citadas.
O facto é que, desde o ano passado, tenho estado sob o influxo de estados nervosos de diversas formas e feitios, que por um longo período me arrancaram da vontade até o desejo de não fazer nada. Tenho-me sentido uma espécie de filme psíquico de um manual de psiquiatria secção psiconevroses. Só agora começo a emergir lentamente para qualquer coisa vagamente parecida com actividade. Tanto assim que finalmente lhe estou escrevendo.»
Realcemos que se tem feito pouca indagação sobre o impacto destrutivo em Fernando Pessoa da polémica anti-maçónica em que se deixou envolver.
A segunda carta, de que temos alguns fragmentos, um deles datado, de 30-XI-1935, a um mês de morrer, mostra-nos Fernando Pessoa a morrer nos seus ideais e valores face à repressão ou censura que se adivinhava da parte de Salazar e seu Estado Novo, que de novo nada tinha, como Pessoa ironizava. É enviada a Adolfo Casais Monteiro:
«Desde o discurso que o Salazar fez em 21 de Fevereiro deste ano, na distribuição de prémios no Secretariado da Propaganda Nacional, ficámos sabendo, todos nós que escrevemos, que estava substituída a regra restritiva da Censura, “não se pode dizer isto ou aquilo”, pela regra soviética do Poder, "tem que se dizer aquilo ou isto”. Em palavras mais claras, tudo quanto escrevermos, não só não tem que contrariar os princípios (cuja natureza ignoro) do Estado Novo (cuja definição desconheço), mas tem que ser subordinado às directrizes traçadas pelos orientadores do citado Estado Novo. Isto quer dizer, suponho, que não poderá haver legitimamente manifestação literária em Portugal que não inclua qualquer referência ao equilíbrio orçamental, à composição corporativa (também não sei o que seja) da sociedade portuguesa e as outras engrenagens da mesma espécie». 
Noutros fragmentos, Fernando Pessoa diz que vai então deixar de escrever, até para não dar trabalho aos funcionários do lápis da censura...
  Dos testemunhos, João Gaspar Simões, o seu primeiro biógrafo e ainda hoje um dos melhores, mostra-nos assim no seu clássico Vida e Obra de Fernando Pessoa, a morte a aproximar-se dele: «Três dias antes de morrer, ainda descera à Baixa, entrara no Martinho da Arcada, bebera um café, conversara com José de Almada Negreiros, soltara algumas das suas gargalhadas nervosas, que lhe faziam estremecer o corpo desconjuntado, e pigarreara, tossira, tossira muito, pois tinha agora um pigarro de alcoólico, que se ouvia longe. Tempos antes, em casa da irmã, em S. joão do Estoril, fora acometido de um breve ataque de delirium tremens (...)».
Narra depois como ele bebia e fumava demasiado e estava muito só em casa, dizendo que o seu primo médico Jaime Neves, «proibira-o de beber: "um cálice mais de aguardente, e seria o fim"»
Foi mesmo Jaime Neves quem o obrigou na manhã de 28 a ir para o hospital de S. Luís, ao Bairro Alto, numa "automaca", sem que antes Fernando Pessoa não deixasse de pedir a um amigo que enviasse no dia seguinte um telegrama para a sua encantadora meia-irmã Madalena, a "Tecas" (que  ainda conheci), que fazia anos. Será com uma enfermeira, um capelão e o primo médico que partirá para o além...
João Gaspar Simões, frequentemente fino psicologicamente, e no caso subscrevendo (F. Pessoa afirmara-o) que o génio é um iniciado de nascença e que Fernando Pessoa em jovem vivera no mítico Paraíso Perdido e o assimilara, donde depois a sua busca ocultista e esotérica descreve tal momento assim: «Ei-lo que entrava, finalmente, no paraíso que perdera. Agonizava, e no meio da sua agonia, repuxando a dobra do lençol teve de súbito, uma pausa de estranha quietação. Abriu os olhos, olhou em roda, e vendo que não via, serenamente, como quem não esquece que os míopes, para ver, precisam de óculos, pediu que lhe dessem as suas lentes: "Dai-me os óculos", murmurou, semicerrando os olhos enevoados. Foram estas as suas últimas palavras.» Certamente melhores leituras poderiam ser oferecidas, como a prometaica e heróica que, perante o desvanecimento do fogo da visão, quer ainda focar o mundo e confrontá-lo, recriá-lo...
Sabemos, da véspera, as suas últimas palavras escritas: I don't know what tomorrow will bring, "Não sei o que o amanhã trará", frase de grande humildade para um homem que em vários momentos da vida se erguera como esquadrinhador dos céus natais, seus e dos outros, qual profeta de Portugal e do mundo, na linha de Bandarra e Vieira, como se afirmara na Mensagem.
Quereria dizer apenas que não sabia o que aconteceria amanhã, nomeadamente se estaria ainda vivo?
Quereria dizer que não sabia o que lhe traria a vida no além, cuja entrada iria acontecer no dia seguinte?
Ou como profeta exangue, sentindo-se morrer com a Pátria, afirmava a sua fragilidade de conhecer e augurar os destinos de Portugal, outrora sonhados quinto-imperialmente?
Que ideias e ideais, que aspirações e realizações subsistiam?
Todos os que escrevem e conservam muitos textos que gostariam ainda de publicar sabem bem a tragédia que é quando subitamente a morte dá uns dias, ou horas de vida.
Com o seu génio em grande parte ainda por publicar, tal ameaça subitamente presente, o que lhe causaria de pensamentos e sentimentos, ele que pedira pelo menos mais uns anos para poder publicar parte da sua obra?
Como foi assimilando ele a ideia da aproximação da morte corporal e cerebral, nas últimas semanas ou horas?
Provavelmente não a hipostatizando e chamando e invocando amorosamente, tal como Antero nos seus sonetos, mas sim sentindo apenas o derruír das forças psicossomáticas e vendo a menor ou maior luz e certeza na identidade imortal...
Quem estava mais preparado para morrer, perguntaremos, não apenas no sentido de maturação de desprendimento da terra e dos desejos humanos, como se entende basicamente na arte de morrer, tão ensinada desde a Idade Média religiosamente, nem só também de cumprimento da sua missão ou tarefas na Terra, mas também na sensibilidade interior de realização espiritual de união com a sua centelha espiritual e verdadeiro eu?
Esta unificação das forças anímicas, este saber utilizá-las durante a vida correctamente, sabemos que não foi muito rigorosamente ou metodicamente prosseguido na vida de ambos, embora Fernando Pessoa tivesse escrito e aprofundado Regras de Vida (de que eu dei eco no Moral, Regras de Vida, Condições de Iniciação, 1988), já que gostaram de cultivar o lado decadentista, pessimista, de vazio e morte, Fernando Pessoa bebendo ainda por cima excessivamente, pelo que não tiveram vidas muito harmoniosas e felizes (frequente nos mais geniais..) e poderiam consequentemente  ter chegado à morte com poucas forças de vida, luz e amor acesas neles, não fosse o génio criativo intelectual e o amor aos amigos que tanto fulguraram neles, muitas das cartas de Antero de Quental sendo nesse campo assombrosas de transmissão anímica espiritual...
Ora sabemos que morreram ambos com pouco amor, tanto no que ardia neles como sobretudo no que receberam dos outros.
 Fernando Pessoa teve uns escassos meses, por duas vezes, Ofélia Queirós como namorada, compensando-se desse celibato no forte amor à mãe e a uns poucos, muito poucos, amigos. Estava intimamente só, bebendo, escrevendo, planeando, investigando
Antero, teve os seus amores de juventude, uma paixão por uma senhora alemã ainda na recuperação dos nervos nas termas de Bellevue, junto a Paris, já em 1887-88, mas de novo será o amor aos familiares, às duas crianças adoptadas e aos amigos que o caracterizou.
Relações sexuais amorosas certamente ambos tiveram, embora menos Pessoa, mas o unitivo abraço fusional de dois corpos e duas almas tiveram pouco, embora certamente mais Antero nos seus tempos mais ardentes, juvenis. Não estavam portanto com seus corpos psico-espirituais bem carregados da intensidade alquímica da unidade dourada e do amor.
Perguntar-nos-emos então, como poetas, pensadores, filósofos, metafísicos e espirituais não fizeram eles grandes demandas pioneiras, não entraram eles em contacto com doutrinas esotéricas e ocultas, ou com as tradições de outras religiões?
Sim, certamente aí Antero de Quental foi pioneiro em alguns aspectos de estudo do budismo, do orientalismo, mas também tanto estudando a tradição mística ocidental como as últimas realizações da filosofia e da ciência, e a possível unidade delas, como nos descreve no seu último ensaio Das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, e que denominou Unidade de Consciência, Panpsiquismo, Trancendentalismo místico, etc., propondo mesmo para se aprofundar tal uma Ordem contemplativa e ecológica, a Ordem dos Mateiros.
O que destes estudos ele conseguiu aprofundar, meditar e assimilar interiormente, num sentido de ter gerado dentro de si forças unificadas ao  eu espiritual e logo capazes de lhe darem mais imortalidade consciencial, não sabemos bem, bem...
E Fernando Pessoa, o enorme conhecedor de religião cristã, ocultismo, maçonaria, ordem secretas, mistérios pagãos, astrologia, simbolismo, iniciação?
Fernando Pessoa, que esboçou até alguns tratados de metafisica, e vários  estudos-ensaios inacabados sobre a intuição, a iniciação, os rosacruzes, a maçonaria e que sobretudo nos últimos meses de vida entra numa luta em defesa das sociedades secretas e mais concretamente da maçonaria?
Esta última parte, que só se sabe fragmentariamente, embora bastante melhor quanto ao ano final da sua vida graças aos recentes estudos de José Barreto, contém contudo bastante aspectos valiosos que devem ser questionados e que nos auxiliarão até a cingirmos melhor como estaria Fernando Pessoa à hora da morte?
Estaria ele em risco de se "converter", tal como sucedera a Gomes Leal, a Guerra Junqueiro, a Leonardo Coimbra, e tal seria um sacrilégio para muitos pessoanos dos nossos dias, em que tal já muito raramente acontece, ou pelo contrário estava bem firme no seu anti-catolicismo, ou mais na sua adesão às sociedades secretas e mágicas, seja à tradição espiritual Templária que afirma ter escolhido, nessa famosa carta autobiográfica de 30-III-1935, certamente em rescaldo e desagravo das críticas e ataques que sofrera dos meios mais conservadores e católicos?
Admitamos que estaria face ao umbral iniciático da morte apenas como génio literário e peregrino espiritualista no Caminho, com as forças que experienciara e conseguira unificar a si...
Consubstanciar-se-iam elas em mantras que pronunciava interiormente (ou que até ouvia...), não confessando apenas, como astrólogo realista ou sincero, que "não sabe o que o amanhã lhe trará", mas também essas orações (ou mesmo poema, quadras) de aspiração à Luz, aos Mestres, ao Anjo, à Divindade?
                                 
O santinho de S. António que andava sempre na sua carteira teria algum sortilégio infantil de o fazer orar e sintonizar com um mestre-santo, já não no modo irónico com que o retratou pular num poema e se afirmou mais devoto de S. João Baptista, patrono dos Templários?

Os mantras templários e da Ordem Cristo ciciou-os em momentos dessa agónica transição quando o esvaímento mental, intensificado pela posição alongada, não fosse tão grande que o reduzisse a uma passividade não pensante?
 O Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini Tuo da gloriam?
O In nobis regnat Ignem, ou In nobis regnat Jesus?
O "De Deus nascemos, em Jesus morremos, pelo Espírito Santo ressurgimos"?
Ou, graças àquele que adoptara do infante D. Henrique, para a sua recriação de uma ordem Templária, Talent de Bien faire, tentava entrar sem medo, e em aspiração luminosa, no além do seu corpo e cérebro?
Iremos partilhar mais três contributos para a morte e ressurreição de Fernando Pessoa, escritos seus, e um deles provavelmente desconhecido, algo bombástico até, e que farão mais alguma luz sobre o seu estado de realização interior, tanto sobre as luzes como sobre as sombras que assumiu e o seguiram muito provavelmente também no além:
1º, um poema intitulado Sup. Incognitos, escrito em 9/5/34 e publicado por mim pela primeira vez em 1989, na Poesia Profética, Mágica e Espiritual, e transcrevendo agora a parte final:
«Mãos do meu Anjo da Guarda,
Que bem guiais, como dois,
O meu ser que teme e tarda,
Postas firmes nos meus ombros
Sem de que eu saiba de quem sois!

Vou pela noite infiel
Sentindo a aurora raiar
Por traz de algum que me impele;
Mas já adiante de mim
Vejo a Luz a se espelhar.»

 Conseguiu Fernando Pessoa, na preparação ou no encaminhar para a morte, relembrar-se ou mesmo ler-dizer-sentir-ver interiormente este poema, ou outro dos seus mais iniciáticos ou espirituais?
O 2º contributo é um pensamento não datado mas que tem o sabor de conclusão de uma vida toda de demanda oculta e espiritual, certamente a par do querer ser o supra-Camões modernista:
«O conhecimento de Deus não depende do hebreu, nem de anagramas, nem de símbolos, nem de língua alguma, falada ou pensada [variante: figurada]; faz-se pela ascensão univocal da alma, pelo encontro final da alma consigo mesmo, do Deus em nós consigo mesmo».
É um ensinamento muito elevado e bem importante de se reflectir e meditar, quando há tantas formas actuais de esoterices e cabalices, canalizações e conversas com Deus...
O 3º, desconhecido ou pouco conhecido até hoje, diz-nos assim, numa glosa de desilusão às grandes realizações ou iniciações de altos graus de ordens secretas, mágicas ou maçónicas, e sugerindo algo do que poderá ter sentido na hora da morte:
«Estou sozinho no Vale de Kilwinning. Faz frio na Montanha de Heredon. Não temos mãe nem pai no Monte Abiegno.
A força da Igreja de Roma é grande (pai), com todos os seus vícios, é mãe que, com todos os seus erros, tem (o) regaço. (...)»
Eis um texto que certamente surpreenderá alguma gente...
 
Graças à Ordem do Universo, à hora da desencarnação, Fernando Pessoa tinha um religioso, um médico e uma mulher e curadora ao seu lado, à sua mão ou, parafraseando Antero de Quental, "na mão de Deus", na comunhão das almas, no corpo místico da Humanidade, ou Campo Unificado de Consciência Informação Energia...
 Muita Luz e Amor Divinos neles... Aummmm... 
Lisboa, 19:52 de 30 de Novembro de 2018.

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