sexta-feira, 15 de julho de 2022

Introdução aos "Poemas de Kabir", (2ª p.) por Evelyn Underhil e Rabindranath Tagore. Tradução brevemente comentada por Pedro Teixeira da Mota

«A história de Kabir está rodeada de lendas contraditórias, e não se pode confiar em nenhuma delas. Algumas emanam de uma fonte hindu, outras de fonte islâmica, e apropriam-se dele ora como um santo hindu ora como um santo sufi. O seu nome é, porém, praticamente uma prova concludente da sua ascendência Islâmica: e a mais provável versão é a que o apresenta como um filho verdadeiro ou adoptivo de um tecelão islâmico [Niru e da sua mulher Nima] em Benares, a cidade na qual tiveram lugar os principais acontecimentos da sua vida .

Na Benares quinhentista as tendências sincretistas da religião Bhakti [a do amor devoto ao Divino, seja no Cosmos, nos avatares ou no coração] tinham atingido o seu desenvolvimento máximo, e os Sufis e Bramânees parecem ter-se encontrado em debates, pois os membros mais espirituais de ambos os credos religiosos frequentavam os ensinamentos de Ramananda [1400-1476], cuja reputação estava então no seu apogeu. O jovem Kabir, em quem a paixão da religião era inata, viu logo em Ramananda o seu mestre predestinado; mas sabia quão frágil era a esperança de um guru hindu aceitá-lo como discípulo. Escondeu-se portanto junto às escadarias [dos gaths] do rio Ganges, onde Ramananda costumava banhar-se e isto fez com que o mestre, descendo para a água, chocasse com o seu corpo e exclamasse espantado: " Ram! Ram!" - o nome da incarnação na qual ele adorava Deus. 

Om Sri Ramamanda

 Kabir declarou então que tinha recebido o mantra da iniciação dos lábios de Ramananda, e foi por isso admitido no discipulado. Apesar dos protestos dos brâmanes e islâmicos ortodoxos, Kabir persistiu no que ele clamava, exibindo deste modo activamente o próprio princípio de síntese religiosa que Ramananda procurava estabelecer pelo pensamento. Ramananda parece tê-lo aceitado e, apesar das lendas islâmicas falarem do famoso Sufi Pir, Takki de Jhansi, como o mestre de Kabir na parte final da vida, o santo hindu [Ramananda] é o único mestre indiano para quem ele em algumas das suas canções se reconhece devedor.
O pouco que conhecemos da vida de Kabir contradiz muitas das ideias correntes concernentes a mística oriental. Ignoramos completamente os estágios da disciplina através das quais ele passou e o modo como o seu génio espiritual se desenvolveu. Parece ter permanecido durante anos discípulo de Ramananda, juntando-se às discussões teológicas e argumentações filosóficas que o seu mestre mantinha com os grandes Mullahs [religiosos islâmicos] e Bramanes [os religiosos hindus]; e a esta fonte causal devemos provavelmente a sua familiaridade com a terminologia [e conceitos próprios] de filosofia Hindu e Sufi.
Ele pode ter-se submetido ou não à educação tradicional do contemplativo Hindu ou Sufi: é claro, que de modo algum adoptou a vida do asceta profissional, ou a de estar retirado do mundo com o objectivo de se entregar às mortificações corporais e à demanda exclusiva da vida contemplativa. Lado a lado com a sua vida interior de adoração, a sua expressão artística em música e palavras - pois ele era um hábil músico tal como poeta - ele viveu a sã e diligente vida do artesão Oriental. Todas as lendas concordam nisto: que Kabir era um tecelão, uma pessoa simples e sem estudos, que ganhava a sua vida no tear. Tal como Paulo [de Tarso, o apóstolo], o fabricante de tendas, [Jacob] Boehme [1575-1624, místico ocultista], o sapateiro, [John] Bunyan [1628-1668, puritano], o funileiro, [Gerhard]Tersteegen [1697-1768, pietista protestante], o fabricante de fitas, ele sabia como combinar visão e indústria; o trabalho das suas mãos ajudava mais do que impedia a meditação desapaixonada do seu coração.
Detestando as austeridades meramente corporais, ele não era um asceta mas um homem casado, o pai de uma família - uma circunstância que as legendas hindus de tipo monástico em vão tentam esconder ou explicar - foi a partir do coração da vida comum 
que ele cantou, arrebatadas pelo amor divino, as suas líricas.
Nisto as suas obras corroboram a versão tradicional da sua vida.
Constantemente enaltece a vida doméstica, o valor e a realidade da existência diurna, com as suas oportunidades de amor e renúncia, ridicularizando a santidade profissional do Yogi, que "tem uma grande barba e os cabelos enlaçados, e que parece um bode", e todos aqueles que pensam ser necessário fugir de um mundo penetrado pelo amor, a alegria e beleza - o próprio teatro da demanda do ser humano - para encontrar a Realidade Una que "espalhou a Sua forma de amor através de todo o mundo".
Não é preciso muita experiência da literatura ascética para reconhecer a coragem e a originalidade desta atitude em tal tempo e época. Do ponto de vista da santidade ortodoxa, seja hindu ou islâmica, Kabir era plenamente um herético, e o seu sincero desagrado de toda a religião institucional, de todas as obrigações externas - que eram tão árduas e intensas como as dos Quakers [reformistas místicos protestantes] - completavam, no que diz respeito à opinião eclesiástica, a sua reputação como um homem perigoso. A A simples união com a Realidade Divina que ele enalteceu constantemente, tal como o dever e a alegria de cada alma, era independente tanto dos rituais como das austeridades corporais. O Deus que ele proclamava não estava nem na Kaaba nem no monte Kailas. Aqueles que o procuravam não precisavam de ir tão longe, pois Ele esperava ser descoberto em qualquer lugar, mais acessível "à lavadeira e ao carpinteiro" do que ao que se considera uma pessoa santa. Deste modo, todo o aparato de piedade, tanto hindu como islâmico - o templo e a mesquita, o ídolo e a água santa, as Escrituras e os sacerdotes - eram denunciados por este inconveniente poeta de visão clara, como coisas mortas materializando-se entre a alma e o seu amor - 

«Todas as imagens não têm vida, não podem falar:
Eu sei, pois gritei-lhes alto.
As Puranas e o Alcorão são meras palavras:
      Levantando a cortina, eu vi.» (Poemas XLII, LXV, LXVII)

Este tipo de pensamento não podia ser tolerado por qualquer igreja organizada, e assim não surpreende que Kabir, tendo a sua sede em Benares, o próprio centro da influência sacerdotal, tivesse sido sujeito a uma perseguição considerável. A conhecida lenda de uma bela cortesão ter sido enviada pelos Bramânes para tentar a sua virtude, e que contudo se converteu, como a Maria Madalena, pelo seu súbito encontro com um amor mais elevado, preserva a memória do medo e do desagrado com que ele era olhado pelos poderes eclesiásticos. Pelo menos uma vez, após a realização de um suposto milagre de cura, foi levado diante do sultão de Delhi [e depois rei] Sikandar Lodi [1458-1517], e acusado de possuir poderes divinos [ou mesmo, como o mártirAl-Allaj, uma unidade-identidade-não dual com a Divindade]. Mas Sikandar Lodi, um governante de considerável cultura, era tolerante com as excentridades das pessoas santas pertencendo à sua fé. Kabir, sendo pela nascença islâmico, estava fora da autoridade do Brâmanes, e classificado tecnicamente [ou considerado pertencer] nos Sufis, para os quais uma grande liberalidade (latitude) teológica era permitida. Pelo que, embora no interesse da paz tivesse sido banido de Benares, a sua vida foi poupada. Isto parece ter acontecido em 1495, quando ele estava com cerca dos 60 anos de vida. É o último acontecimento da sua carreira do qual temos um conhecimento seguro. A partir de então parece ter-se movido por entre várias cidades do norte da Índia, o centro de um grupo de discípulos, continuando em exílio essa vida de apóstolo e poeta de amor, para a qual, como ele declara numa das suas canções,  estava destinado "desde o começo do tempo". Em 1518, um homem idoso, quebrado na saúde, e com as mãos tão fracas que já não conseguia mais fazer a música que amava, morreu em Maghar, perto de Gorakhpur.
Uma bela lenda conta-nos que após a sua morte os discípulos
islâmicos e hindus discutiram a posse do seu corpo, o qual os islâmicos queriam enterrar e os hindus queimar. Enquanto eles debatiam juntos, Kabir apareceu diante deles e disse-lhes que levantassem o véu e que olhassem o que estava em baixo. Assim fizeram, e encontraram em vez do cadáver um monte de flores, metade das quais foi sepultada pelos islâmicos em Maghar, e a outra metade levada pelos hindus para Benares a fim de ser queimada - uma conclusão apropriada para uma vida que tornara fragrante as mais belas doutrinas dos dois grandes credos.»


                             

Como breve comentário apenas destacaremos o ambiente sincretista
que se viveu frequentemente na Índia dos séculos XV e XVI entre os místicos hindus e islâmicos, de que Kabir é um exemplo, tal como Dara Shikoh (1615-1659) será uns anos depois, este também deixando obras tão valiosas que manifestam bem esse dialogo inter-religioso, e a quem já dediquei alguns textos no blogue e gravações no youtube. Foi pena terem sido poucos os missionários portugueses ou ocidentais a conseguirem sair das camisas de forças que a dogmática ou a ortodoxia católica lhes impuseram.
Segundo realçar a espiritualidade directa e profunda de Kabir em nada dependente de textos e rituais, templo e mesquitas, hierarquias humanas, mas basicamente desenvolvendo pelo Amor a sua espiritualização e comunhão com a Divindade
Diz-nos Evelyn Underhil que sabemos pouco dos passos ou técnicas praticadas pelo poeta místico, e Rabindranath Tagore que as devia conhecer nada disse, mas podemos deduzir que elas foram as típicas dos sufis e hindus, de que os  bauls da Bengala são o melhor exemplo, e que se baseavam na oração, no canto e na dança exaltada no amor ao divino e com posteriores momentos de silencio, meditação, visão, esta em espacial da presença divina no coração.
Talvez por isso surja um pouco como uma posição mais preservadora das duas religiões que realista a afirmação de Evelyn Underhill que Kabir tornara mais fragrantes as melhores doutrinas das duas religiões, já que mais do que doutrinas se tratava sobretudo da experiência do amor, bhakti, dedicado ao ser divino, claro utilizando algumas das práticas dos sufis e yogis, nomeadamente os cantos e a repetição dos nomes divinos, que em geral se recebe directamente do guru na iniciação e que, como vimos, Kabir recebera de um modo algo ardiloso de Ramananda. Deste Ram, Ram, que foi também o mantra principal do ou quem sabe mesmo dado por um guru, Mahatma Gandhi, ficou em português o ramram, pois esse repetir cadenciado do mantra, na nossa psicologia linguística ficou associada a uma alma paciente, capaz de repetir ou de viver calmamente, repetindo demoradamente um simples nome de Deus, mas com efeitos muito profundos por vezes nos corpos subtis e espirituais, tal como algumas poesias ou canções de Kabir ilustram, por vezes ligadas com o centro íntimo do coração ou ainda ao 3º olho, mas isso veremos num próximo comentário às canções de Kabir, sem dúvida um mestre guru ou pir, da realização divina transversal à essência de todas as verdadeiras religiões... Aum Kabir!

terça-feira, 12 de julho de 2022

Introdução aos "Poemas de Kabir", por Evelyn Underhill e Rabindranath Tagore. Tradução brevemente comentada por Pedro Teixeira da Mota.

                                         

Rabindranath Tagore (1861-1941), como grande poeta e místico indiano, quis prestar homenagem a um dos maiores poetas e místicos do seu país e resolveu traduzir para inglês os poemas-cantos de Kabir (1398 ?-1518), dando à luz em Fevereiro de 1915, Kabir's Poems, sendo assistido pela estudiosa inglesa de misticismo Evelyn Underhill (1875-1941)  Como tal antologia não está traduzida em Portugal, embora haja edições dos poemas de Kabir, resolvemos apresentar a introdução, pois é valiosa na sensibilidade e espiritualidade, e assim acrescentamos mais textos neste blogue  dedicados tanto a Rabindranath Tagore como à Tradição Espiritual Indiana, o Sanatana Dharma, e seus mestres, e até porque ainda visitei em 1995 perto de Calcutá o seu centro Shantiniketan, com a famosa ao ar livre Universidade  Visva Bharati, tendo tido um bom diálogo com um dos responsáveis e que espero um dia partilhar.

Embora a introdução esteja assinada por Evelyn Underhill e manifeste a sua cultura de ocidental e cristã, cremos que a aprovação, senão mesmo sugestões, de Rabindranath também se terão exercido no texto. Ora ouvirmos  místicos falarem de místicos, pode impulsionar em nós a correnteza de Amor divino que ambos expressaram tão sincera e ardentemente embora Rabindranath Tagore experimentasse e cantasse também fortemente o amor humano e o da Natureza, enquanto Kabir, embora casado e tendo tido filhos,  sentiu ou dedicou mais o amor ao amor em si, à realização espiritual, à Divindade e à fraternidade dos adoradores de Deus, acima das denominações e dogmas das religiões e seitas, exprimindo os seus poemas a partir de vivências yogicas, meditativas ou devocionais fortes, estimuladas pelo canto ou kirtan, a oração, os mantras, por vezes mesmo a dança, sendo essas canções ainda hoje muito populares, havendo yogis, ascetas e bauls que o têm como mestre do mestre, ou seja, como param guru, e por isso são chamados os Kabir panthis, os que seguem o caminho (panth) de Kabir...


Oiçamos então a introdução: «O poeta Kabir, de quem uma selecção de cantigas é aqui pela primeira vez oferecida aos leitores de inglês, é uma das mais interessantes personalidades da história do misticismo indiano. Nascido em, ou perto, de Bénares, de pais islâmicos [tecelões], e provavelmente perto do ano de 1440,  ainda jovem tornou-se discípulo [após vários esforços] do célebre asceta hindu Ramananda. Ramananda levou até ao Norte da Índia  o revivalismo religioso que Ramanuja, o grande [místico e filósofo] reformador do séc. XII do Bramanismo, iniciou no Sul. Esta reviviscência foi em parte a reacção contra o crescente formalismo do culto ortodoxo, em parte uma asserção das exigências do coração contra o intenso intelectualismo da filosofia Vedanta, o monismo exagerado que esta filosofia proclamou. Na pregação de Ramanuja tal reacção tomou a forma de uma ardente devoção pessoal ao Deus Vishnu, como representando o aspecto pessoal da natureza Divina: essa mística "religião do Amor" que faz o seu aparecimento a certo nível da cultura espiritual, e que credos e filosofias são impotentes em  matar.
Ramananda... Será uma vera efígie...?

Apesar de tal devoção ser indígena [ou inata] no Hinduísmo, e encontrar expressão em muitas passagens da Bhagavad Gita, havia no seu revivalismo medieval um largo elemento do sincretismo. Ramananda, através de cujo espírito, diz-se,  terá chegado [a  devoção a Rama,  avatar ou incarnação de Vishnu, e a influência da Bhagavad Gita] a Kabir, parece ter sido uma pessoa de  cultura religiosa ampla, cheia de entusiasmo missionário.  Vivendo numa época  na qual a poesia apaixonada e a  filosofia profunda dos grandes místicos Persas, Attar, Saadi, Jalalu'ddin Rumi e Hafiz  exerciam uma influência poderosa no pensamento religioso na Índia, ele sonhou reconciliar esse misticismo pessoal e intenso  Maometano com a teologia tradicional do Bramanismo.

Alguns consideram que estes grandes líderes religiosos  foram influenciados pelo pensamento e a vida Cristã; mas como é um ponto sobre o qual as  autoridades competentes mantêm pontos de vista amplamente divergentes, tal discussão não será aqui tentada. Podemos contudo afirmar com segurança, que nos seus ensinamentos, duas - ou talvez três  - correntes aparentemente antagonistas de intensa cultura espiritual se encontram, tal como a Judaica e a Helenística se cruzaram no começo da Igreja Cristã: e  uma das mais notáveis características do génio de Kabir é ele ter sido capaz nos seus poemas de fundi-las [islâmica e hindu] numa.

Sendo um grande reformador religioso, o fundador de uma seita à qual pertencem ainda hoje cerca de um milhão de Hindus do norte,   é todavia  como poeta místico que Kabir vive supremamente em nós. O seu destino foi o de muitos dos reveladores da Verdade. Inimigo do exclusivismo religioso,  procurando acima de todas as coisas iniciar os seres humanos na liberdade das crianças[ou filhos] de Deus, os seus seguidores honraram a sua memória reconstruindo num novo local as as barreiras que ele esforçara-se por deitar abaixo. Mas as suas maravilhosas canções sobrevivem, as expressões espontâneas da sua visão e do seu amor; e é por estas, não pelos ensinamentos didácticos associados ao seu nome, que ele faz o seu apelo imortal ao coração. 

Nestes poemas uma vasta diversidade de emoção mística é trazida à acção: desde as mais sublimes abstrações, à paixão mais extra-mundana pelo Infinito, até à mais íntima e pessoal realização de Deus, expressa em metáforas naturais e símbolos religiosos extraídos indiferentemente da crença hindu ou islâmica. 

É impossível dizer o seu autor se era um Brahman ou Sufi, Vedantico ou Vaishnava. Ele é, como ele  diz, «ao mesmo tempo a criança da Allah e de Rama». Esse Supremo Espírito a quem ele conhece e adora, e a cuja alegre amizade ele procurou induzir as almas de outras pessoas, enquanto incluía todas as categorias metafísicas e todas as definições de credos, transcendia-as; e contudo cada uma delas contribuía algo para a  descrição dessa Infinita e Simples Totalidade que se revelava a ele próprio, e de acordo com a medida deles, aos amantes fiéis de todos os credos». 

Concluindo eu agora,  seja por que nome, mantra sagrado ou concepção divina nos dedicarmos a orar, meditar ou contemplarmos,  consigamos nós estabilizar  a nossa mente e alma e elevar a intensificar  a chama em nós do amor  pela Fonte e deste modo aprofundarmos  a sintonização da nossa consciência com ela, para  podermos comungar mais seja a "Infinita e Simples Totalidade", como sentiram e poetizaram tão bem Kabir e Rabindranath Tagore, seja a devoção amorosa com a Divindade no aspecto ou face pessoal, feminina ou masculina, que mais nos diz ou toca.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Das amizades, e do Amor, e das suas potencialidades e realizações.

Encontro Internacional de Yoga em Zinal, Suíça, em Setembro de 1985, com quatro belas almas praticantes de Yoga e o swami Amaldas, discípulo de Bede Griffiths. Conhecera-os no seu ashram Shantivanam, nas margens do rio Kavery, em Tamil Nadu, onde estive um mês.

 Na rotina ou banalização da vida quotidiana, ou  na conflitualidade ou indiferença em que ela nos envolve, acabamos por deixar enfraquecer ou mesmo perecer a percepção do valor qualitativo de alguns seres, e logo da amizade com eles (na Índia denominada até na sua dimensão espiritual, satsanga, companhia da verdade) e, embora até ele nos possam surgir em sonhos, indicando-nos assim tal, já que os encontramos no mundo interior semi-consciente, ou no além subtil e paralelo das almas semi-despertas, pouco fazemos no dia a dia, ou na ocasião, para estabelecermos  elos ou laços de amor, e dialogarmos de modo a ganharmos jus a que tais amizades ou pessoas entrem  numa certa profundidade e perenidade de manifestação ou mesmo numa exemplaridade ou complementaridade arquetípica frutuosa.

Quantos seres valiosos ou mesmo fabulosos não morrem semi- frustrados nas suas melhores potencialidades e diálogos que estimulassem  capacidades e realizações luminosas?  Quantas vezes não sofremos pela incapacidade de encontrarmos ou mantermos os diálogos valiosos que trariam mais luz a nós e aos outros, e pelos quais entraríamos em estados expandidos de consciência, obteríamos intuições valiosas, partilharíamos gnose libertadora, geraríamos um corpo espiritual mais consciente e luminoso e sentiríamos mais o Amor e a Divindade?

Em geral  a audácia, para contactar e aprofundar elos com tais pessoas, e mesmo  pressentindo as que estarão em afinidade vibratória de demanda dos mistérios da Vida,  é pouca e deixamo-nos ficar nas mais limitadas rotinas, amizades e afinidades profissionais, familiares, emocionais, mas que não conseguem uma maior floração do Amor Inteligência que nos abre aos grandes mistérios da vida, do espírito, do Cosmos e da Divindade...

Na realidade a pérola principal das amizades e diálogos, a que mais deveríamos demandar, é a que permitirá melhor despertar o espírito, isto é, a percepção pela nossa alma  do espírito e do Amor Divino e das suas energias criativas e abençoadoras subtis, e a sua vivência a dois ou em família Mas quantos de nós olvidamos tal potencialidade, ou deixamos soçobrar e escapar tal raridade? 

É realmente uma bênção  estarmos muito bem com alguém, vivermos em plena entrega e confiança e podermos dar as mãos ou abraçar-nos em amor, proporcionando múltiplos efeitos, tais como o equilibrar das polaridades e hemisférios cerebrais e o irradiar bemfazejo para o universo, numa relação conducente à  quietude  anímica e capaz de nos tornar mais sensíveis ao Espírito e ao Amor e simultaneamente à sua manifestação e até desvendação recíproca nos dois espíritos individualizados em corpos e almas que se amam, se apoiam e se estimulam.

Assim, esta intensificação da alma em amor com outrem, e que é similar nos seus efeitos religativos à sua harmonização pela acalmia e interiorizaçao meditativa, é  algo que constantemente nos deveria desafiar a procurar ou a perseverar, para não cairmos na tal medianidade pela qual tantas vezes nos desligamos da união respiratória e psíquica com as correntes espirituais divinas que se derramam a todo momento sobre a humanidade e que a sós, ou a dois, ou a mais, podemos e devemos sentir, invocar, intensificar e comungar. Neste sentido corre o dito do mestre Jesus: "Onde dois ou três se reunirem no meu nome, na minha vibração, em Amor, Eu, o Amor, o Espírito, o Mestre, estou neles..."

Sejamos cavaleiros e cavaleiras do Amor, ou perseverantes Fiéis do Amor, para que tal possa acontecer em muitos seres, para melhoria luminosa da Humanidade...

terça-feira, 5 de julho de 2022

Reflexões sobre as questões, demandas e lutas conscienciais nos nossos dias...

 
Uma das questões que se põe sempre face aos múltiplos ensinamentos psíquicos e espirituais é congraçar a visão materialista da mente, na qual ela é apenas um epifenómeno do cérebro, com a existência de um espírito, seja individual seja universal ou de não-dualidade, que certamente se pode admitir seja tanto em termos de unidade da energia-matéria como da consciência-informação e com a hipótese de nos considerarmos ou sermos tanto mentes como centelhas individualizadas de tal consciência e, portanto, chamados ou desafiados ao discernimento da acção correcta ou justa no dia a dia consciencial e social, face a tanto determinismo e condicionalismo externo, face a tanto conflito, ignorância, alienação e sofrimento.
Se a dualidade e oposição espírito-matéria está constantemente a ser ultrapassada pelo reconhecimento que alguns fazem de que mesmo a matéria dita inorgânica está dotada de consciência, ou que à energia das partículas subjaz uma consciência e que esta é portanto a grande substância base do Cosmos, provinda da Fonte Primordial (Amorosa e Divina), mesmo assim não há dúvidas que existem diferenças de graus de consciência detidos pelos átomos de um cristal de quartzo leitoso, um protozoário, um rouxinol, um cérebro ou um ser humano
Será talvez então exagerado ou despropositado acreditarmos que a realização máxima do ser humano possa ser a sua extinção como consciência individual, num nirvana, num não-ser, mesmo que tal possa ser visto como libertação em relação à ignorância e sofrimento anterior, como querem muitas linhas budistas ou de não-dualidade, para várias delas o mundo, a manifestação, sendo apenas ilusão, transitória, desprovida da presença do tal espírito substante.
Se olharmos para a humanidade, observaremos que mais de 90% das pessoas estão a milhas ou anos de luz de um estado pleno de equanimidade e de libertação e, que mesmo ao longo séculos, pese a grande plêiade de santos e mestres, poucos seres atingiram  níveis de unificação em si próprios e de libertação de desejos e actos no mundo, que possam extinguir-se libertadoramente no fim das suas vidas terrenas.
Mas mesmo que assim fosse, ou seja, por detrás de tal hipótese, espreita-nos outra, a que se prende com as origens e fins da vida humana, nomeadamente se o seres humanos nascem ou vêm à Terra para aprender, para participar, para se unir a Deus, ou para se libertar da ignorância e sofrimento inerentes à manifestação seja terrena seja subtil, e se depois se extinguem, ou se antes continuam ou até reincarnam, como muitos acreditam provavelmente erradamente. E, sabendo-se pouco disto, também as respostas, embora muitas, são pouco firmes ou seguras...
Embora as experiências de morte temporária, ou near death experience, ou de projecção de consciência, dêm já alguns vislumbres teoréticos da sobrevivência da consciência fora do corpo físico, embora os relatos ou doutrinações, com muitas mistificações, que espíritas, clarividentes e mestres apresentam, contenham alguns contributos valiosos, inegavelmente sabe-se pouco, cientificamente, ou seja, com observação cruzada de vários observadores objectivos, quanto  à vida no além (que nos envolve na nossa pluridimensionalidade...) e do tipo de consciência e corpo subtil ou espiritual que sobrevive, pois seja os cinco sentidos seja a mais sensível maquinaria não conseguem captar tais níveis vibratórios, que ficam então no domínio da clarividência, da intuição, iniciação, da mística e do esoterismo, infelizmente com muita mistificação e carnaval.
Onde a investigação tem mais avançado é quanto aos estados modificados de consciência, com os contributos das neurociências e da física quântica, começando a adquirir-se uma visão  mais profunda e exacta da constituição dos seres, do cérebro e da natureza dos fenómenos que nos constituem e rodeiam, embora a subjectividade da experiência da auto-consciência escape sempre à objectivação, pois só cada um é que sabe mesmo quem ele é, ou se sente a si mesmo.
Esta tarefa e demanda do auto-conhecimento essencial não interessa muito aos donos da ciência e do dinheiro, e pesem grupos como os da BIAL, ou do IONS e outros de investigação científica parapsicológica ou de estados modificados de consciência,  temos de ser nós a realizá-la, a sós, a dois ou em pequenos grupos, de facto bem difíceis de se constituir com as afinidades resistentes a tanto factor de desagregação e conflito, que nestes últimos anos se intensificaram fortemente por via da manipulação das narrativas oficiais que se tentam impor opressivamente sobre a humanidade, numa hipotética nova ordem mundial demasiada anti-humanista ou mesmo anti-humana. 
Grandes lutas interiores e exteriores em que estamos pois envolvidos e felizes dos que encontram as almas afins ou a alma-gémea com quem podem aprofundar vivencialmente a demanda do Graal do Conhecimento e do Amor Divinos, com perseverança e vencendo as muitas oposições à grande Obra...
Boas inspirações e frequentes realizações então da sua consciência e corpo espiritual, livres e libertadores! Lux, Amor!

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Madame Blavatsky e os Yogis, por Carlos Cirilo de Machado, o 2º Visconde de SantoTirso. Uma crónica bem humorada.1924.

                                                          

Carlos Cirilo Machado (1865-1919), o 2º Visconde de Santo Tirso, estudou Direito na Universidade de Coimbra, foi Alferes de Cavalaria e muito jovem interessou-se pela filosofia, a literatura, a espiritualidade ("sou espiritualista de nascença, e tenho o espiritualismo agravado pela reflexão"), a política, vindo a ser um jovem discípulo e amigo de Antero de Quental, de quem nos resta uma curta mas valiosa correspondência (duas cartas), por mim já abordada neste blogue. Foi diplomata em Itália, Espanha, Londres, Estados Unidos da América, Bruxelas e Rússia, exercendo com grande qualidade algumas das missões diplomáticas e jurisdicionais espinhosas, nomeadamente contra a ganância inglesa, a incursão do Dr. jameson, no Transvall,  e norte-americana  no caso do caminho de ferro de Lourenço Marques. 

                                      

O texto que transcrevemos, com a ajuda da Cláudia Lopes, é o terceiro dos vinte e nove artigos compilados no livro Cartas de Algures, editado pela Portugália Editora, em 1924, e que tinham sido originalmente escritos para os jornais do Brasil O Estado de São Paulo e O País, onde tais crónicas tiveram grande sucesso pela  cultura, sensibilidade e apurado sentido de humor que Carlos Cirilo Machado manifestava. Aliás os títulos dos artigos mostram bem a sua  funda sensibilidade e a ampla capacidade cognitiva, e como sabia discernir e com verve iluminar as contradições e mistificações, equívocos, paranóias e filosofias baratas ou de massas em que tantos vivem, e destacaremos apenas A ideia de justiça, Da felicidade, Do matrimónio, Da dança, Da música, Do suicídio, Das mulheres, Das crianças, Do jogo, Do alcoolismo, Dos anúncios. Um dos artigos, O Divinitante, destaca-se por ser uma sóbria reflexão sobre a cognoscibilidade e a crença em Deus, temas que sempre interessaram Carlos Cirilo de Machado e que com Antero de Quental os debateu. Interessante, pensei, seria discernirmos o que em alguma destas crónicas teve influência anteriana, já que pelo menos neste último ensaio pressentimos dois passos, um em que parece aludir ao materialismo do dr. Sousa Martins, outro em que realça a incapacidade científico-filosófica para explicar “o espírito ou a alma”: «Porque tudo que sejam células, protozoárias e protoplasmas, selecção natural, luta pela existência, o Logos e o Imanente só nos levam a meio caminho». No fim, porém, do artigo, confirmando a interrogação inicial, ele cita mesmo Antero, pois escreve“não é nem a ciência, a filosofia ou a teologia” que dão o conhecimento da Divindade mas tal «vem da fé. E a fé vem da graça, que é um milagre. Para haver a graça é preciso que haja Deus, e para crer em Deus é preciso que haja graça. É evidentemente um círculo vicioso. Mas, de quantos círculos viciosos eu conheço, é este o mais capaz de produzir virtudes. É por isso que entre os crentes há o tolo que crê porque pensa que raciocina, e há o pensador que reconhece a impotência do pensamento, e que refugia-se na fé consoladora e pacífica [Ou então ora, medita, contempla e inicia-se na gnose espiritual e divina, sob a graça directa ou indirecta, direi eu...].

«Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.»

Foi Antero de Quental quem escreveu isto. Não foi um pensador banal de vulgarização filosófica em folhetos a vintém.
Entre uns e outros - os crentes e os descrentes – há os indiferentes, cujo espírito se engorda com bolota nos montados do Alentejo.» 

Anoto que no seu outro livro de crónicas ou ensaios, De Rebus pluribus, 1923, há três menções magistrais a Antero de Quental e  espero brevemente partilhá-las, comentadas.

Leiamo-lo agora então, nas Cartas de Algures, a propósito da fundadora da Teosofia, Helena Blavatsky e das práticas yoguicas semi-miraculosas, ou talvez mais de fakir, que ela divulgava, apreciadas com bastante humor por Carlos Cirilo de Machado, e que dispensam comentários: 

                                         
                                             Dos Joghi [ou Yogis]

Conta M.me Blavatsky, a pitonissa da Teosophia, que do mesmo modo que

A rosa para ser rosa
Tem de ser de Alexandria
E a mulher p'ra ser formosa
Deve chamar-se Maria

assim também um Yogi, para ser Yogi, tem de ser perfeitamente limpo, não só de espírito, mas de corpo. Esta afirmação inspira-me uma profunda simpatia pelos Yogi, pois há pessoas cujo espírito é perfeitamente imaculado, mas cujo corpo está pedindo os rigores de um banho turco, por se achar fora da alçada do banho ordinário e da espuma de sabão; ao passo que outras, de um escrupuloso asseio corporal, têm almas de suínos. O mais vulgar porém, é encontrar espíritos crapulosos em corpos de suspeita limpeza.
Não sucede isso aos Joghi da Índia, onde M.me Blavatsky bebe a essência da Teosofia, que depois espalha pelo mundo em saquetas e pílulas e artigos nos jornais [ou revistas] daquela religião exótica.
Segundo esta estimável senhora, não basta aos Yogi ter o espírito limpo por dentro e o corpo limpo por fora. Um e outro tem que estar imaculados por fora e por dentro.
A limpeza interior do espírito é uma coisa simples, conquanto não seja vulgar. Quem não tem pensamentos crapulosos, decerto não formula as suas ideias em termos vis – e nisso consiste o asseio interno e externo do espírito. Para o asseio interno do corpo tem a farmacopeia muitos recursos, mas nenhum é satisfatório. Conseguem-no os Yogi recorrendo simplesmente à água.
Eu sempre considerei a água um medicamento perigoso, e estimaria ver nas garrafas em que ela hoje se vende um rótulo amarelo com uma caveira sobre duas tíbias, que é o brasão de armas da Morte, e por baixo em grandes letras pretas o letreiro veneno só para uso externo. A razão do meu preconceito é dizerem-me os sábios que a água é o veículo de vários micróbios – e, portanto, de varias doenças, enquanto a ciência não reabilitar o micróbio. Para ser inocente, a água tem de ser fervida e filtrada, ou então engarrafada, a ponto de deixar de ser água. E neste ultimo caso produz geralmente dispepsias.
Nunca vi peixes morrerem de morte natural, a não ser em bocais de vidro, e esses creio que morrem doidos. Os outros são apanhados em redes, ou então num anzol, quando não preferem, contra as regras do jogo, comer a isca e praticar no anzol operações a que ele não é originariamente destinado, como o prova o seu feitio. A razão disto, a meu ver, é que os peixes empregam a água para uso externo. As pessoas que morrem afogadas, é porque fazem também dela uso interno. Os Yogi, porém, procedem com estas pessoas, cuja prudência tem resultados fatais, e não como, os peixes. Nisso está o milagre. 

Estes santos hindus tem dois meios de purificar o interior. E ambos M.me Blavatsky revela sem pejo, porque não deve haver
pejo de revelar a verdade.
O meio mais natural, ou pelo menos mais compreensível, é
beberem muitas canadas de água, a qual, obedecendo à lei de gravitação universal, providencialmente descoberta por Sir Isaac Newton, quando lhe caiu na testa uma maçã – o que prova que desde o princípio do mundo a maçã teve sempre uma influência decisiva nos destinos da Humanidade, o que não a acontece ao peru – desce rapidamente por o aparelho digestivo, arrastando na caudalosa corrente, todas as impurezas que porventura existam no corpo do Joghi. Compreende-se. A água entra pelo orifício superior e sai pelo orifício inferior da canalização. Não é vulgar, mas compreende-se.
O outro processo é mais maravilhoso. Senta-se o Yogi num semicúpio. E, pela acção do espírito sobre a matéria, a água sai pela boca até o Joghi ficar sentado no enxuto.
Eu, que sou espiritualista de nascença, e tenho o
espiritualismo agravado pela reflexão que vem dos anos e a ignorância que vem do estudo – pois sabe tudo quem nunca estudou nada- acredito piamente na influencia do espírito sobre a matéria. Mas nunca imaginei que ela fosse até ao ponto de, sem bombas nem diferença de nível – antes pelo contrário - converter um homem de bem num repuxo de jardim ou num poço hertziano.
Isto afirma M.me Blavatsky, e, com devota
estupefacão, repetem, crentes, os teosofistas. 

Helena P. Blavatsky com dois teosofistas, em 1884.
Não tentarei explicar o que seja a Teosofia, porque não a entendo, bem, embora haja quem tenha o talento de explicar largamente aquilo que não percebe, e consiga com as suas explicações fazer perceber aos outros, que assim revelam inteligência acima do vulgar. Se a etimologia ainda não levou o destino da genealogia e significa alguma coisa, a palavra, derivada do grego, quer dizer Ciência de Deus. E acho estranho que a Ciência de Deus leve a gente a não saber qual é o lado mais próprio para beber água sem aparelho especial. Esta descoberta de M.me Blavatsky não sei se adianta muito o conhecimento da Divindade; mas é o que eu conheço de mais perfeito em género cambalhotas. Só sei dizer que Teosofia é uma palavra grega, que designa uma religião indiana, professada por uma senhora [ucraniana-russa] em jornais ingleses. Lembra menos uma religião que uma salada russa. E não me refiro à salada russa política, mas à que é feita de legumes, a qual é mais agradável ao paladar e menos indigesta, como o pode ainda testemunhar o malogrado tsar Nicolau II, se são verdadeiras as misteriosas doutrinas teosofistas, em que os mortos vêm conversar com os vivos, de perna traçada e cigarro na boca.
Assim purificados, e estabelecido o predomínio do espírito sobre a matéria, um Joghi pode durante um ano ou mais, estar metido num caixão selado e enterrado, sem comer nem beber, nem gastar roupa e calçado, o que é de um valor incalculável nestes tempos de guerra e de açambarcadores de subsistências e de outros objectos, que são, para quem não é Joghi, de primeira necessidade. Uma família de Joghi deve ser uma coisa extremamente económica.
Um chefe de família, cujos rendimentos não tenham crescido na proporção da carestia da vida, não tem mais que fazer do que meter toda a família num semicúpio. E quando, pelo poder do espírito, houver convertido a mulher e os filhos em outros tantos geisers, faz enterrar-se a si e à família inteira, sem dar parte a ninguém alegando para essa falta de atenção o estado de consternação em que se acha; e determina em testamento que desenterrem tudo quando estiver assinada a paz e restabelecido o preço normal dos comestíveis, dos vestíveis e dos calçáveis. E durante esse tempo não se rala. Terminado ele, volta toda a tropa à vida ordinária, com o capital acumulado, e tendo até recebido, se deixou um procurador honesto, o seu seguro de vida. Não me consta que nas apólices de seguros esteja descriminada a morte temporária. Devo, porém, dizer que esta imprudência me surpreende nas companhias de seguros, que, para serem dignas de crédito, se seguram a si próprias antes de mais ninguém. 

Há muita gente que não acredita nos milagres de Lourdes, e acredita nestas bombas espirituais, que são mais difíceis de fiscalizar e não são mais fáceis de compreender. Para certos milagres incontestáveis, os sábios acharam a explicação natural e óbvia chamando-lhe auto-sugestão. Eu sei perfeitamente o que é um milagre. É a tradução de vocábulo miraculum, que quer dizer coisa admirável, porque é incompreensível. Está cheio de milagres o mundo, e como está cheio de milagres, está naturalmente cheio de superstição e crendices. As crendices políticas são as mais numerosas, e os curandeiros políticos são legião. Estes curandeiros livram com encantamentos e palavreados ás multidões que sofrem de todos os seus males, e têm pastilhas para tirarem as nódoas sociais. Tudo isto são miracula. Todavia, se toda a gente sabe pouco mais ou menos o que seja um autocrata e um automóvel, ainda não encontrei quem me explicasse cabalmente uma auto-sugestão. Que sejam, pois devidos à piedade da Virgem, que apareceu a Bernadette [Soubirus], ou á mágica do vocábulo, que apareceu aos sábios, os fenómenos de Lourdes não deixam de ser milagrosos. Não me admira portanto, o caso da lavagem dos Joghi contado por M.me Blavatsky, mas custa-me a acreditar na sua veracidade, enquanto não vir com os meus olhos o fenómeno da conversão do espírito num motor de bomba hidráulica. O caso mais parecido que eu conheço é o de um amigo que, em que se sentando numa pedra fria, tem uma constipação de cabeça. Mas não lhe sob a pedra à cabeça nem a deita pela boca fora [Caso de um pseudo-guru indiano actual que deita ovos de ouro pela boca]. É portanto um caso muito menos palpitante. Não sei bem o caminho que leva a auto-sugestão, aliás lembraria que seria devido a esta causa, cuja explicação os sábios entendem tão bem, embora a minha ignorância curiosa 
a não penetre.
O que me faria meditar, se não me visse obrigado a pensar em
outras coisas menos importantes, mas mais urgentes, é que a gente que acredita nas operações inversas dos Joghi e nos escritos de M.me Blavatsky, não crê nos milagres de Lourdes, nem nos dizeres dos quatro Evangelistas, nem nas Epístolas do Apóstolo S. Paulo. No género epistolar, preferem acreditar nas epistolas das suas namoradas. Ele há gente para tudo!

Eu nunca fui a Lurdes e nunca fui à Índia. Acreditar nos milagres da Virgem Santíssima é uma questão de fé. Os milagres dos Joghi são fenómenos semelhantes e para crer neles é preciso o mesmo estado espiritual. Mas neste caso da lavagem interna dos Joghi pelo processo inverso, em vez de monosílabo português, eu preferiria empregar o vocábulo italiano de duas sílabas, que designa a mesma beatitude das almas cândidas.» 

Saibamos então discernir bem o que pode verdadeiramente adiantar-nos na realização espiritual, sem cairmos em mistificações nem alienações, e com algum humor libertemo-nos de fanatismos e credulidades. E possa o monosílabo que mais utilizemos ou vivemos, seja o Fé, o dissílabo Fede, ou o Aum ajudar-nos a estabilizar a mente e abrir-nos mais aos raios amor e de luz do espírito e da Divindade. Pax, Lux, Amor!

domingo, 3 de julho de 2022

Jorge Ferreira de Vasconcelos. Um humanista e cavaleiro do Amor. Contributos para a sua compreensão e valorização

Escrito já há uns anos, em 2015, aquando do Colóquio Internacional Jorge Ferreira de Vasconcelos, realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, este texto que não chegou a ser ultimado a tempo de ser publicado nas Actas, já que a minha intervenção fora oral (encontrando-se no Youtube), resolvi agora em 3 de Julho de 2022 ultimá-lo, como simples contributo para o conhecimento da vida, pensamento e obra de tão notável humanista e dramaturgo português...
Se nos interrogarmos sobre qual era a visão do ser humano de  Jorge Ferreira Vasconcelos (1515-1585), que cursou Direito em Coimbra e exerceu cargos na Administração Pública, casando e tendo uma filha e um filho, este morrendo em Alcácer Kibir em 1578, diremos que encontramos bastantes indicações que consubstanciam a de um ser de origem divina, constituído de corpo, alma e espírito, perfectível, animado de uma natural vontade de alcançar a verdade, realizando tal por diversos meios, donde se destacam a aprendizagem, o estudo e a experiência, o sofrimento, a virtude e a paciência, o diálogo ou conversação, o amor, a contemplação e a liberdade, pois como nos diz corajosamente em tempos de começo inquisitorial: "Sem liberdade todo o gosto é desajeitado" ou ainda "Amor vence todas as coisas em força e muito mais em gosto".
No Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, uma das suas obras mais profundas e animadas do espírito dos Cavaleiros do Amor, escrito em 1567, já depois da Inquisição e a Censura estarem em pleno funcionamento, e já depois das suas obras anteriores terem entrado no Índice, afirma a excelência da demanda livre da verdade pois “a educação excelente consiste num conhecimento de coisas divinas e humanas a príncipes sobre todos necessário, que não se alcança senão lendo e vendo muito.” Ou ainda "pouco podem as forças corporais; no espírito está o vigor do homem..., e pois este me obriga eu confio, que ele me leve a bom porto." 
Ou ainda como reafirma mais à frente, e utilizamos a 2º edição, de 1867 (e anoto que a 3ª edição, de 1998, tem um prefácio anti-cavalaria espiritual): “Ca [porque] o homem nasceu livre, dotado de tal entendimento, que compreende ao mesmo homem: o qual compreende tudo, e foi-lhe dado para reparo e arma defensiva e ofensiva o livre alvedrio, que pacifica, concorda e vence tudo, quando se dispõe para seguir a bandeira da razão. Donde se diz "O sabedor domina as estrelas; e de si mesmo procedem também os seus defeitos”...
Esta é um linha claramente humanista espiritual, diremos mesmo erasmiana (sábia e fortemente afirmada na polémica de Erasmo com Lutero), a da valorização do livre arbítrio e da individualidade humana e logo contra determinismos, fatalismos e censuras, tal como na parte final do Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda reafirmará, no seu estilo terso e proverbial: «Corpo mortal e em tormento/ imortal o pensamento...»
Esta ideia de que há um caminho árduo a trilhar-se e que são necessários mestres e guias para melhor discernirmos e nos elevarmos é expressa por mais de uma vez, nomeadamente no cap. XXXVI onde medita sobre a diferença da Natureza quanto aos animais, logo preparados para a vida, e os humanos onde «se mostra tão escassa que por tempo longo, e experiência larga, trabalho contínuo, pouco e pouco, e com grandes quebras lhe vai dando notícia do mal e do bem, sem acabar em todo o discurso de sua vida de subi-lo no ponto alto do puro juízo donde vem, que nenhuma alimária nascendo mais inábil; parece que como nasce envolto em simpreza nunca acaba de se isentar dela (...) Sentindo pois esta falta da natureza humana, os Poetas, de claro juízo, e peregrino engenho, pretenderam dar guias aos homens, e daqui veio Homero escrever a peregrinação de Ulisses e Virgílio o de Eneias, como desenho e baliza do que o varão heróico deve seguir, e sobre todos se extremou Amadis de Gaula. Grande roteiro para nobres príncipes. Este seguiu o cavaleiro das armas peregrinas, e todos os da távola cada um como lhe coube a sorte. (...) E eu vejo agora que sois um dos esforçados do mundo»
 O que no Renascimento foi valorizado como a prisca teologia, a philosophia perenis, a continuidade da Revelação e do Conhecimento, encontramos várias  vezes afirmado, e ousadamente pois a Inquisição e  em parte a Reforma e a Contra-Reforma tinham começado o seu reino opressivo.
Assim o caminho para a Verdade é uma demanda esforçada, humilde
e contínua, e para manter a chama dela se aduzem nomes de grandes filósofos ou sábios, como Orfeu, Platão, Sócrates, Pitágoras, Astarxarxes, Ciro, Cipião, Séneca, e se Deus, o Governador do Mundo, a Prima Causa, a Distribuição do Mundo, é frequentemente evocado em ditos, citações ou mesmo diálogos filosóficos, já Jesus e os santos pouco são citados, tal como escassamente o Espírito Santo,  dando assim a entender a sua adesão à corrente humanista e erasmiana de "união" entre a cultura clássica (e não só ao incluir com frequência a Persa) e a cristã ou, como diz a "enxertia" delas, como também a uma certa linha crítica da dogmaticidade católica e de algumas das suas práticas correntes, nomeadamente a sacramental ("casaram-se numa lapa", por si mesmos, sem cerimónias), e que na época tinham sofrido já os embates do humanismo libertador, desde os tempos de Lorenzo Valla (1407-1457, com as suas Anotações ao Novo Testamento e os 6 livros Da Elegância da Língua latina, bem apreciado por Erasmo e que Ferreira de Vasconcelos cita), os dos místicos e beatas (por vezes demasiados ligados aos conversos hispânicos e a formas muito despidas dos sacramentos). Ora a corrrente reformista e protestante, acabaria por gerar a Inquisição e a Contra-Reforma que se abateram com particular empenho na Península, originando as desventuras de tantos escritores e pensadores e suas obras, tal como Jorge Ferreira de Vasconcelos bem conheceu..
Ao encontrarmos na sua obra múltiplos passos nos diálogos em que emergem o destemor da morte e a sua preparação natural em vida, o pôr-se em causa o purgatório e os meios de aplacar ou diminuir as suas penas, o criticar da pretensa superioridade  dos frades e clérigos
e bem como dos seus defeitos, um certo menosprezo das orações aos santos e uma familiaridade algo valorizadora das livrarias e saberes secretos, mágicos e astrológicos, somos levadas a discernir em Jorge Ferreira de Vasconcelos uma clara estratégia de pôr em causa posições ortodoxas, dogmáticas, inquisitoriais, no fundo controladoras do ser humano e do seu livre arbítrio, algo que hoje verificamos de novo estar a verificar-se, seja nas narrativas oficiais dos média, seja nas redes sociais aparentemente livres mas tão espionadas, controladas e opressivas.
A corrente mais avançada na época era claramente a Humanista, e já não a Escolástica ou a autoritária (a sorbónica, como lhe chamava Erasmo), brilhando com o seu conceito da dignidade e de perfectibilidade humana, e a de o Homem ser o microcosmos por excelência do Macrocosmos, ordenado pelo e para o Bem, o Belo e o Verdadeiro, que estavam tanto dentro de si, como na comunidade, no Universo e na Divindade, e que está acessível a nós por uma pedagogia acertada enquanto Intelecto Primordial, Juízo Puro, Logos, Palavra. E que se manifesta também enquanto Providência: “Gostosa sorte é a das pessoas que a divina providência escolheu e destinou para por elas distribuir seus benefícios ao mundo...”
Esta fé no Dharma, Providência ou Ordem do Universo aparece afirmada na linha da Cavalaria do Amor em numerosas passagens, tal como esta:
«Pondo a confiança em Deus que deu ao homem ser superior das coisas do mundo foi-se a ele com a espada feita e o seu escudo adiante...
São na realidade muitas as passagens em que Jorge Ferreira de Vasconcelos afirma a Tradição Perene, no Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, logo enaltecida no valioso Prólogo  que
é dedicado a D. Sebastião, então uma criança,  ao mencionar a tradição iraniana por isso “eu seguindo o costume dos Persas que não se apresentavam ante a Majestade Real sem oferenda,” apresentando em seguida a genealogia "da nobre Ordem da Cavalaria" que tem a sua origem  no  Baco índio, filho de Júpiter, o qual assim a inicia:« Amigos e estimados companheiros. De hoje avante vos faço livre de todo o tributo e servidão. Quero e mando que vos chameis Heróis Veteranos, obrigados a manterdes sobre todos lealdade, sustentar verdade, defender e amparar as fracas mulheres. Por todas as regiões vos concedo passagem franca, habitação segura, dos Reis tereis assentamento e podereis por vós mesmos castigar a quem de palavra ou obra vos ofender e anojar».
 E de novo no cap. XIX,  valorizando a sabedoria pagã que com os seus deuses está intimamente ligada com a cristã, esta vindo coroar aquela, aconselha bela ou afortunadamente: «Diz um poeta gentio, deixa ir a tua mão por onde os ventos ta levarem, que mais amigos são os deuses do homem, que ele mesmo de si.»
Também no cap. XXX vemo-lo reafirmar os valores universais da nobre ordem da Cavalaria, nomeadamente a da força da vontade toda poderosa, num não cristão, pois «Brandabur inda que pagão era muito inteiro de grande saber e virtude, e dobrava a vontade a toda a razão por mais caro que lhe fosse...»
Esta valorização da religião do dever, na Índia chamado o Dharma, e chegará a referir os Naires, os guerreiros ou ksatryas indianos do Malabar, aliados dos portugueses, é ainda enunciada a partir do espírito, da individualidade livre, esforçada e amorosa: «donde o desenho do nobre espírito seja sempre fazer o que deve, e aja-se por satisfeito com o bom nome que consegue, e que sempre acompanha os bons feitos.»
Após séculos de lento avanço cultural e científico, a descoberta da imprensa nos meados do séc. XV, o começo dos descobrimentos marítimos e o acesso dialogante a múltiplas fontes de conhecimento, nomeadamente na Europa culta e humanista, onde tantos letrados portugueses estagiaram e se desenvolveram, vieram permitir pôr-se em causa justificadamente, porque «a experiência era madre de todas as coisas», muitas concepções antigas, nomeadamente as contidas na ciência, na filosofia, na religião e na ordem social.
O ser humano, e em especial os letrados, guerreiros e marinheiros, levantaram  a face ao Céu, acreditaram mais nas suas virtualidades e iniciou-se um grande desabrochamento do saber que pôs em causa a  autoridade da Igreja Católica e do papado em Roma, não só pela arrogância, superficialidade e superstições, como também por certa ferocidade e cupidez, tal a da venda de indulgências e as extorsões inquisitoriais.
As críticas que encontramos em Jorge Ferreira de Vasconcelos, e que respiram esse grande sentimento de participar numa renovação da humanidade, embora não sendo muitas (e sabemos hoje que houve bastantes cortes da censura na sua obra) são bastante significativas e elas são claramente afins do Humanismo em geral, seja na sua vertente filológica, pedagógica, histórica, cultural e religiosa como também filosófica, esta na sua afirmação das duas vertentes principais, 1º de auto-conhecimento: o mal vem da ignorância da pureza do coração e do que é o bem e o mal:  (“o animal mais inimigo do homem é o mesmo outro homem, por o desconhecimento que tem da pureza de seus corações: ca [porque] o bem e o mal conhecesse nas coisas, em que consiste, e o verdadeiro e o falso na alma, em que se encobre”, e 2º da auto-determinação, tão repetida na condenação do sujeitar-se ao outro, ou ao seu estado e opinião, ou ainda em relação aos fados, dependendo estes dos nossos pensamentos e esforços e estando o sabedor acima da influência das estrelas.
Contudo Jorge Ferreira de Vasconcelos  desenvolvera bem a visão da interdependência dos seres, afirmando-a frequentemente, tal quando cita e transcreve Cícero: «o que dizia Platão ser bem dito, que não nascemos para nós sós. Mas parte pera a pátria, e parte pera os amigos, e assim dizem os Estóicos que tudo o que se gera na terra é pera o uso dos homens, pera que uns aos outros pudessem aproveitar-se».
Embora aceitando a transcendência e a Providência Divina, aqui e acolá citadas em provérbios populares,
Jorge Ferreira de Vasconcelos valoriza mais a imanência do espírito e a sua manifestação e conquista pelo esforço e a virtude, a cavalaria e a contemplação, havendo ainda uma forte consciência e sensibilidade ao poder do amor e aos seus efeitos e sinais psico-somáticos, algo que podemos considerar uma característica da Tradição espiritual portuguesa e dos seus fiéis do Amor.
Face a uma religião que apresentava um pai punitivo e um filho sofredor e vencido,
Jorge Ferreira de Vasconcelos, recorrendo aos filósofos antigos e à sabedoria perene, acaba por valorizar a assunção espiritual e guerreira, que traz ao de cima o resplendor da glória, seja no contentamento simples do amor e da sua branda conversão, e na vida simples e não cobiçosa, seja ainda na cavalaria esforçada e amorosa.
Desta valorização do espírito humano e da sua vontade e amor resultavam novas mentalidades e logo realizações sociais, já que tudo circulava então por uma Europa relativamente unida numa idade de Ouro, tal como Erasmo e outros humanistas sentiram e clamaram durante alguns anos quando a Paz florescia nessas primeiras décadas do séc. XVI.
No princípio de 1524, Erasmo concluía as Paráfrases aos quatro Evangelhos, dedicando a última ao rei de França, Francisco I, onde tanto confessa como espera que os quatros monarcas unidos em simetria com os quatro Evangelhos, tenham também os seus corações unânimes no espírito de concórdia evangélica, ou que a divulgação crescente dos livros sagrados nos leigos tenha efeitos positivos purificadores e restauradores nas comunidades, e ousadamente critica os conflitos entre os povos cristãos e todos os que aconselham a guerra.
Ecos desta revolução humanista podemos ouvir num dos opositores portugueses de Erasmo, Aires de Barbosa, no seu Antimoria em que se alarma porque o Elogio da Loucura andava entre todas as mãos. 
Mas, ao contrário, esse destemor perante os papões do Cristianismo, sejam eles o diabo, a magia, a Bíblia traduzida em vulgar língua ou o criticar os frades ou as indulgência, está muito presente na obra de Jorge Ferreira de Vasconcelos, e por isso não nos admiremos de a sua obra ter sido bastante censurada ou mesmo feita desaparecer como sucedeu quanto ao Tratado das Sortes e ao Diálogo da Parvoíce.
Assim, na sua valiosa Aulegrafia (pág. 80 e utilizamos a edição anotada por António Machado de Vilhena, dos anos 60) ouvimo-lo dizer: «Daqui lavo as mãos destes feitos, mas eu fico que vós me nomeeis, que o demo sempre me fez adivinhas nestas coisas, já me vós ouvireis de crer para bem.» e esta relação muito à vontade com o demónio, tão mitificado e aproveitado pela Igreja Católica, dá a entender que
Jorge Ferreira de Vasconcelos, via mais nele o resultado de concepções humanas supersticiosas ou atemorizadoras do que um ser exterior, e nesta citação elevando o demónio a inspirador das artes ocultas ou da clarividência ou adivinhação, põe-nos antes diante da sua aceitação de haver capacidades supra-discursivas ou supra-racionais no ser humano, e que não deveriam ser diabolizadas, negativizadas.
Noutras vezes é a facilidade em aceitar a presença dos espíritos, a comunicação entre os vivos e os mortos, algo que a Igreja reprovava, não permitia e diabolizava. Numa amostra disso valiosa diz-nos, na pág. 110: «Andai por cá, vamos ao deserto onde possa gritar, se quereis que não arrebente. Dou-vos minha fé que outrem podia estar de pior veia do que eu: parece que falava de mim algum espírito, segundo estive bravo: dera quanto tinha porque me ouvireis». Há aqui como que a afirmação do ser humano conseguir ultrapassar-se, inspirar, ser possuído pelo furor poético, ou o amoroso ou o profético, tão bem doutrinados por Marsilio Ficino que
Jorge Ferreira de Vasconcelos conheceria certamente pelas suas traduções de Platão ou mesmo de Plotino.
Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano
Entre nós um elo importante da cavalaria do Amor foi o infante D. Pedro das Sete partidas, morto tragicamente em Alfarrobeira em 1449, e que escreveu nas Ordenações Afonsinas uma bela definição de milícia e cavalaria, que já citei no Livro dos Descobrimentos do Oriente e do Ocidente: «Cavalaria foi chamada antigamente companhia de nobres homens que foram ordenados para defender as terras e por isso lhe puseram o nome de Milícia, que quer dizer, companhia de homens duros e fortes e escolhidos para sofrer grandes medos e trabalhos e lazuras por prol do bem comum».
A valorização do espírito da cavalaria portuguesa vai ser excelentemente realizada no final do Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, no cap. XLVI, com a descrição do "Torneio ordenado pelo Príncipe Dom João, filho de D. João III" e onde "três fadas, Cloto, Lachesis e Antropos" cantam versos histórico-proféticos: «De cujo estandarte com o sinal da redenção humana será alferes mór da redondeza./ (...) De um Fénix que vivo ardendo/ logo outro Fénix nasceu/ por Deus a Portugal dado/ para ser mais exaltado/ que Israel por Salomão/ tais prognósticos nos dão/ os aspectos celestiais/ e seus principio Reais,/ como foram trabalhosos/ assim hão de ser famosos/ os meios e fins da vida/ que longa lhe é concedida/ ca o que foi sopesado / dos céus sempre foi estremado/ tão benignas as estrelas/ lhe serão, que suas velas/ no mundo sejam espanto/ e ele outro Afonso santo/ que o Reino renovará,/ e os termos lhe aumentará/ muito melhor que eu canto/.»
Podemos dizer que na obra de Jorge Ferreira de Vasconcelos sobreleva o ensinamento do Amor, tão elevado e valioso quão disperso e multifacetado ( e ainda não recolhido nem realizado),  em todos os seus livros altamente sentido e expresso, tal como podemos ver no passo da Aulegrafia p. 87 em que Dinardo é um ilustre cavaleiro do amor: «para ele heresias são desconfianças do amor, ingratidão. - Ah senhora, não fazeis heresias; eu para vós ingrato, quando só de me abrirdes esses olhos cuido que triunfo do mundo? …. “Ora como isto assim seja, e vós senhora sois quem eu contemplo, e o meu ídolo, crede de mim, que vos sacrifico esta alma apurada no amor que se vos deve...»
Deparamo-nos aqui com afirmações claras da cavalaria do Amor, tal a divinização do ser amado, denominado mesmo ídolo, que surgindo tão naturalmente,  não deveria ser muito agradável ao "Santo" Tribunal da Inquisição. «Para isso sois vós senhora muito discreta, e eu tão enleado, que nada do que sinto sei encubrir-vos: lanço a alma, e estilo-me de desejos de vossa conversação: velando ardo nestes pensamentos dormindo não me consentem repouso algum, aborreço-me a mim mesmo por o pouco que valho convosco...»
Uma tentativa moderna de adivinhar a vera efígie de Jorge Ferreira de Vasconcelos
 Há toda uma teoria do amor humano, galante, profundo, a ser transmitida já em plena época reformista puritana e tanto católica como protestante e assim ouvimo-lo mesmo clamar, na p. 89 o seu desprezo pelos ricos e riquezas, «vão bugiar os Fucaros, e quanto trato há em Trapizaonda....Não há coisa que chegue a isto, é manjar de alma falar com pessoa discreta, e galante, e acha-se raramente... 
Afirma assim o valor supremo do amor, acima do dinheiro e cristaliza-o e apura-o no Memorial, verdadeiro breviário do amor puro. 
Oiçamamo-lo a teorizar um pouco, na pág. 314 «sendo o amor um desejo de lograr coisa boa», ela explica-se numa linha mágica e neo-platónica como uma comunicação de fluidos e uma operação interior anímica, explicando como é o namoro por fama: «tanto que à nossa notícia vem de ouvidas alguma coisa digna de estima, correm logo os olhos invisivelmente para a contemplação, e na imaginação a vêm e compreendem, formando na sua alma a sua Ideia e figura, com que está esperta e desejosa de a ver por efeito.»
Esta valorização do Amor, através da operação interior da imaginação e contemplação, tão ficiana, inclui contudo a sua concretização no amor sexual e o assim afirmará corajosamente face ao dualismo católico, considerando-se como um degrau para o amor divino, tal na pág. 315, «o amor é perfeito e não pode ser mau. Porque procede de Deus em que não pode haver senão bem, e por amor participamos o bem de Deus e a sua formosura de que a humana é retrato: por amor alcançamos conhecimento de Deus, por o que não somente é bom mas necessário: amor ata as almas em conformidade, e sendo amizade boa, melhor é o amor que a causa: amor levanta os ânimos as grandes coisas que por ele se fazem (…) sem o amor não se conheceria o ódio, como pela paz a guerra...»
Saibamos passar pelo ódio e pela guerra, o mais rapidamente possível, para chegarmos ao Amor e à Paz...
Dante, guiado pela sua alma gémea e Beatriz beatificante, contempla o Sol do Amor Primordial