segunda-feira, 10 de junho de 2024

A Ilha dos Amores ou do Amor, da Deusa e de Camões. Hermenêutica da sua espiritualidade perene. Nos 500 anos do seu nascimento.

Heliogravuras de Alfred Bramtot, para a bela edição parisiense d' Os Lusíadas, de 1890.
No canto IX dos Lusíadas Luís de Camões introduz a utópica "ínsula divina", a  ilha do Amor,  que a deusa Vénus, decidira aparelhar  no Oceano  para premiar os navegadores portugueses com descanso, deleite e alegria, após os seus esforços e feitos, que culminam com a vitória sobre o Adamastor (o guardião do umbral), e os inimigos dos nautas e a abertura da circulação e corrente pelo  mar entre o Ocidente e o Oriente.
Conta com o seu filho Cupido, ou Eros, que tem ao seu serviço muitos Cupidos preparadores e lançadores de flechas,  para inflamarem o amor nas ninfas ou nereidas com que povoa a Ilha Namorada levada pelas ondas,  até ficar firme na rota dos portugueses, a fim de se juntar o "ardente amor lusitano com a flama feminina". São uma núpcias especiais que se preparam, a coroação da demanda lusitana da união do Ocidente com o Oriente e que se realizou pluridimensionalm
ente e como fruto da história de uma terra e sua gente, com tantas esforçadas, corajosas e engenhosas almas.
A descrição da ilha e o episódio de ensino ético, amor e iluminação
congraçaram  os comentadores em hermenêuticas diferentes quanto ao seu simbolismo, ideologia e intencionaliade, pois a genial epopeia e este riquíssimo episódio são os de um experimentado viajante e cavaleiro, infatigável fiel do Amor, de certo modo um humanista, formado, presume-se, que em Coimbra e com um tio sacerdote,  em grande parte na tradição greco-romana, em especial Homero, Virgílio e Ovídio, e logo conhecedor do orfismo e pitagorismo, platonismo e neoplatonismo, ainda que sobretudo por antologias, oficinas e florilégios, e pelos mestres italianos do dolce stil novo, tal Dante, Guido de Cavalcanti e em especial Petrarca, e talvez ainda pelo teorizador do Amor Marsilio Ficino e o seu seguidor Leão Hebreu, além dos poetas citados na sua obra: Pietro Bembo, Garcilaso de la Vega e Juan Boscán. 
Conhecia ainda tanto a historiografia portuguesa, nomeadamente de  André de Resende, Damião de Góis, João de Barros (que refere a Utopia de Thomas More, de 1517), Fernão Lopes de Castanheda e Diogo de Teive (tendo sido grande amigo do então jovem  Diogo de Couto, o continuador das Décadas, de João de Barros, as III primeiras bastante usadas  por Camões), como a tradição literária, satírica (quem sabe se o Elogio da Loucura, de Erasmo) e visionária portuguesa, castelhana e europeia (tais as medievais viagens às ilhas Afortunadas e das Mulheres), para além do que acolhera na sua universal experiência, sobretudo oriental, persa e indiana, pois por tais terras e gentes esteve uns dezassete anos seguidos, extraordinariamente ricos e sofridos, seja em expedições e batalhas, amores e inspirações, perseguições e prisões, pobreza e naufrágio, e assim pode cantar o peito ilustre lusitano, e o saber feito de experiência.
O episódio chave acolheu he
rmenêuticas frequentemente conflituosas quanto à localização da Ilha dos Amores (Bombaim, Angediva, Zanzibar, S. Helena, Mediterrâneo, Chipre, Atlântico ou antes  utópica), quanto às fontes literárias clássicas (Argonautas, Odisseia, Ilíada, Eneida, Metamorfoses de Ovídio), ao erotismo carnal ou terrestre e o urânico ou metafísico, ao platonismo e ao aristotelismo, ao  esoterismo  e ao catolicismso,  e ao cabalismo, neste último aspecto destacando-se três pessoas que conheci, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Antonieta Soares Azevedo e António Telmo, mas sem conseguirem contudo fundamentar tal hipótese.
É bem m
ais simples e cristão o que  nos é transmitido, certamente com influências do paganismo clássico e renascentista, e com passos mais elevados e sublimes de ressonância neo-platónica (também assimilada pelo cristianismo), os quais metaforizam  num mundo paralelo, ou intuem do mundo espiritual, o que merecem e alcançam os seres que lutam ardorosamente pelo bem, a verdade  e o amor. Há assim estâncias com ideias valiosas acerca do Amor,  Divindade e do ser humano, para além de uma história de Portugal, retrospectiva e futurante, onde Camões pode exercer  os seus vastos conhecimentos de geografia, etnografia, história, mitologia greco-romana, cosmografia e teologia, e exercer a sua missão de vate, de poeta vidente, tal como os rishis dos Vedas, capazes de discernirem Rita e Dharma, Ordem e Dever, o mundo da ideias e valores perenes, e poder ser   um guia, um crítico social e ético , dirigindo-se tanto aos rei e governantes, como aos religiosos, guerreiros, comerciantes  e povo para que despertem do seu sono e lutem como esforçados seres desejosos da beleza, da virtude, do conhecimento, da verdade, da liberdade, do amor. 

Constituem um subreptício testamento autobiográfico  algumas partes dos discursos do episódio, seja na personagem ardorosa em busca do amor, Leonardo, seja quando Camões fala, através da ninfa Téthys, aconselhando o Rei e a Grei, sentindo-se bem confessionalmente nos dois cantos finais o seu alto amor e engenho artístico, alem de esforçada capacidade luta, de sacrifício, de aprendizagem e de síntese, e que todos nós devemos desenvolver.
Sem entrarmos no simbolismo possível das árvores, fru
tas, flores (onde a obra do Visconde de Ficalho é ainda referência), minerais e pedras, ou nos feitos, virtudes que os mais heroicos portugueses manifestaram,  destaquemos então os principais ensinamentos espirituais, começando no canto IX, onde observamos a alegria dos nautas encetando finalmente a viajem de saída da Índia e regresso à Lusitânia, assim descrita de modo a assinalar o culto dos antepassados e da família (os "penates") e  a importância do coração espiritual como um graal que se expande tanto que o coração físico é diminuto:                                  
                                               17-18 e 19
O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Pera contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tão perfeito,
Que o coração para ele é vaso estreito.

Porém a Deusa Cípria, que ordenada
Era, pera favor dos Lusitanos,
Do Padre Eterno, e por bom génio dada,
Que sempre os guia já de longos anos,
A g1ória por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem sofridos danos,
Lhe andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhe nos mares tristes, alegria. (...)

Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,
No Reino de cristal, líquido e manso.

Para isso conta a deusa Cípria, ou do Chipre, com o seu filho Cupido e os seus servidores cupidos, mais eficazes "quando as setas  acertam de levar ervas secretas" e por "palavras subtis de sábias magas", agora para frecharem as nereidas ou ninfas, e que assim inflamadas esposarão os argonautas portugueses:

«quero que sejam repousados,
Tomando aquele prémio e doce glória
Do trabalho que faz clara a memória.»

A "formosa ilha alegre e deleitosa" com  "o cume,  que a verdura tem viçosa" ou esverdeado, é um paraíso terrestre, o local ideal para o amor se manifestar plenamente, no qual um cipreste é um eixo entre o mundo físico e o espiritual, apontando ao "etéreo paraíso", e em tal "insula divina" os nautas portugueses deslumbram-se, extasiam-se e buscam a união com as ninfas, o que acaba naturalmente por acontecer, destacando-se a extensa descrição dessa busca da reciprocidade fusional do amor,  até então não encontrado no, por isso magoado, marinheiro Leonardo, identificável com Camões, até que por fim a ninfa: 

                                                                                 82
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
 

Essa aceitação e comunhão geral é bela e elevadamente descrita na estância 84, pois tais uniões são para eterna companhia, ecoando seja a teoria da alma-gémea platónica, seja talvez mais a anterior, dos persas, das fravashis, as mulheres-anjos que cada homem encontra em vida ou ainda, se o merecer, na ponte da passagem para o além.

 «Desta arte, enfim, conformes já as fermosas
Ninfas co'os seus amados navegantes,
Os ornam de capelas deleitosas
De louro e de ouro e flores abundantes.
As mãos alvas lhe davam como esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia
Em vida e morte de honra e alegria


Em seguida surge a apresentação, amor e união de Vasco da Gama com a deusa ou ninfa principal Téthys : 

                                                                                86
Que, depois de lhe ter dito quem era,
Cum alto exórdio, de alta graça ornado,
Dando-lhe a entender que ali viera
Por alta influição do imóbil fado,
Pera lhe descobrir da unida esfera
Da terra imensa e mar não navegado
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação só merecia,
87
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Pera o cume dum monte alto e divino,
No qual uma rica fábrica se erguia,
De cristal toda e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia,
Em doces jogos e em prazer contínuo.
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.

Em seguida a este amor natural e total, e descrito extensa, e ora detalhadamente ora mais secretamente ("doces jogos e em prazer contínuo"), numa certa apoteose do amor pleno entre "a formosa e a forte companhia",  introduz Camões, por si ou por pressão dos censores e familiares do Santo Ofício, um passo hermenêutico que reduz o perigo de suspeita de paganismo ou de uma ilha paradísiaca (do persa avéstico, pairidaeza, jardim protegido) erótica algo influenciada pelo Islão:
                                                     88
«Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Téthys e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preeminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha:
Estes são os deleites desta Ilha.

e assim tais deleites ou estados mitificados de deuses ou semi-deuses correspondem a seres humanos que tal alcançaram:
                                                      90
Por obras valerosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso.
Há então que lutar e esforçar-nos por sairmos da nossa condição de adormecidos, manipulados, enfraquecidos, escravizados:
                                                       92
Por isso, ó vós que as famas estimais,
«Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo.
e após ter aconselhado a pôr-se  «na cobiça um freio duro, e na ambição também», e a dar-se «na paz as leis iguais, constantes, que aos grandes não deem o dos pequenos», termina  magistralmente o canto, perenizando o estado de habitante da ilha do Amor para os que vierem a ser heróis esclarecidos:
  95
E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora com os conselhos bem cuidados,
Agora com as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos
.
 
 O canto X e último começa com a descrição do banquete dos casais conformes, unificados e reluzentes, ou espiritualmente desvendados, ou mesmo de almas gémeas, se é que esta complementaridade existe mesmo na primordialidade descrita no Banquete por Platão com as imaginações formais que ele pode intuir ou imaginar: 
2
Quando as formosas Ninfas, com os amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas d'altos manjares excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.

Segue-se a descrição profética e órfica, por uma Ninfa dos sucessos futuros dos Portugueses no Oriente, heróis que receberão a glória, as honras e os gostos da Ilha, segredos ques ela soubera do sábio e auto-metamorfoseador Proteu, filho do Oceano e de Téthyis, que os vira clarividentemente numa espécie de órgão, taça ou globo transparente, interior ou exterior, uma boa imagem operativa religante para se contemplar: 
                                                         7
«Com doce voz está subindo ao céu
Altos varões, que estão por vir ao mundo,
Cujas claras Ideias viu Proteu
Num globo vão, diáfano, rotundo,
Que Júpiter em dom lho concedeu

Em sonhos, e depois no Reino fundo,
Vaticinando, o disse, e na memória
Recolheu logo a Ninfa a clara história.

Após esta valorização duma clarividência profética outorgada pelo Supremo Deus, Jupiter Optimus Maximus, ainda que com um recurso a uma taça ou globo, narra a heroicidade doutros lusitanos, tal Duarte Pacheco Pereira, e não se esquece de referir mais uma vez a ajuda da santa guarda Angélica, pela qual a fundamental Providência divina do mundo se exerce, no caso fortalecendo a alma e intensificando o coração espiritual: 
                                                      20
Ou que os celestes Coros, invocados,
Descerão a ajudá-lo e lhe darão
Esforço, força, ardil e coração
 
Nomeia e sumariza a vida no Oriente de outros heróis, tais D. Francisco de Almeida e seu filho D. Lourenço, dando ainda conselhos e bênçãos a Camões que os pedira face aos poucos apoios que recebia.
Vem por fim
o ponto alto da comemoração do Amor e da demanda unitiva dos navegadores, sendo apresentada a capacidade de  se alcançar a visão beatífica da Ordem do Universo, da máquina do mundo e do que da Divindade ou Bem supremo se pode captar, pois após os longos e prazentosos momentos do amor venusiano terrestre, a Vénus Celestial, através de Téthys como guia, qual Beatriz para Dante na Divina Comédia, gera o momento mais sublime dos Lusíadas, quando chegados ao cume do alto monte do Amor Vasco da Gama pode contemplar o uniforme e perfeito globo, gerado "pelo Saber alto e profundo, que é sem princípio e meta limitado".
Avancemos na aproximação à Sapiência Suprema
, com que Camões nos inicia com estas visões (mais subtis que físicas) e palavras, ou logoi, outorgadas pela Vénus celestial ou urânica através da revelação da deusa Téthys a Vasco da Gama, com quem já se unira amorosamente e que se comove agora com a desvendação clarividente da grandeza do Cosmos, que significa um todo harmonioso:

                                    

        76
–«Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais.»
Assi lhe diz e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
79
Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.

Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas

80
«Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

 Após esta primeira focalização no mistério da Divindade e na máquina ou ordem do mundo fabricada segundo o arquétipo  dela, criado pelo Saber alto e profundo, incognocível e só Auto-cognoscível, isto é, Deus, sem princípio nem fim, e que a Deusa apresenta a uma escala humana mas que permite a orientação futura para o que se deseja ela explica ao olhar de Vasco da Gama, humano e na Terra e, logo, correctamente geocêntrica, os níveis sucessivos das dez ou nove orbes,  e das causas segundas ou anjos da celeste companhia ou ainda  "espíritos mil" com que a Providência divina governa e sustenta o universo, e é nas estâncias 81 a 85 que se descreve o nível mais alto do Universo, o Empíreo, onde as almas  puras ou mundas (não imundas) contemplam e regojizam-se com o Bem supremo ou Sumo Deus e a sua Mão providencial, dinamizada universalmente por mil espíritos. Oiçamos então as estâncias 81, 83, 84 e 85, com sublinhados do mais valioso:

Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando
Que a vista cega e a mente vil também,
Empireu se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança
,
De quem não há no mundo semelhança.

E também, porque a santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil que têm prudência
Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,
Em muitos dos exemplos que apresenta);
Os que são bons, guiando, favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem;

Quer logo aqui a pintura que varia
Agora deleitando, ora ensinando,
Dar-lhe nomes que a antiga Poesia
A seus Deuses já dera, fabulando;
Que os Anjos de celeste companhia
Deuses o sacro verso está chamando,

Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.

Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas
Obras da Mão Divina veneranda,
Debaixo deste círculo onde as mundas
Almas divinas gozam
, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro
Que não se enxerga: é o Mobile primeiro.»

 Após esta notável visão do Empíreo, o plano mais elevado das orbes que circundam a Terra, seguindo a concepção astronómica plotemaica (a tradicional geocêntrica, já que a heliocêntrica de  Copérnico ainda pouco se afirmava), e  as descrições das nove orbes do humanista e cosmógrafo Pedro Nunes, passa à caracterização sumária do Primeiro Móbil, do Céu Cristalino e do Firmamento, neste nível se movendo as Estrelas fulgentes e as doze Constelações animais ou zodiacais, e depois  as sete Esferas, orbes ou círculos dos Planetas clássicos, onde se inclui o Sol, e por fim os quatro Elementos. Aterrará na Terra, com as suas diferentes partes, gentes e  e costumes, dentro de uma certa unidade benigna ou universalidade fraterna e multipolar ainda que algo ainda eurocêntrica e cristocêntrica, conforme o pioneirismo e missionarismo lusitano da época.

 Narrará, após a descrição da Arábia e da Pérsia, bem mais extensamente a da Índia, desenvolvendo longamente (da est. 108 à 118) a história do provavelmente mítico fundador do Cristianismo na Índia, S. Tomé, e em contrapartida não refere o missionário jesuíta do Oriente S. Francisco Xavier, e que tanto sacralizaria Velha Goa, quem sabe se por alguma rivalidade da ordem dominicana com a Companhia de Jesus. A est. 118 merece ser transcrita porque  ecoará em outros autores e pregadores (tal Sebastião Toscano, a propósito de Afonso de Albuquerque) e porque mais uma vez enaltece a fraternidade inspiradora e providencial angélica, além da, detestada pelos Protestantes, intercessão dos santos, uma forma de fé activa no corpo místico da cristandade e humanidade:

 «Choraram-te, Tomé, o Ganges e o Indo;

Chorou-te toda a terra que pisaste;
Mais te choram as almas que vestindo
Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.
Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,
Te recebem na glória que ganhaste.
Pedimos-te que a Deus ajuda peças
Com que os teus Lusitanos favoreças.

E  lança ousadamente uma advertência contra o laxismo ou falta de espírito evangélico exemplar e logo missionário dos religiosos, que abreviará porém logo no primeiro verso da est. 120: «Mas passo esta matéria perigosa», muito provavelmente mencionando veladamente com tal o líder dos humanistas Erasmo, que por mais de uma vez propusera esse tipo de reforma, e muitas censuras e oposições recebera.
Será só após descrever brevemente Benares - a cidade sagrada onde os hindus acreditam que se morrerem e forem banhados nas águas santas e purificadoras do Ganges ao Céu se encaminham -, Bengala,  Pegu, Samatra, Sião, as zonas budistas do Cambodja,  China, Japão Timor,  Ceilão, Madagáscar e  Brasil, que regressa às núpcias carnais e alquímicas e às realizações espirituais dos argonautas portugueses, com estâncias bem valiosas, pois a ninfa Téthys reiteira a eternidade do feito histórico e espiritual dos nautas, e o acesso perene à ilha angélica, e permite-lhes embarcarem de regresso à Pátria e ao Tejo ameno, deixando a Ilha alegre, namorada:
                                                                                142
Até 'qui Portugueses concedido
Vos é saberdes os futuros feitos
Que, pelo mar que já deixais sabido,
Virão fazer barões de fortes peitos.
Agora, pois que tendes aprendido
Trabalhos que vos façam ser aceitos
Às eternas esposas e fermosas,
Que coroas vos tecem gloriosas,
143
«Podeis-vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo, pera a pátria amada.»
Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

A Deusa, da ilha do Amor, capaz de penetrar no tempo eterno, ensinar-lhes-á ou desvendar-lhes-á as missões futuras e enaltecerá tais cavaleiros e marinheiros dirigindo-se ao rei de Portugal em versos valiosos (e extensos, pois Camões sabia bem quão desamparado fora tantas vezes e defendia o seu e o bem comum), estimulando-o a favorecê-los (e ainda os religiosos que oram, jejuam se disciplinam e não têm ambições), pois estão prontos a servir o rei, a pátria, a virtude, as musas,  com a sua abnegação e experiência, coragem e sabedoria, que harmonizam e religam a terra e o céu.
Quando já regressados às Tágides e a Por
tugal o que sobreviverá da visão do Cosmos divino e da união com a ninfa Téthys na alma e memória de Vasco da Gama, bem como das uniões dos marinheiros portugueses com as suas contrapartes femininas, ninfas eternamente jovens, ou formas espirituais conhecidas, pois não sabemos a que níveis as quis e projectou Camões: como virtudes, como amadas, como musas, como almas-gémeas, como ligação espiritual?  Talvez se possa dizer que tais potencialidades vibram desafiante e benignamente no mundo imaginal e espiritual para os que tentam subir ou estabilizar-se no alto monte do Amor ou no seu cume.

E quantos portugueses, ou mesmo descendentes dos nautas, conseguem hoje actualizar os seus feitos, recuperar a vivência da Ilha do Amor, seja consortemente seja íntima e clarividentemente, e lutar para que ela não seja tão sangrada ou impedida no mundo pelos governos e fóruns mais insidiosos e criminosos, assim alcançando  a intuição comungante com a Ordem e Providência Divina, Rita e Dharma na Índia, e manifestando-a criativa e fraternamente com os animais, os humanos, os espíritos, os santos e santas, mestres e Anjos?
Avancemos em invocação e comunhão corajosa com Luís de Camões, Vasco da Gama, Nicolau Coelho e os outros portugueses que pelos esforços e feitos, arte, gentileza e engenho se alinham com a Providência Divina e as Causas segundas e se tornam merecedores da ilha e monte do Amor...

domingo, 9 de junho de 2024

10 de Junho: "As Poesias Lyricas selectas de Luiz de Camões", de 1876, pela Viscondessa de Vila Maior, e a sua sensibilidade à vida e obra de Camões e ao corpo místico da Humanidade. No dia de Portugal e da Lusofonia em 2024.

Heliogravura de Alfred Bramtot, para a bela edição d' Os Lusíadas de 1890.

Sofia do Roure Auffdiner, Viscondessa de Vila Maior ao casar-se em 1839 com Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, reitor da Universidade de Coimbra e 2º Visconde de Vila Maior, nascera em Lisboa a 17 de Março de 1821 e foi já após a morte do marido e com cinquenta e cinco anos de idade que deu à luz as suas primícias na Imprensa da Universidade de Coimbra: um in-8º de XL-227 páginas,  intitulado Poesias Lyricas selectas de Luiz de Camões, destinado a proporcionar ao público e aos estudantes do secundário uma selecção das melhores criações do genial vate e começar a comemorar os 300 anos da sua morte. E assim sucederia pois, dado o sucesso da obra, em 1880, sairia a 2ª edição. Colaborara antes no jornal A Semana, e na Revista Popular, dirigidos respectivamente por Silva Túlio e Latino Coelho. Em 1896 veio a colaborar ainda na antologia Parnaso Mariano, coligida por Abílio Augusto da Fonseca Pinto, ombreando com Camões, Antero (À Virgem Santíssima) e tantos outros poetas e escritores que cantaram Maria mãe de Jesus, com um belo conto A Flor Milagrosa. O Parnaso Mariano encontra-se online na Internet Archive.


Abre-a com uma dedicatória inicial ao Visconde de Juromenha, já que ele publicara «a melhor biografia do nosso poeta Camões», «um livro que justamente devemos admirar, já pelo elevado assunto que trata, já por ser escrito num estilo fácil, que agradavelmente convida a ser lido, e ao qual não faltam os adornos e os preceitos da arte, nem o sentimento que a alma move e prende» e confessa-lhe, modestamente, o seu ousado amor pelo poeta, pelo público português e pela sua própria musa ou génio: «alguém, que por todo estudo só imaginava no que lia, que só reflectia  e guardava no mais claro do seu espírito essas impressões, que se lhe infiltram formando uma espécie de oásis, sempre rico de verdura  frescor, neste requeimado turbilhão da existência!» e,  na sua auto-gnose de criadora e discípula do vate, em palavras exemplares ainda hoje para nós, continua: «alguém, digamos, a quem pesava ver que o seu pensamento havia de passar tão rápido como a vida, lançou sobre umas folhas ainda brancas as cores que, por vivas, lhe feriram mais a vista, e as lembrança que, por dolorosas, lhe caíram mais no coração.» 
Pintura ao natural, por Fernão Gomes, em 1570.

Em seguida justifica-se: «Se ousamos escrever uma notícia, e fazer uma apreciação livre da vida e carácter de Luís de Camões, esperamos que a mais profunda admiração sirva de salva-guarda a tamanha ousadia, e nos resgate de atrevimento», e adianta: «Depois tentamos ainda mais: fizemos selecção do mais apurado das poesias líricas do nosso imortal Poeta, formando delas um só volume, por julgar que assim ficam mais ao alcance de muitas inteligências, que têm sem dúvida a capacidade de as entender, mas não a paciência necessária para indagar, por entre milhares de versos, quais os seduzem e lhes agradam mais», sem dúvida uma tarefa meritória, tal como eu fiz recentemente, muito diminutamente, em:  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/06/os-melhores-sonetos-de-luis-de-camoes.html

Após uma citação preliminar de Edgar Quinet, na época mestre também de Antero de Quental, e anote-se que Antero possuía este livro da Viscondessa de Vila Maior (anotado com oito discordâncias da autoria quanto ao que o Visconde de Juromenha estabelecera), segue-se um valioso prefácio, Ao Leitor, assim iniciado:
«Através das vicissitudes da exist
ência, no meio dos mais dolorosos transes, sentimos quase sempre alguma esperança que nos socorre, vemos alguma luz que nos guia, e achamo-nos ligados ao mundo não só pelos laços da família, da amizade, mas também por essa oculta e invisível simpatia, que é um dos ímanes da vida, que misteriosamente nos atrai, e nos leva a crer - que as lágrima sinceras são as pérolas que Deus aceita, que um eco responde pelo mundo a nossos lamentos, que as ideias se reproduzem de espaço em espaço, formando essa mágica cadeia que liga um pensar a outro pensar, um sentir a outro sentir, e que nos dá a certeza de que ao nosso espírito correspondem outros, silfos benfazejos que não vimos, mas que pressentimos.»

Após esta belíssima aproximação sentida ao mistério do corpo místico da Humanidade, ou à comunicação, acima das limitações corporais e espaço-temporais,  entre espíritos, anjos, ou silfos, como escreverá talvez usando a linguagem da antiguidade, na linha de Camões, para deuses menores, daimons, génios benfazejos, a nossa homenageada prossegue com outra linha de força tão sentida por alguns de nós nesta travessia da vida: 

«Daí nos vem esta necessidade da palavra escrita, que vai, qual semente levada pelo Oceano, procurar um abrigo onde frutifique, quer seja porque um pensamento a decifrou, ou porque um coração lhe deu alento. Assim, nada mais natural e perdoável do que esta expansão dos que sofrem, já pelos revezes da sorte, ou pelos padecimentos que lhes vão roubando depressa a vida; e não menos por esta natural aspiração da alma, que sempre ao longe tenta procurar o seu infinito!»

E esta aspiração anímica a que infinito seu é, perguntaremos à Viscondessa de Vila Maior? O infinito de máximo conhecimento, o infinito da vida no além, o infinito como absoluto, como plenitude, do Amor?  Meditemos então nesta aspiração de tentar encontrar, sentir, ver, realizar o nosso Infinito...

A selecção lírica é antecedida, e não poderemos saber bem quem a leu e a apreciou, ou mesmo a quem ela deu a ler, por uma Introdução de vinte e seis páginas, das quais resgataremos alguns dos pensamentos e sentimentos valiosos de uma escritora e camoneana  completamente ignorada, de grande sensibilidade e auto-conhecimento, maturidade e espiritualidade, fraternidade e universalidade, qual co-discípula de Antero, tal como podemos ler no início:

«Vai-se o pensamento calmando, aquietando logo que se deixam os grandes tumultos, as grandes cidades, os grandes focos da civilização - campo vasto, imenso, onde tudo se elabora, onde as inteligências lutam, sofrem e saem vitoriosas da incessante fusão do espírito humano, fazendo surgir as grandes maravilhas da arte, as descobertas da ciência, e por fim, mostrando ao mundo os fachos luminosos do progresso. Porém, como dizíamos, ao passo que nos desprendemos  do turbilhão, e quando já se alarga o círculo das ideias e estranhas, que nos rodeavam, então claramente sentimos renascer uma outra ordem de sensações. À medida que nos isolamos cresce o sentimento da nossa individualidade; à medida que nos concentramos, surgem mais fortes as nossas impressões. A reflexão torna-se mais íntima (...)   e pouco a se lhe vai infiltrando um sentimento que em si abrange todos os outros - sentimento que diz humanidade, que diz fraternidade, que diz família, que diz amor, que diz maldição num grito de vingança, que diz morte num grito doloroso, que diz céu, pátria, liberdade, num grito de entusiasmo e sentimento, que nos faz amar as terras, os lares dos nossos irmãos, ainda os mais remotos e afastados; sentimento grandioso e sublime quando o generalizamos e que fica sempre sublime e grande (...)».

Pintura de José Malhoa, contemplável no Museu Militar, em Lisboa.

É só depois de valorizar muito a conservação dos vestígios do passado, dos monumentos, das casas, dos ambientes, das pedras e árvores de Portugal e de narrar uma sua visita a Aljubarrota e à Batalha, onde sentiu no Graal do seu coração um grande amor pelo poeta de Portugal, que biografa sumariamente a sua vida, lembrando-nos que «foram seus pais Simão Vaz de Camões, e Ana de Sá e Macedo» e, importante, «seu quarto avô foi Vasco Peres de Camões, que em tempo de el-rei D. Henrique de Castela passou da Galiza a Portugal: neste reino casou com uma filha de Gonçalo Tenreiro, general das armadas de Portugal e mestre da Ordem de Cristo».

A feminilidade da Viscondessa de Vila Maior surge bem expressa a propósito de Camões não ter falado dos seus pais, questionando-o: «Pois quê!, poeta; nem uma voz para esses que te deram o ser, a quem devias teu nome, teu saber, teu nobre carácter, teu elevado espírito?», e  no destaque amoroso e belo mas talvez algo exagerado que faz: «Dona Catarina de Ataíde é para Camões o símbolo da perfeição, e ousamos dizer que poeta algum na antiguidade elevou o culto do amor a tão brilhante esfera. Nos retratos, que Luís de Camões faz de sua dama, se misturam sempre virtudes e graças, assim em grinaldas de flores, belezas e perfumes. E tal foi o respeito e pureza da sua afeição, que hoje ainda aquele nome é lindo mistério que vemos brilhar através de um prisma.

Foi em Coimbra que ao imortal poeta apareceu essa visão que para sempre o deslumbrou. Comparando a canção IV «Vão as serenas águas / Do Mondego descendo», e o soneto que começa: «O culto divinal se celebrava,» não se duvida em reconhecer esta verdade. A índole do soneto é mais misteriosa; contudo cremos que no recinto divino teve maior desenvolvimento a afeição já esboçada no coração do poeta,  a beleza, contemplada assim por entre o trémulo brilho das luzes do santuário, lhe fazia flutuar a imaginação entre a mulher e o anjo. E foi tão certa em Camões a vibração desta ideia fixa, que, no decurso de sua agitada vida, não achou tréguas a tão acerbo mal».

Terá sido assim mesmo, tal sofrimento em toda a vida, ou Camões conseguiu desprender-se de tal paixão inicial não correspondida, e apenas volta e meia a homenageasse, encontrando noutras mulheres, presentes em vários poemas, a mesma visão encantadora da mulher e anjo?

Muito valiosas e belas são as reflexões que a nossa escritora tece a propósito da Providência divina ou Logos spermatikoi, ou Harmonia que tudo rege, e da Voz da Consciência, na génese dos Lusíadas em Camões, e portanto da sua partida para a Índia: «o poeta, desterrando-se agora voluntariamente, obedecia àquela voz interior, que todo o homem e mulher sente vibrar em si e que mais clara se ouve e escuta nos grandes conflitos da existência; voz quase sempre severa e rude; voz por vezes branda, e que parece implorar; voz sempre santa e libertadora: mal vai a quem a não seguir». E mostrará em seguida os aspectos mais valiosos da sua vida de guerreiro e poeta...

                                                                    

Saibamos pois meditar e ouvir mais a voz interior, o som e palavra do espírito divino, e até em comunhão com a Viscondessa de Vila Maior e do vate Luís de Camões, e a quem homenageamos e congraçamos neste dia 10 de Junho de 2024, invocando e evocando ainda a Tradição Espiritual Portuguesa e o Arcanjo de Portugal, para que os portugueses se abram mais a eles e à justiça, fraternidade e multipolaridade harmonizadoras da Humanidade e do Planeta,

sexta-feira, 7 de junho de 2024

22 dos melhores sonetos de Luís de Camões. Com breve introdução e comentários. Nos 500 anos do seu nascimento.

Luís de Camões, visto por José Malhoa. Museu Militar de Lisboa.

Os sonetos de Luís de Camões (1524-1580) são um hino constante à beleza feminina, ao enamoramento, ao Amor, às vicissitudes que ele provoca nos amantes e ainda aos Elementos e à Natureza animada, particularmente os rios e suas ninfas. Certamente, há também sonetos não líricos, ou menos líricos, dedicados aos heróis, aos mortos, à religião, à Fortuna, Destino e Tempo e à sua precariedade e mutabilidade, mas a base, o fundamento, a força maior inspiradora é o amor que ele sente e que em geral não é correspondido, ou então que sentiu e foi reciprocado mas já terminou. São dadas muitas razões para esse amor nascer subitamente, quase que por encanto do destino, ou pelo encontro dos olhares, ou por o amor ser cego, ou ainda por assim o ordenar o Amor.

Contudo, o que ressalta como  o mais despertador do amor, ou da sua intensificação em Camões, pois certamente ele foi um homem sempre em amor, ardente, com a irradiação do peito, do coração, da voz, dos sentidos e da sexualidade sempre vivos, são os aspectos ou conformações da beleza das mulheres por quem se apaixona: a face, o riso, os olhos, os gestos, - e nisto está muito da alma delas -, os cabelos ou ventos, as vozes, os dentes, e, com prudência ou pudor, muito pouco declarando ou poetizando os outros atractivos corporais, tais como os seios ou o que seja.

A poesia lírica de Camões é profunda de sentimento, de desejo, de amor, de dádiva e submissão, muito rica de conhecimentos da  cultura e literatura greco-romana e riquíssima de analogias humanas e divinas ou de captação dos sinais de afinidades ou de esquivanças, mas não é, nos Sonetos, erótica e sensual, o que já não se pode dizer, por exemplo, de várias oitavas do episódio da ilha dos Amores, bastante mais explicitas dos deleites e buscas da unidade anímica e corporal.

Também não se discernem projecões futurantes em tais sonetos, pois  não apelam a cenários futuros luminosos ou positivos. Há como que uma certa horizontalidade e sujeição a um destino de amador com poucos amores correspondidos e não há sequer invocações das musas,  dos anjos, dos deuses ou da Divindade para que consiga alcançar a união desejada, ou para que o seu amor pela amada frutifique em actos, em eventos.

Os sonetos camonianos não são cartas de amor emotivas, nem são orações pelo sucesso do amor, embora sejam muito intensos de amor e tingidos por ele, seja na descrição do valor e beleza das mulheres seja  na descrição dos efeitos que sente em si, ou das lutas que o dilaceram entre o desejo e a razão, a esperança e a desilusão, raramente  conseguindo estabelecer uma comunicação da razão e do coração, e sobretudo de coração a coração reciprocando.

Não há pois apelos ao Céu e a Providência, a Causas segundas,  Anjos ou às afinidades de almas,  para que eles abençoem o amor que ele sente por quem ame, embora haja uma constante relação com o Amor, Cupido, Vénus, numa certa invocação, culto, luta. Em alguns sente-se a gratidão, por ter havido um amor correspondido, a brilhar por entre o panorama mais frequente  de desejos,  mágoas e desilusões. Será no episódio da ilha dos Amores que a chama do seu amor atinge a plenitude do Amor, que une a terra e o céu, a acção e a contemplação, a Vénus terrestre e a Vénus Celestial.

Vejamos então, - com a 1ª numeração do Brasil, e a 2ª dos Sonetos editados pela sábia amiga Cleonice Berardinelli -, alguns dos melhores sonetos do grande poeta do Amor, e que senti com mais força espiritual do Amor, ou com mais Amor, Bem e Beleza e que transcrevi e levemente comentei em homenagem a um esforçado e sacrificado Cavaleiro e Fiel do Amor, vate mestre da Tradição Espiritual Portuguesa...

Camões, numa pintura ao natural por Fernando Gomes, em 1570.

                                                   001 ou 1.

 Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento

me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho com tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades, quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos;
E sabei que, segundo o amo
r tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos
!

Saibamos despertar o entendimento sobre o amor, mas para que não o diminuamos ou percamos e antes aprofundamos o seu contentamento.

 009 ou 017
Quando da bela vista e doce riso,
tomando estão meus olhos mantimento,
tão enlevado sinto o pensamento
que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,
que qualquer outro bem julgo por
vento;
assim, que em caso tal, segundo sinto,
assaz de pouco faz quem perde o siso.

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque quem vossas coisas claro sente,
sentirá que não pode merecê-las.

Que de tanta estranheza sois ao mundo,
que não é de estranhar, dama excelente,
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.

A comunhão anímica e inspiradora pelo Amor faz-nos entrar na dimensão etérea,  celestial, divina.

 010 ou 60
Quem pode livre ser, gentil Senhora,
vendo-vos com juízo sossegado,
se o Menino que de olhos é privado,
nas meninas dos vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
ali vive das gentes venerado,
que o vivo lume e o rosto delicado,
imagens são, nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas
que fios crespos de ouro vão cercando,
se por entre esta luz a vista passa,

raios de ouro verá, que as duvidosas
almas estão no peito trespassando,
assim como um cristal o sol trespassa...

Saibamos sentir e ver os raios dourados do Amor que passam pelos olhos e atravessam as almas cristalinas.

 080 ou 19
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,

não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.

Um belíssimo poema de comunhão no corpo místico da Humanidade e mais particularmente no sub-campo dos que se amaram mais intensamente.Sente-se como uma oração sentida, eficaz, mágica: há raios de amor partindo da terra para o mundo etéreo ou subtil onde está a alma amada, reafirmando-se a fidelidade do amor e a vontade, sacrificial até, de reunificação. Dos mais poderosos de Camões.

 004 ou 09
Tanto de meu estado m'acho incerto,
qu'em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,
numa hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.

Uma bela descrição do estado paradoxal, extático, da alma fortemente apaixonado: fora das delimitações do espaço e do tempo, soprada pelo espírito do Amor que é cego.

005 ou 81
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Um dos mais excelentes sonetos, com quase todos os versos verdadeiros ou exactos na descrição do Amor e da sua misteriosa natureza paradoxal contudo desafiante e capaz de unir os opostos.

 020 ou 10
Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semideia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assim com a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:
O vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples, busca a forma.

Talvez o soneto que descreve mais a operatividade mágica da alma idealista numa linha platónica: a que acredita no mundo das ideias e das almas e a que ele se dirige e se conforma, mas que por fim concretiza também na matéria, corpo e forma, numa  linha aristotélica ou realista, num amor que une os três mundos: o divino, o anímico e o material, e faz a ideia, a sub-ideia e a matéria do corpo conformarem-se, unificarem-se.

042 ou 08

Amor, que o gesto humano n'alma escreve,
vivas faíscas me mostrou um dia,
donde um puro cristal se derretia
por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
por se certificar do que ali via,
foi convertida em fonte, que fazia
a dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
causa o primeiro efeito; o pensamento
endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera num momento,
de lágrimas de honesta piedade
lágrimas de imortal contentamento.

Outro soneto brilhante dos efeitos subtis do amor, e dos estados paradoxais que gera, bem expostos igualmente por Erasmo no Elogio da Loucura, que é também o do Amor.

 152 ou 117
Depois que viu Cibele o corpo humano
do fermoso Átis seu, verde pinheiro,
em piedade o vão furor primeiro
convertido, chorou seu grave dano.

E, fazendo a sua dor ilustre engano,
a Júpiter pediu que o verdadeiro
preço da nova palma e do loureiro,
ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso
que, as estrelas, subindo, tocar possa,
vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso
quem se vir coroar da folha vossa,
cantando à vossa sombra verso eterno!

Um dos sonetos de hermenêutica mais exigente, exigindo bons conhecimentos da lenda de Átis, narrada no Canto II dos Fastos de Ovídio, e dos Mistérios da Antiguidade, e que mostra o amor na sua dimensão trágica, sacrificial e metamórfica unindo poderosamente a terra e o céu, o humano e o divino.

 006 ou 108
Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto, mas porém não nego
que ainda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento
d'alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas [a}alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa e em vós se banha.

Outro soneto bastante neo-platonizante, realçando a capacidade anímica de comunhão acima das limitações do tempo e do espaço, num meio etérico de ondas, vibrações, asas, pensamentos, numa bela descrição da telepatia e viagem astral da alma espiritual reminiscente das águas doces e claras do seu amado rio Mondego.

 091 ou 38
Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certíssimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai-me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver-vos em mim, senhora, não quereis,
tanto gosto levais de minha pena.

Um dos mais exigentes sonetos já que nos convida e desafia a olhar a alma por dentro e no espelho claro do encontro do Amor ver nele a sua própria alma angélica ou espiritual, em paz ou serena com tal comunhão e visão unitiva.

 073 ou 56
Náiades, vós, que os rios habitais
que os saudosos campos vão regando,
de meus olhos vereis estar manando
outros, que quase aos vossos são iguais.

Dríades, vós que as setas atirais,
os fugitivos cervos derrubando,
outros olhos vereis que, triunfando,
derrubam corações que valem mais.

Deixai as aljavas logo, e as águas frias,
e vinde, Ninfas minhas, se quereis 31
saber como de uns olhos nascem mágoas;

vereis como se passam em vão os dias;
mas não vireis em vão, que cá achareis
nos seus as setas, e nos meus as águas.

Um dos sonetos onde mais ecoa a tradição pagão ou greco-romana, com os espíritos da natureza, Náiades e Dríades, deusas menores animando e alegrando a Natureza e comungando animicamente com o poeta.

 039 ou 77
O culto divinal se celebrava
no templo donde toda a criatura
louva o Feitor divino, que a feitura
com seu sagrado sangue restaurava.

Ali Amor, que ò tempo me aguardava
onde a vontade tinha mais segura,
numa celeste e angélica figura
a vista da razão me salteava.

Eu, crendo que o lugar me defendia,
e seu livre costume não sabendo
- que nenhum confiado lhe fugia - ,

deixei me cativar; mas já que entendo,
Senhora, que por vosso me queria,
do tempo que fui livre me arrependo.

Belíssimo soneto onde se descreve o enamoramento dentro de uma igreja e na celebração da missa, e onde a sacralidade da religião cristã e da religião do amor se enlaçam na dádiva recíproca.

 007 ou 39
O fogo que na branda cera ardia,
vendo o rosto gentil que eu n'alma vejo,
se acendeu de outro fogo do desejo,
por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se encendia,
da grande impaciência fez despejo,
e, remetendo com furor sobejo,
vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
 apagar seus ardores e tormentos
na vista de que o mundo tremer deve.

Namoram-se, Senhora, os Elementos
de vós, e queima o fogo aquela neve
que queima corações e pensamentos.

Um dos poemas mais ardentes e arrebatados e que é fundamentado na própria operatividade dos quatro ou cinco elementos da natureza.

 076 ou 44
Pelos extremos raros que mostrou
em saber, Palas, Vénus em fermosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Ásia as adorou.

Aquele saber grande que ajuntou
espírito e corpo em liga generosa,
esta mundana máquina lustrosa,
de só quatro Elementos fabricou.

Mas mor milagre fez a natureza
em vós, Senhoras, pondo em cada üa
o que por todas quatro repartiu.

A vós seu resplandor deu Sol e Lua,
a vós, com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.

Outro poema de comunhão do microcosmo humano com o macrocosmos, quando a graça divina assim dispõem luminosamente numa alma mais harmoniosa.

 089 ou 67
Pois meus olhos não cansam de chorar
tristezas, que não cansam de cansar-me;
pois não abranda o fogo em que abrasar-me
pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar
a parte donde não saiba tornar-me;
nem deixe o mundo todo de escutar-me,
enquanto me a voz fraca não deixar.

E se nos montes, rios, ou em vales,
piedade mora, ou dentro mora amor
em feras, aves, plantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males
e curem sua dor com minha dor,
que grandes mágoas podem curar mágoas.

Graças à omnipresença e empatia do Amor e da piedade é possível a comunhão e a harmonização dos seres, suplantando as dores.

 036
Presença bela, angélica figura,
em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
gesto alegre, de rosas semeado,
entre as quais se está rindo a fermosura;

olhos, onde tem feito tal mistura
em cristal branco o preto marchetado,
que vemos já, no verde delicado
não esperança, mas inveja escura;

brandura, aviso e graça, que aumentando
a natural beleza com desprezo,
com que, mais desprezada, mais se aumenta,

são as prisões de um coração que, preso,
seu mal ao som dos ferros vai cantando,
como faz a Sereia na tormenta.

O ser amado, na sua formosura, reflecte bem os dons divinos ou celestiais, e por isso atrai, prende, liga-nos e faz-nos por ele clamar.

 138 ou 175
Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconcerta.

Assim, de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
 mostrando que é engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa mesma imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo de um certo modo ser presente.

Ditosa é, logo, a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.

Mais uma comunhão da alma supra limitações corporais, no sentir e amar internamente, que suplanta a pena da ausência da plena presença do bem que se carece ou ama.

 150
Quem presumir, Senhora, de louvar-vos
com humano saber, e não divino,
ficará de tamanha culpa digno
quamanha
[quão grande] ficais sendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvor dar-vos,
por mais que raro seja e peregrino,
que vossa fermosura eu imagino
que Deus a ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes
em posse pôr de prenda tão subida,
como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;
que, pois mercê tamanha me fizestes,
de mim será jamais nunca esquecida.

Valorização extrema da amada, vista na contemplação amorosa como divina.

  090 ou 035
Um mover d'olhos, brando e piedoso,
sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
üa pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; üa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento;

esta foi a celeste fermosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.

Belíssima descrição de um ideal de mulher que, presente numa dama, a torna maga, capaz de influenciar e metamorfosear o amante.

 166 ou 102
Verdade, amor, razão, merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
porém, fortuna, caso, tempo e sorte,
têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.

Doctos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser cridas
e cousas cridas há sem ser passadas,
mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

Ás virtudes, valores e merecimentos devemos juntar a instabilidade da fortuna, e a sabedoria da experiência, mas ainda assim o mais valioso é a nossa fé e ligação à Divindade.

 032
Vós que, d'olhos suaves e serenos,
com justa causa a vida cativais,
e que os outros cuidados condenais
por indevidos, baixos e pequenos;

S'ainda do Amor domésticos venenos
nunca provastes, quero que saibais
que é tanto mais o amor depois 
que amais,
quanto são mais as causas de
ser menos.

E não cuide ninguém que algum defeito,
quando na cousa amada s'apresenta,
possa diminuir o amor perfeito;

Antes o dobra mais; e se atormenta,
pouco e pouco o desculpa o brando peito;
que Amor com seus contrários s'acrescenta.

Não sejamos demasiado exigentes no Amor, ou nas qualidades afins no ser amado, e assim veremos Ele crescer através dos próprios obstáculos, limitações e desencontros.

Que a caixinha de Pandora seja no séc. XXI por fim de justiça e multipolaridade, benéfica e amorosa. Por Jules Robert Lefebvre.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Os ensinamentos espirituais do gurudev Ranade, nos 63 anos do seu mahasamadhi ou desincarnação..

 Guru Ranade foi um dos últimos grandes mestres da tradição espiritual indiana, comemorando-se hoje 6 de Junho de 2024,  os 63 anos da sua partida, tendo nascido a 3 de Julho de 1886, e transversalmente a nós, dois anos antes de Fernando Pessoa, e três depois de Leonardo Coimbra, com este tendo mais afinidades já que foi um brilhante filósofo, professor  e vice-chanceler universitário, e fundador de uma Universidade espiritual.
Nascido numa família de longa tradição
religiosa, Ranade veio a tornar-se um mestre de muitos discípulos que foram iniciados luminosamente por ele no caminho espiritual, através da entrega de um mantra ou nome (nama) de Deus para ser  perseverantemente trabalhado nas meditações diárias, até se obter a visão da forma (rupa) divina e se sentir a felicidade (bhava, ananda), o que implica o desprendimento dos bens do mundo (vairagya), o amor devocional ao divino e ao mestre (bhakti) e o discernimento (jnana) que permite obter-se a graça de se ver o real, divino ou espiritual.
Gurudev Ranade (1886-1957), no canto direito, no seu simples ashram.

Embora não tenha estado no seu ashram nos meus dois anos e meio de peregrinações, diálogos e meditações na Índia, desde o cedo apercebi-me do seu valor na tradição Dwaita Vedanta, ou seja da realização pessoal espiritual com a Divindade, a que me é mais afim, e adquiri alguns dos livros seus e dos discípulos, vindo  recentemente a estudar t o seu principal discípulo francês, um pioneiro especialista de comparativismo religioso e de orientalismo, e por experiência interior também, Jacques de Marquette, tendo por isso colaborado com três artigos para a revista indiana Pathway to God, e escrito alguns artigos neste blogue, seja sobre Marquette seja sobre Ranade, tal uma sua biografia: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/07/guru-ranade-um-verdadeiro-yogi-e.html

Muitos dos conhecimentos, técnicas e e experiências de Gurudev Ranade são me conhecidos e apreciando-os, nada melhor do que tentar transmiti-los pois provém dum guru no verdadeiro sentido, alguém que dissipou as trevas e alcançou a realização do espírito e a religação a Deus, e que durante anos assumiu incansável e abnegadamente, certamente num meio propício, a tarefa de iniciar e impulsionar os outros para tal realização divina, bem ao contrário do que vemos hoje na maioria dos instrutores e gurus nacionais e mundiais, demasiado apanhados em mistificações e comercialices, quintas iniciações, tantrismos e cabalismos.

Iniciado por Gurudev Ranade, Vinayak Hari Date,  em 1982 publicou um valioso livro R. D. Ranade and His Spiritual Lineage, na famosa e abnegada fundação Bharatiya Vidya Bhavan, no qual após biografar  os dois  mestres que o antecederam na  linha da fraternidade ou sampradaya Natha, a qual se autonomizou na Nimbargi sampradaya com  eles, Sri Bhausaba Maharaja de Umabi (1765-1835) e  Sri Amburao Maharaja de Inchgiri (1799-1805), desenvolve  a biografia e a análise das obras de Guru Ranade e dá uma selecção dos ensinamentos, dos quais, sob o título de Convicções do professor R. D. Ranade, apresenta cento e cinco pensamentos, dos quais transcrevemos os seguintes, e que poderão vir a ser comentados caso alguém o peça...

 1 - Não há outro caminho para a libertação a não ser a pronúncia do Nome divino transmitido pelo mestre espiritual e a consequente visão de Deus.
5 - Ranade designou a sua escola como a escola da realização do Atman.
10 - Em todos os nossos conflitos e crises na vida, a oração a Deus é o único remédio que nos é deixado.

11- Citando o famoso místico Ramadasa, Ranade costumava dizer que o seu mestre também afirmava que se todos os momentos ou períodos do tempo fossem bons, todos se tornariam reis, mas quer o tempo seja favorável ou não uma pessoa deve meditar.

12- Não é necessário cortar uma parte do nervo debaixo da língua, tal como o recomendam os hathayogins, pois a pronúncia do Nome de Deus (recebido ou escolhido), por si só, dar-vos-á a ambrósia (a mítica bebida ou o gosto delicioso ou beatífico.)
21- O guru incarnado não é um guru real. A visão de Deus que se pode ver, por exem
plo, na chama da cânfora é o verdadeiro guru.
22 - Uma pessoa pode zangar-se, mas não deve albergar ódio na mente.
27 - Podem surgir desgraças, podemos ter de aguentar ataques de tentação ou de irritação, mas a dor física pode-se tornar insuportável e então o único meio que nos resta é de pedirmos a Deus que nos permita meditar.
30 - Acredito na transmissão física do poder espiritual. Meditai e isso ajudará alguma pessoa algures no universo,
31 - Como actividades benéficas, a seguir à meditação, est
ão a profissão de médico que diminui as misérias dos outros e a seguir a distribuição de alimentos aos famintos.
38 - A fé em Deus torna-se firme quando se tem constantemente presente que todas as coisas pertencem somente a Deus

40- Deveria haver a todo momento a felicidade de Deus. Isto implica que deve haver a incessante visão de Deus diante dos nossos olhos.

41 - Maharaj Nimbargi costumava ter a visão do Atman (espírito) da cabeça aos pés,  a todo o momento.

42 - A  realização de acordo com Bhausahib Maharaj, disse Ranade, deve incluir  visão, o toque e a conversa com Deus.

44 - A experiência epistemológica é a fundação das asserções metafísicas em filosofia, tal como Brahman (a Divindade Absoluta) é eterno.

46 - Nama, o nome, é mais importante que Rupa, a forma, mas Bhava, o sentir interior, é mais importante que Nama, o nome (de Deus, no mantra)
49 - Como o Atman entra no ventre da mãe na forma de jiva (espírito individualizado e incarnado) e como ele deixa o corpo na hora da morte é claramente percebido por um grande santo.
51 - Três horas por dia deve ser o período mínimo pelo qual um sadhaka (discípulo) deve meditar todos os dias. Se ele meditar por seis horas seguidas, ele mesmo perceberá como é valioso fazer isso.
55 - O nome de Deus está envolvido na audição do som não tocado (anahata nada) como também na luz iluminadora da visão de Deus.
56 - Lembrar-se de Deus sem ver a forma é um dever a cumprir-se por dever.
57 - Recordar o Nome de Deus com amor é o mais difícil de tudo.
58 - A dor e a miséria purgarão a mente de suas impurezas. Uma vez que bhava (sentimento devocional) é gerado, a qualidade torna-se mais importante do que a quantidade.
61 - Meditar na companhia daqueles que já obtiveram experiência espiritual é facilitar a obtenção de tais experiências mais cedo do que obtendo-as sem tal companhia. Dedilhar um fio de uma cítara é produzir som a partir de outros fios. Assim também ocorre a transmissão de experiências espirituais (cf. a experiência de Sanjaya, ao ouvir a conversa entre Arjuna e Krishna, sendo o narrador da famosa Bhagava
d Gita).
63 - Uma pessoa
deve rezar a Deus para que a torne firme e estável na sua devoção e a impeça de cair da devoção e de seguir um caminho errado. Deus trabalha para o homem (kabirace vinato sele), significa que Deus remove os obstáculos no seu caminho de meditação.
69 - Alguma vez sentiste a angústia do coração por não conseguires ver a forma de Deus? Alguma vez sentiste aversão à comida e fome? Alguma vez choraste por Deus? Então porque é que Deus há-de mostrar a sua graça para contigo?
75 - O dever para com Deus é o nosso primeiro e principal dever. Ranade, portanto, nunca permitiu que alguém o perturbasse no momento da sua meditação, seja a que título fosse.
78 - Ter a visão do Atman para si mesmo e dizer aos outros o caminho para isso é o maior serviço.
80 - Haverá pouco progresso na experiência espiritual, se não houver companhia daqueles que são avançados na vida espiritual, isto é, se não houver companhia dos bons e dos santos.
91 - Quando o nome de Deus é transmitido pelo Guru e é meditado na garganta, qual é a utilidade de outros mil nomes que possam ser encontrados num livro?
96 - O rio de Atma Jnana (conhecimento ou consciência do espírito) flui às vezes e outras vezes torna-
se invisível.
98 - Para além e acima da medi
tação do Nome de Deus, o que é importante é a companhia do santo (satsanga).
102 - Se alguém tem experiência espiritual ou não (e a própria experiência em si) pode ser conhecido olhando nos seus olhos.
103 - Proteja o Paramartha (valor ou objectivo supremo) cercando defensivamente sua mente.»

E assim terminamos esta breve homenagem e invocação dum verdadeiro mestre, com votos que possamos aprender com Gurudev Ranade e a companhia dos santos ou corpo místico da Humanidade.