quarta-feira, 10 de abril de 2019

Imagens e faces de Anjos: consciencializações, danças, orações e acções com eles. Com uma poesia, de Pedro Teixeira da Mota

Os seres que gostam dos Anjos, e admitem que eles são nossos companheiros bem subtis, devem de quando em quando recarregar-se de imagens, orações e diálogos que facilitem à nossa alma vibrar mais em ressonância ou consonância com eles e com o mundo espiritual e divino.
Ah, se todos os dias pudéssemos contemplá-los algum tempo, certamente que estaríamos bem mais harmoniosos, os nossos centros anímicos mais desabrochados, mais alegres, menos tensos, menos receios, mais confiança.
Contudo, muitos de nós habituaram-se a estar sempre ocupados nos seus projectos e actividades, ou na suas lutas contra o que do exterior os oprime, que pouco tempo conseguem deter-se e terem-se de mãos e corações dados com os seus Anjos da Guarda. Todavia, quanto suavidade e amor eles nos podem transmitir...
                                     
Todos os dias e momentos são bons para nos religarmos a eles, para nos subtilizarmos e alegrarmos, dançarmos ou orarmos  e deixarmos sair de nós medos, cansaços e desânimos, e trazermos mais luz angélica para as nossas vidas, tornando-nos mais dispostos e fortificados para perseverar no caminho do Bem.
A todo momento podemos erguer o cálice do nosso coração e da sua aspiração à Divindade e à nossa harmonização justa com o planeta e a humanidade. E os anjos assistem-nos em tais esforços e actos que contribuem para o erguer do templo que liga a terra e o céu em sabedoria e amor.
Certamente que nem nos vemos como espíritos nem temos em geral a sua clarividência mas podemos estar certos que tal fogo espiritual a arder em nós é purificador e iluminador e que volta e meia em sonhos, intuições ou visões seremos fortalecidos ou assegurados de tal comunhão. 
É verdade que o mistério do nascimento da Divindade em nós pode ser aprofundado mais nos momentos solsticiais e equinociais, natalícios e de fim do ano, mas ainda assim tal pode ser realizado a aqui e agora, neste É a Hora, do agora, nomeadamente meditando com mais intensidade e perseverança e querendo estar fortemente abertos às inspirações e comunhão dos santos e santas, mestres e Anjos e Arcanjos...
                               
Uma das mais belas simbólicas representações do Natal e portanto simbolicamente do nascimento espiritual em nós é sem dúvida a de Sandro Botticelli, actualmente na National Gallery de Londres.
Nela se realça tanto o dinamismo do mundo espiritual, como a existência de grandes seres ou mestres, como Jesus, e de Anjos, mais femininos ou mais masculinos. E ainda como a transmissão da Luz Divina pelo Anjo ao ser humano é fundamental.
Estarmos conscientes desta escada hierárquica, desta dança de espíritos celestiais ou desta descida da Luz Divina, que   chega até mesmo aos animais mais simples, é bem importante, pois ela de certo modo aponta para a presença de algo de divino em tudo, ainda que esta dimensão esteja ainda pouco clarificada.
  Ora cada um de nós pode ser espírito templário, isto é, pode tornar-se templo para  o poder e o amor de Deus entrarem mais em si, e portanto em comunhão com os anjos,  podermos orar assim:
- Pedimo-vos, ó Divindade, ò Mestres,ó Anjos, que a vossa energia mais apropriada penetre neste quarto e  casa e expulse ou transmute todas as vibrações desarmoniosas, obscuras ou inimigas. Que os  Anjos se sintam bem aqui, e nos guardem e iluminem em saúde, paz e sabedoria, para que o influxo criativo da vossa bênção ou subtil presença esteja sempre fecundo em nós e a volta de nós, Ámen!:
                                 
Oh Divindade, oh Faces Divinas
Que estais no mais alto da visão, 
Oh Anjos, nossas subtis companhias,
Que nos sorris nos olhos e corações, 
Ouvi a nossa sede de amor justo, 
E enchei-nos da vossa presença,
Inspirando-nos a bem amar 
Quem nos rodear e necessitar,
Hoje e sempre, convosco, ámen.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Tolstoi e Konishi Masutarô (1862-1940), no "Tolstoi et le Japon", de Brigitte Koyama-Richard.

As relações entre génios, pensadores e artistas de vários povos é um campo sempre fértil à investigação. A interacção, por exemplo, entre Tolstoi e vários escritores e pensadores japoneses ocorreu prolongadamente e foi bem estudada, e com coração e sentimento descrita, por Brigitte Kyama-Richard, no seu bem documentado (embora só com duas imagens) Tolstoi et le Japon, La découverte de Tolstoi a l'ère Meiji, impresso em 1990 pelas Publications Orientalistes de France, na colecção Bibliotheque Japonaise, dirigida por René Stieffert, já com umas dezenas de boas obras dadas à luz. Vamos abordá-lo quanto a um dos tolstoianos japoneses ...
 Brigitte  Kyama-Richard, autora ainda de várias obras sobre o Japão, neste seu livro, depois de uma breve introdução às relações diplomáticas entre a Rússia e o Dai-Nippon, mostra-nos como  a imprensa japonesa seguia, descrevia e via Tolstoi e analisa os modos de relacionamento dos intelectuais da era Meiji com Tolstoi.
Neste breve artigo vamos referir o primeiro japonês estudado, Konishi Masutarô (1862-1940), que esteve sete anos na Rússia, aprendendo em Kiev e na Universidade de Moscovo, aqui com Nikolai Grot (que fundara um grupo de estudos filosóficos e psicológicos onde participava o brilhante filósofo Vladimir Soloviev, em baixo com Tolstoi, numa pintura de L. Pasternak),  com quem se deu muito cordialmente, tanto mais que conhecia bem, apesar de ser cristão, os filósofos chineses, sendo por isso encarregado por ele, depois de traduzir os Preceitos de Confúcio,  de abordar Lau Tseu e o seu subtil ou místico Tao Te Ching, um livro de cabeceira de milhões de seres...
 Tolstoi, que já conhecia razoavelmente a filosofia Oriental, sobretudo chinesa mas praticamente nada da japonesa, soube da tradução que Konishi iniciava em 1892 e quis conhecê-lo. E assim se deu um encontro ou reencontro importante: Tolstoi então com 68 anos, sua mulher Sónia com 46, receberam-no muito cordialmente na casa que tinham em Moscovo,  e Tolstoi convidou-o a traduzirem a dois, pois ao conhecimento de chinês de Konishi ele acrescentaria as versões alemães, russas e francesas que possuía, pois era grande o seu entusiasmo por Lau Tseu, lamentando-se até de não ter aprendido o chinês. E assim trabalharam lado a lado quatro meses e a obra foi dada à luz. 
Konishi Masutarô, quando regressou ao Japão em 1893, traduziu Tolstoi, nomeadamente a Sonata a Kreuzer, com revisão de Ozaki Koyo, e escreveu vários artigos sobre ele, tais como A concepção do mundo de Tolstoi, e A propósito da "religião" de Tolstoi.
 O efeito anímico tolstoiano fora forte em Konishi, como este lhe confessará em carta de 1896: «Para ser franco, o nosso reencontro e o que me ensinou, transformaram completamente o meu entendimento do cristianismo. Todos os dias, pensando em vós, experimento uma alegria espontânea grande (...)». 
Sabemos que Tolstoi deve ter partilhado com Konishi as sua principais críticas aos ensinamentos da Igreja, tais como a que a Bíblia e o Genesis confundem Deus, ou mesmo o Deus Pai, com um deus invejoso e maldoso; que não houvera redenção da humanidade com a morte dita expiatória de Jesus, pois tudo continuava na mesma, para além de que tal crença tornava menos activas no bem as pessoas. Não acreditava na Trindade ou mesmo na Divindade de Jesus, na sua ressurreição, ou na ridícula ressurreição dos mortos. Nem nos milagres, nem na Eucaristia, nem nos sacramentos, criados para manter o domínio sobre os crentes e explorá-los. Isto tudo abalara certamente a fé de Konishi e algo aos poucos foi fermentando dentro dele, como ele próprio o confessa.
E continuava na sua carta a Tolstoi: «Por aqui, vou escrevendo sobre si e sobre o modo como considera o Cristianismo e a Vida e traduzindo as suas obras. Já traduzi: Os dois velhos, Onde está o amor, aí está Deus, a Sonata a Kreutzer. Actualmente traduzo a Morte de Ivan Illich, e a Religião e Moral, e chamam-me tolstoiano. Posso declarar-lhe que tem por cá muitos admiradores.»
 A resposta uns meses depois de Tolstoi é muito elucidativa da sua visão moral e espiritual do Cristianismo, para ele basicamente a religião melhor afirmativa do Amor, embora iludindo-se sobre o seu futuro no Oriente: «Alegro-me que as suas opiniões sobre o Cristianismo Ortodoxo modificaram-se. Estranhei sempre e não queria crer que um povo tão inteligente e pouco supersticioso como o japonês, pudesse aceitar e acreditar nesses dogmas absurdos que constituem a essência do cristianismo, tanto católico como ortodoxo e luterano ou evangélico. Pelo contrário, sempre pensei que os povos japoneses e chineses não poderiam deixar de aceitar o verdadeiro cristianismo, pois só ele dá a resposta às grandes questões da vida que confrontam todos os seres e apela a uma solução que nem o Budismo nem o Confucionismo podem oferecer.
Os mestres da Humanidade, em todas as épocas, pregaram a fraternidade humana, mas só o cristianismo mostra a via pela qual é possível chegar até isso. Traduziu algumas obras minhas como a Sonata a Kreutzer e outras,  mas gostaria bem mais que o público japonês se familiarizasse com o verdadeiro cristianismo, tal como eu penso que o seu fundador o concebeu. Expus tal, o mais claramente que me foi possível, no meu livro o Reino de Deus está dentro de vós [reproduzido em baix0 o frontispício da 1ª edição, 1893.]. Penso que este livro, ou um resumo dele, interessaria aos japoneses e mostrar-lhes-ia que o Cristianismo não é um tecido de narrativas miraculosas, mas uma apresentação rigorosa do princípio da vida humana que não conduz nem ao desespero nem à indiferença, mas a uma acção moral mais bem definida», nomeadamente a da prática do Amor e a resistência não-violenta à iniquidade ou mal  do sistema político, económico e religioso. 
Anote-se que estes princípios não serão considerados válidos por Lenine, seu admirador literário, nem aplicados na revolução russa mas já serão posteriormente adoptados pelo Mahatma Gandhi e co-relacionados com os três pilares do seu movimento: satyagraha, força ou firmeza da verdade, e ahimsa, não-violência e swaraj, auto-governação, e impulsionarão a libertação da Índia da opressão colonial inglesa.
 Uns meses depois  enviará mesmo um exemplar da sua selecção criteriosa  dos Quatro Evangelhos, com indicações das partes mais importantes a ler e a eventualmente traduzir e divulgar. 
Era uma revolução no Cristianismo católico e ortodoxo que Tolstoi realizava com o seu Cristianismo verdadeiro, e com essa sua versão do Novo Testamento, e por isso não admira que o Sínodo ortodoxo de 1901 o excomungasse, obrigando-o a uma fulminante resposta.
Será em Setembro de 1909 que Konishi regressa à Rússia e a Tolstoi, encontrando-o em Moscovo bastante envelhecido e bastante renitente em aceitar seja as investigações psicológicas ou psíquicas que ele fazia, seja o valor das traduções da Sonata a Kreuzer e outros contos, dizendo-lhe mesmo: «É uma pena traduzir tais textos escritos para camponeses e do que não se pode esperar grande proveito. Se quereis verdadeiramente traduzir algo de valor, gostaria que traduzísseis o Círculo de Leitura, e o Caminho de Vida, que se dirigem a um público bem mais alargado.»
Jaime de Magalhães Lima, na Advertência ao seu livro de 1889 Cidades e Paisagens: -«De resto, quanto ao modo de viver de Tolstoi só repetirei que me merece a mais ilimitada admiração. Compreende-se e admira-se o homem entregue sem reservas a uma paixão sublime, despindo-se heroicamente de todo o snobismo com que a fraqueza de todos nós condescende e curvando-se sobre o arado; absorvido nesse insondável e fascinante da terra, aureolado de maior de todas as bênçãos divinas - a humildade»»
Em Julho de 1910 Konishi ainda estará com Tolstoi já adoentado na mítica quinta, a Iasnaia Poliana, aonde anos antes outro ilustre espiritual português peregrinara, Jaime de Magalhães Lima (descrevendo tal viagem e encontro na Cidades e Paisagens, Porto, 1889, mas ainda escrevendo As Doutrinas morais do Conde Leão, Porto, 1892, dedicado À memória do meu querido mestre Antero de Quental,  e traduzindo depois algumas obras dele.
Três meses depois era informado que Tolstoi deixava a Terra. E após peripécias bem difíceis, já que houve certa repressão oficial e sobretudo religiosa (pois Tolstoi fora excomungado em 1901) à ida de pessoas de comboio, conseguiu chegar a Isnaia Poliana, deixando-nos uma descrição impressionante da devoção que o povo russo e em particular os que o conheciam nutriam para com ele, tão diligente nas suas acções de amor ao próximo, nomeadamente com os seus abecedários, livros de leitura e de contos populares, escolas e bibliotecas, estas como vemos na imagem de 1910.
 
Tal transbordou na presença e participação nos passos e  cerimónias, cantos e deposição do seu corpo entre as árvores predestinadas do bosque junto a sua casa, as bétulas.
Regressado ao Japão, Konishi Masutarô, publicou  até 1913 três artigos sobre Tolstoi, e uma antologia do seu pensamento religioso, mas depois envolveu-se noutras actividades, encontrando-se até em missão oficial na Rússia com Estaline,  e só por fim, antes de morrer, em 1936, escreveu Ba nen no Tolstoi to watashi, Tolstoi na sua velhice e eu, e Torusutoi o Kataru, Contar Tolstoi.
Nestes textos narra entre muitos outros aspectos,  a valorização de Tolstoi da grande habilidade espiritual de Lau Tseu de transmitir o seu ensinamento ou filosofia com calma e profundidade, e a sua admiração e receio pelo abandono por parte do Japão da sua civilização milenária em prol da  europeia e norte-americana, questionando quais os aspectos que ela deveria  abandonar ou aceitar, erguendo-se mesmo em defesa da alimentação tradicional macrobiótica e quase vegetariana dos japoneses: «Entre as coisas da vida corrente, o Japão vai eliminar a alimentação próxima do vegetarianismo que utilizara até agora, mas porque será necessário construir matadouros e de comer carne de vaca ou de cavalo? Recentemente, entre os religiosos e intelectuais ocidentais, alguns pararam de comer carne e adoptaram o vegetarianismo. Não será  isso um fenómeno que se amplificará? Gostaria que os intelectuais japoneses reflectissem nesta questão»...
Sairão à luz as suas duas últimas traduções, apenas em 1946, Ikiru Michi, O Caminho de Vida, e Kofuko e no michi, O Caminho da Felicidade, quando Konishi Masutaro se reencontrara já certamente com Tolstoi no mundo espiritual. 
Pintura de circulação no rio da vida, num  tecto de um santuário de
Wakayama, obtida em 26-VI-2010.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Bocage: das energias anímicas e do espírito na sua vida e obra de vate órfico e cavaleiro do Amor.

Manuel Maria Barbosa du Bocage é ainda hoje um mestre vivo não só na sua obra como nos mundos subtis das almas pela sua essência espiritual tão genialmente manifestada na vida inquieta e aventureira, ardente e amorosa e na criatividade de pensador e poeta, tradutor e dramaturgo, gerando um testamento cultural e espiritual grande para os seus tão breves quarenta anos de vida, de 1765 a 1805, literariamente na época de transição do Neo-Classicismo para o Romantismo.
Aprendermos com a sua sensibilidade e estética, linguagem e cultura, aspirações e visões e, acima de tudo, com o seu espírito pleno de Amor, nas características, capacidades e efeitos, e em especial como fogo de conhecimento e metamorfose, eis o escopo desta singela condensação da espiritualidade omnipresente na sua obra.
 
Em verdade, são muitos os aspectos subtis, supra-sensoriais, espirituais e divinos presentes nos poemas e ideias de Bocage e, para entendermos melhor algo da espiritualidade na sua obra e vida, convirá talvez previamente apontarmos os principais sentidos da palavra espírito, tais como o espírito Divino primordial, a centelha espiritual individual («clara porção do etéreo lume/, Espírito formoso» (p. 578), um ser humano na sua dimensão e identidade subtil, espiritual e imortal e com várias capacidades psíquicas, a respiração, o sopro, a intuição, o estro e o génio e, finalmente, tanto no amplo sentido de Sabedoria como no de Amor. 
Ora podemos sentir ou verificar pela sua obra que Bocage é um ser dotado de imenso amor, e quem diz amor diz sensibilidade, força afectiva e unitiva, coração, imaginação, expansão da consciência e das capacidade psíquicas, do espírito e na sua relação com a Divindade.
É grande e genial o extravasamento na vida e obra de Bocage de tal energia, manifestada em vivências e aspectos, conhecimentos e expressões, tanto vividos sensorial e animicamente como recebidos das leituras e estudos da tradição clássica greco-latina ou ainda intuídos nos níveis supra-sensoriais, pelo que serão algo limitadoras as aproximações à sua obra que não tenham em conta nem valorizem os níveis mais profundos do Ser, divino e humano, ou ainda os transfigurantes do Amor unitivo, sentido não só no corpo físico mas sobretudo na alma e corpo espiritual, com os seus poderes, os quais, na Antiguidade, por exemplo, eram ensinados e despertados nos cultos de Mistérios, dos Magos e sacerdotes, de Orfeu e Pitágoras, todos eles referidos por Bocage.
Podemos dizer ainda que tal genialidade foi precoce em Bocage, tal como ele própria o diz: «Das faixas infantis despido apenas,/ Sentia o sacro fogo arder na mente» (p. 203), tal como foi para Antero e Pessoa e, para além da forte sensibilidade e capacidade imaginativa, poética e onírica, quem sabe se até mesmo de clarividência e que, aparte de ter sido ou não iniciado na Maçonaria (e parece que não), é de certo modo um iniciado, um mestre espiritual na Tradição Portuguesa, tendo em conta ainda a sua evolução anímica valiosa e exemplar, na qual foi marinheiro e guerreiro, desertor e peregrinante, poeta e amante, revolucionário e perseguido, encarcerado e protegido, erudito latinista e genial visionário  que bem acompanha a sua valiosa e intensa obra. 
                                  
É realmente um ser muito sensível e um visionário nas aspirações e sonhos, e na imaginação e intuição dos aspectos subtis e energéticos dos seres e de mitos, arquétipos ou psicomorfismos, tais como o Tempo, a Morte, o Destino, a Liberdade, as três Graças, o Amor, o Anjo, Deus, os quais frequentemente se consideram hoje fria e objectivamente apenas como abstracções e personificações alegóricas, legados da Antiguidade clássica mas que são também seres e componentes anímicos e imaginais do Cosmos, real e noético.

E quem sabe ou consegue discernir o seu poder e vigência no mundo não só dos sonhos e poemas mas das almas, nos séculos XVIII e XIX certamente bem maior do que hoje, em que tantas são as imagens a passar diante de uma pessoa que a sua sensibilidade subtil é afectada e pouco é por ela penetrado até ao seu âmago, assimilado e tornado semente de consciencializações, intuições e determinações novas. Donde a necessidade imperiosa nossa de cercearmos a curiosidade dispersante, a exposição excessiva ao fluxo "megabítico" de informações...
Ora ler Bocage é comungar do seu estro, do seu entusiasmo anímico, o qual o fazia voar frequentemente acima das limitações terrenas e sociais e evidenciar-se como ser amoroso, tanto carnal como espiritual, cidadão livre da Humanidade, do Cosmos e da Eternidade e como tal bem útil nos nossos dias.

                                       
A manifestação de poderes psíquicos na obra poética de Bocage é grande e ecuménica, seja pelo seu génio inato seja pela conhecimento de literatura e cultura greco-latina, e ainda da igreja católica, com a qual dialoga bastante, por vezes ousada ou heterodoxamente, como que a querendo rectificar, em poemas que por isso (censura, inquisição, prisão) não foram publicados em vida, tais como as prodigiosas epístolas a Urânia e a Anélio (duas), onde com muita razão e génio põe em causa, ou melhora, a nossa concepção possível de Deus ou a compreensão de mitos do Antigo Testamento, aludindo ainda ao valor do bonzo e do dervishe da Índia e do islão sufi, ou dos turcos que seguem o Alcorão, e afirmando corajosamente uma visão mais verdadeira e menos primitiva, pois que Deus «recebe imparcial todos os cultos/(...)/ Por acções de virtude ele nos julga,/ Não pelos sacrifícios que fazemos.» (p. 828).
Estes poderes da alma, com efeitos ou impactos nos outros seres humanos e na natureza, manifestam-se através da voz, dos sentimentos, emoções e pensamentos e, sobretudo, do amor, e agem tanto nos seres próximos como nos distantes, ou mesmo para além das fronteiras da morte, algo bem visível nas dezenas de poemas em que Bocage descreve brilhantemente tanto a continuidade da vida consciencial depois da morte cerebral e física como a ininterrupta circulação de energias entre quem se ama.

Os efeitos dos versos nas almas dos outros, e também em si, surgem, por exemplo, com grande qualidade num poema em que confessa o bem que sente na alma, projectando-o para o futuro, para a eternidade, consciência alargada esta que na Modernidade do séc. XXI tende a ser menor, pois as pessoas vivem ora superficializadas e distraídas ora numa dura luta de sobrevivência, sob as crises metodicamente provocadas por grupos de pressão adversos ao bem comum evolutivo da Humanidade.
Esse poema, como vários outros, transparece e implica os poderes mágicos, órficos, terapêuticos, quase divinizantes, da palavra e do som: «Vergava ao peso de mortal quebranto,/ Quando teu hino, teu milagre veio/ De harmonia, de luz, de glória cheio/ Minh'alma repassar de um lume santo:// Cresço em teu estro, sinto-me deidade;/ Já, já piso os salões a Jove, ao Fado,/ No pavimento azul da eternidade.» (p. 458).
Noutros poemas é o poder dissipador das trevas que está associado à palavra proferida justamente: «Alta razão, filosofia augusta/ Troa, num digno tom por ti vibrada;/ E do ígneo arremessão cai fulminada /A de inglórios mortais caterva injusta:/ Elmano adora, como Délio os ama:/ No som, que o ser, e a glória me aviventa/ Tomo à vida o sabor, e o gosto à fama.» (p. 461).

E um dos claros sinais da sua filiação órfica será quando repetidamente nomeia o vate e instituidor, mítico ou não, dessa espiritualidade shamânica, melodiosa e de Mistérios: «Entraste Orfeu, coa cítara eloquente,/ Os monstros infernais domesticando:// Penedos com teus sons amontoando/(...)/ Vê delfins, vê tritões no mar dançando: //Tu, linguagem do Céu, tu, melodia// A tudo encantas, para tudo és forte» (p.169).
Quais os aspectos mais importantes da espiritualidade, ou seja, onde e como é manifestada mais por Bocage uma consciência dos níveis subtis, energéticos, psíquicos, espirituais e divinos dos seres?
Na desidentificação do seu ser com a mente, ou seja, na distinção entre mente e alma, ou mesmo na consciência de que um deus, nume, génio ou espírito, habita nele, alma então intensificada e entusiasmada: «Da mente, que lustrava enriquecida/ Ó Grécia, dos teus dons, dos teus, ó Roma,/Vai-se escoando a luz com a luz da vida://Mas inda às vezes n'alma um Deus me assoma,/ E o pensamento audaz forceja, e lida/ Por dar-me o nome, o jus, que os tempos doma.» (p. 460).
Esta mesma sensação de entusiasmo, de estar em Deus, ou de Deus estar na sua mente, surge no poema a Belmiro Transtagano no qual, após invocar a «Musa de Elmano, e Musa de Belmiro», lembra os momentos de gloriosos improvisos ou inspirações, quando ambos relampejavam: «Nem tu me esquecerás, Gastão cadente,/ Lustroso a par de mim, quando de chofre/ Ígneas canções brotei, com Deus na mente.» (p. 465).
Seria significativo conseguirmos discernir se esta expressão e sensação de Deus na mente ou na alma ter-se-á manifestado mais em Bocage no fim da sua vida, como que numa destilação alquímica divinizante de todo o seu sofrimento e busca, amor e trabalho, ou se ela estando em acção desde novo já era reconhecida, embora então denominada Musa, Génio, Estro, Nume, Febo, e portanto pouco importando a designação mais cristã, do final da sua vida, de Deus, tanto mais que Bocage em alguns poemas clarifica bem como não se deve entender Deus. Este aflorar da ligação interior ou íntima entre o ser humano e a Divindade é dos aspectos mais valiosos da espiritualidade de Bocage.
A ligação de respiração e espírito, existente mesmo na etimologia das duas palavras, empregada em muitas tradições, em especial nas orientais, como base de exercícios psico-somáticos de recolhimento, sensibilização e elevação espiritual, ligados portanto a uma respiração mais consciente e subtil, está também viva em Bocage: «Da mente, em que fervia o gaz sagrado,/ Um Deus, que respirei, já não respiro,/ Um Deus, por quem do nada estou salvado» (p. 462).
Esta ligação do estro ou génio com a respiração é lembrada ainda numa das odes finais, a Pato Moniz, na qual Bocage se descreve fabulosamente: «que outrora esperto, aceso/De santa agitação, de ardor sagrado,/ No cérebro em tumulto/ Estância de um Deus!) me borbulhava./Respiração divina,/Entusiasmo augusto, alma do vate/ Que rápidos portentos» (p. 585).
Ou noutro poema ao seu amigo D. João de Noronha, onde começando por elogiar a sua maturidade bem sazonada:«Sábio varão, que na rugosa idade,/ No inverno da existência, quando em tantos/ É gelo o coração, e é gelo a ideia, /conservas o verdor do sentimento,/ O viço da razão! Cultor de Palas,/ Da virtude cultor, que a tens no peito», conclui orficamente «meus versos hoje a ti seu voo alteiam,/ Vão hoje versos meus contigo honrar-se,/ Aura celeste respirar contigo,» (p. 866), mostrando bem a sua sensibilidade participativa no infinito Campo unificado de Energia, Informação, outrora denominado Anima Mundi.
Aguarela oferecida pela notável pintora Maria de Fátima Silva.
Todavia, talvez um dos mais fortes aspectos da sua espiritualidade seja a sua natureza amorosa e a assunção de ser um "leal dos amadores", um "escravo do amor" e, diremos nós, um Fiel do Amor, surgindo tal como tendência e dever inato do ser humano:«Nascemos para amar; a Humanidade/Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura./Tu és doce atractivo, ó Formosura,/ Que encanta, que seduz, que persuade.» (p. 232)
Amor como quinto e mais subtil elemento na Natureza, nesta linha citando de Gabriel Pereira, no seu poema consagrado a Lisboa, Ulisseia, c. II, 95, a frase «Como é no mundo Amor quinto elemento,/ Que tem dos gostos uma e outra chave», e concluindo o seu soneto: «Ventura, ao doce Amor tu andas presa;/ É de todo o vivente instinto e fado,/ É teu quinto elemento, oh Natureza.» (p. 213).
A afirmação do Amor como o quinto elemento é original e inesperada, e talvez por isso Bocage se tenha escudado em Gabriel Pereira, um escritor familiar do Santo Ofício, pondo a citação dele em epígrafe do seu soneto. Mas tal conhecimento também pode derivar da sua filiação na Tradição Espiritual Portuguesa. E se considerarmos que o quinto elemento era a quintassência, procurada pelos alquimistas e que era ela que imortalizava, então compreende-se melhor que o Amor o seja.
O Amor arde então em centenas de poemas ora para Deus e os seres, em especial as sucessivas amadas, ora para o Cosmos e a Natureza, afirmando como é animada pelo Amor mesmo a Natureza dita inanimada: «Choras o infausto amor tão docemente/ Que o tronco o sabe, que o rochedo o sente,/ Que a terra geme... E que fará quem ama!» (p. 472).

 Irrompe principalmente o Amor na paixão com a Amada, e este foi o veio por onde mais correram as forças anímicas de Bocage, seja erotica e carnalmente seja castamente, em poemas nos quais se pode discernir a sua visão do ser humano numa geografia ou corpo do Amor, no qual as diferentes partes corporais se tornam portas de visionadas correspondências nos mundos subtis e paradisíacos, tal como quando intui «Os olhos de que estás enfeitiçado,/ Do puro céu de Amor benignos lumes» (p. 215), e sente que o amor pode ser paixão e ciúme (nele bastante forte por vezes, e logo combatido com a ajuda da razão), ou suavidade e céu, podendo portanto ser «ideia horrenda, ardente frenesi inflamando o peito», ou chegar aos níveis mais íntimos, também desejados por Jorge Ferreira de Vasconcelos em alguns dos seus livros, tal o de se abrir a janela do peito:«Que a mim, para que viva satisfeito,/ me basta possuir teu doce agrado,/ Ter lugar, ó Marília, no teu peito.» (p. 197). 
 A geografia do corpo amado visível e invisível está mapeada genialmente por Bocage em centenas de versos que não poderemos agora referir e que vão desde os brandos ais enviados e os eflúvios dos lábios até às mais íntimas e eróticas descobertas e analogias.
                                                                   
             Vinheta num dos tomos das obras de Bocage, ainda impresso em vida do vate.
A capacidade de amor adorativo a alguém, de osmose com o outro ser, de entrar na outra pessoa, e sobretudo no coração, ou ainda de considerar a amada «alma de minh'alma», aparece por vezes e numa linha platónica (bem hierarquizada no poema «Enquanto o sábio arreiga o pensamento») e camoniana (muito recomendada e valorizada por Bocage), a de que de tanto amar o amante torna-se a coisa ou ser amado», ou mesmo, mais atrevidamente, quando afirma, algo ufano, a sua capacidade psíquica imaginativa de entrar e tocar na amada, mesmo que esta resista ou esteja longe.

Amor manifestado finalmente na amizade (e não será por acaso que ele se tornou tão amado e recitado pelo povo), a qual vivencia com profundidade, registando os seus graus: «Os princípios morais, por que governo/Meu dócil coração, meu livre estado,/ Prendem-me a ti com vínculo sagrado/ De amor, que passa o grau de amor fraterno» (p. 399), ou afiançando a «Noronha o mais alto grau da amizade», e dedicando muitos poemas a amigos, consciente de que os imortalizava na memória nacional, e até originando ecos valiosos, tal como  um soneto, quando estava presos por andar envolvido em "papéis e livros ímpios e sediciosos" :- «Custam fadigas a virtude, a glória/ Por entre abrolhos se caminha ao monte/ Ao templo da honorífica memória.// Posto que hoje a calúnia nos afronte,/Inda serão talvez na longa história/ Dois nomes imortais - Bocage e Ponte!» - , e uma ode: - «Nossos nomes, amigo, alçados vemos/ acima dos comuns; ama-nos Febo,/ As Musas nos enlouram (...)//» - dedicados ao companheiro de tais ideias avançadas e de prisão André da Ponte Quental e Câmara, avô de Antero de Quental, o qual refere tal em 1881, num sinal do anel das graças da amizade de poetas, na qual os três comungaram na continuidade da Tradição Espiritual Portuguesa, numa carta a Cândido de Figueiredo:«Meu avô André da Ponte do Quental foi da roda de Bocage e, segundo testemunho deste, poeta nada vulgar, infelizmente nada resta das suas composições...» 
                                       
Embora propriamente não se considere Bocage um místico na história da religiosidade e espiritualidade Portuguesa, todavia ele conheceu essa elevação ou platonização do Amor, esse virar do fogo do desejo para a própria Fonte,  para as virtudes necessárias,  para o convívio puro dos espíritos, ou para a gnose amorosa da Natureza e dos seus seres, para o Cosmos e para a Divindade.
E é um Fiel do Amor místico, quando reconhece e aceita na mulher
a sua dimensão de sacerdotisa casta:«calai-vos (lhes gritei) homens estultos!/ Achei Nise, guardando o lume a Vesta, / quando julguei que a Amor rendia cultos.// Sou nobre! sou herói! Vamos à festa/Amar, e por Amor sofrer insultos,/ Das almas grandes a nobreza é esta.» (p. 495).
Fiel do Amor porque o próprio Deus, Apolo ou Febo lhe diz para adorar, isto é, cultuar a amada : «Subjuga dentro d'alma os sons profanos;/ muda em culto o louvor; celebrem numes,/ Mortais adorem de Marília os anos.» (p. 243).
 Fiel do Amor porque, mesmo na prisão, tal força das forças o movia sempre:« Aceso no almo ardor, que a mente inflama, /Vivo de Amor, de Amor suspiro e canto;/ Na face agora o riso, agora o pranto,/Da árvore tua, oh Febo, eu cinjo a rama:» (p.348).
Fiel do Amor nas valorizações do livre arbítrio, da pedagogia amorosa, da liberdade de educação, pensamento e expressão e de as mulheres decidirem por si os seus destinos e actos amorosos, numa linha bem pioneirizada por Jorge Ferreira de Vasconcelos.
Bem importante na espiritualidade em Bocage são, como já disse, os poderes psíquicos. Como sabemos o amor, a aspiração de união e a concentração de forças afectivas unitivas intensificam a sensibilidade e a manifestação de poderes da alma ou, se quisermos, as capacidades supra-sensoriais, ou ainda, as expansões conscienciais, tais como a telepatia, a intuição, a visão e a clariaudiência, esta reconhecida, por exemplo, quando sente que «aura subtil nas árvores murmura» (p. 418).
Os poderes psíquicos permitem uma comunicação subtil e rápida, e consequentemente o ultrapassar das barreiras do tempo e do espaço, ou das névoas entre a vida e o depois da morte, pelo que há muitos poemas de comunhão com a amada ou os seres amados, com os antepassados, «os Penates, a quem rendo um culto interno», referidos com o Tejo e os amigos, quando parte para a Índia: «por espinhos se vai da Glória ao templo./Adeus sócios fiéis; e tu, querida,» (p. 609), numa bela glosa de lemas como Ad Astra per Aspera,  Per Angusta ad Augusta e In Virtute et Fortuna.
 E na Finisterra oriental de Macau lança um belo hino à virtude da amizade, na Ode dedicada ao desembargador Lázaro da Silva Ferreira, governador interino de Macau, que lhe permitia o regressar à Pátria após a incursão ou peregrinação camoniana, certamente a causa da sua deserção de Damão, onde se encontrava já no posto de Tenente: « Paternos lares, que saudoso anelo,/ Sacros Penates, que de longe adoro,/ Suave asilo, que perdi vertendo/ Lágrimas ternas...» (p. 532).
                         
Estas capacidades anímicas permitem a ligação às Musas - e só esta palavra e realidade subtil mereceria um aprofundamento grande, comparando-se as múltiplas vezes que a utilizou com identificações diferentes, desde a sua Musa única e própria às Musas circunstanciais que o podiam abençoar e inspirar, tal a da Gratidão -, e às Tágides, Náiades e demais espíritos da Natureza, sendo ainda nomeados cupidos ou seres de Amor, Anjos e Arcanjo de Portugal, Protectores desconhecidos, Jesus e Maria e a Divindade.
Muitos poemas incluem estes seres e por vezes elevam-se a grande níveis, tais como quando há a participação no corpo místico da Humanidade, já dos últimos meses da sua vida: «Se o grande, o que nos orbes diamantinos/Tem curvos a seus pés dos reis os fados,/ Novamente me der ver animados/De modesta ventura os meus destinos:// Se acordarem na lira os sons divinos,/Que dormem (já da glória não lembrados),/Ao coro etéreo, cândidos e alados,/Honrar com ele um Deus ireis, meus hinos.// Mas, da humana carreira inda no meio,/Se a débil flor sentir murchada/Por lei que envolta na existência veio,//Co'a mente pelos céus toda espraiada,//Direi, de eternidade ufano e cheio:/— «Adeus, oh mundo! oh Natureza! oh nada!» (p. 437).
 
É no carácter e nas virtudes que assenta uma parte substancial da evolução e realização espiritual das pessoas e Bocage, consciente disso, frequentemente enaltece as virtudes, a generosidade, a fortaleza, o estoicismo (ainda que este moderadamente...), a equanimidade, a justiça, o destemor, a amizade e a fidelidade. 
E fá-lo de modos muitos intuitivos dos aspectos subtis que estão em acção na vida virtuosa, como podemos ver nos dois últimos tercetos do soneto dedicado a Frei José Maria de Araújo, eleito bispo do Pernambuco, Brasil, e no qual liga a essência eterna divina humana à personalidade ou carácter, e à gnose e à praxis: «Reflexo da radiosa divindade/ Com cujo auxílio em estro a mente inundo/ Da virtude és troféu na férrea idade!//Grande em carácter, em saber profundo,/ Até que vás luzir na eternidade / Levarás nova luz ao novo mundo» (p. 410).
                                   
As metodologias ascensionais ou intensificantes são sempre subjectivas, pois cada ser tem de descobrir e percorrer o seu caminho de crescimento e sobrevivência profissional, e de harmonização e intensificação das suas capacidades psico-somáticas, embora, em geral, se possa dizer que  o Amor é uma grande fonte e força de inspiração e de elevação anímica.
Amor a Deus, amor ao Conhecimento, amor à pureza e à virtude, amor à amada ou amado e, certamente, amor à justiça e logo arrependimento de erros e menosprezo e renúncia ao que nos possa desviar e enfraquecer, obstruir e apagar. E, consequentemente, desenvolvimento das vivências de purificação, peregrinação, sacrifício, dedicação, oração, canto, concentração, meditação, silêncio, contemplação e união.
Entre as muitas formas ou práticas ascensionais manifestadas por Bocage se, por vezes, é a simplicidade contemplativa, tal como no belo hino a Deus: «Pasmar na imensidade, é crer o imenso;/Tudo em nós o requer, o adora, o sente;» (p.382), noutras Bocage afirma o seu empenhamento poético cognitivo concentrado, ainda que posto satiricamente contra os sócios da Nova Arcádia: «Deixai Elmano, que inocente e honrado/nunca de vós se lembra, meditando/Em coisas sérias, de mais alto estado:» (p. 321). 

Outra clara metodologia ascensional ainda, e que acontece sob diversas faces, é a invocação, o apelo da corrente do Amor, do Génio, da Musa, da Divindade, tal como vemos em: «Voai, voai do Céu para meu lado,/ Ah! Vinde, doce Amor, doce amizade,» (p. 377).
Noutras vezes há como que a assunção de uma metodologia
ritualística, tal como uma dança derviche, ou uma procissão canora, ou os hinos e poemas a serem ditos em voz alta e com a consciência do eco nas esferas subtis e celestiais, tal como o belo poema em que alude à Fraternidade dos Heróis e Mestres nos planos subtis, nos revela: «Eis da Virtude o templo rutilante:/ Sacerdote ancião, de rubra veste,/ Compassa pelo cântico celeste,/Meneando turíbulo fumante://Do pio aroma, do vapor fragrante/O giro salutar consome a peste/ Do vício, que debalde encara, investe/ Turba de heróis às aras circunstante» (p. 386). 
                                         
Pouco sabemos como Bocage poetizaria sozinho, se teria algumas circunstâncias favoráveis ou impulsionadoras, para além da sua sensibilidade emotiva intensificada: «Alta influência amorosa,/ milagroso e doce lume,» (p. 1065). Os escritos na prisão, sem livros, com poucas conversas com o amigo carcereiro e circunstâncias ambientais minimalistas e sombrias, serão dos mais propícios a discernirmos a sua psique isolada e no caso revoltada até. Já em cafés e botequins, acompanhado e improvizando ao pedirem-lhe que poetizasse, há registos lustrosos, tal como o da resposta fulminante ao polémico José Agostinho de Macedo, passada ao papel pelo morgado de Assentiz.
 
A metodologia espiritual não se pode ver apenas nos sentidos elevantes, cosmicizantes ou interiorizantes pois realiza-se ainda na leitura do livro oculto da Natureza e para isto é necessário uma visão aguçada, limpa, penetrante, capaz de discernir, ouvir e intuir as subtilezas da Natureza e dos seus seres e efeitos. 
                                           
As descrições de aspectos dos vales e rios do Tejo e do Sado, por exemplo, atestam a grande sensibilidade de Bocage à natureza, às águas e ventos, às flores, árvores e penedos, e aos espíritos da natureza, tais como essas Fadas, que seu irmão espiritual Antero de Quental também poetizou no seu tão meritório Tesouro Poético da Infância.

                                
Que ele estaria consciente disso, podemos deduzir do que escreve de um poeta amigo: «Intérprete subtil da Natureza,/ Entra seus penetrais, vê seus arcanos,/ De apolíneo fulgor tua alma acesa (...)» (p. 404), ou seja, graças à tua alma inflamada e iluminada, discerne e lê os arcanos, extrai o subtil e escondido do grosseiro e visível. Esta intensificação psíquica é então apresentada de múltiplos modos por Bocage, mostrando quão frequentemente ele a sentiu e através de imagens-forças psicomórficas que movem tanto a psique como as próprias formas corporais e energéticas, inserindo-se na tradição de Orfeu, de Pitágoras e dos sucessivos vates e videntes.
                         
    Pitágoras saindo de uma gruta onde se recolhera em meditações mais profundas ou recatadas
São muito os poemas nos quais Bocage se eleva, ou vê alguém ascender, nos mundos subtis, e eles esclarecem-nos quanto aos modos como ele sentia as dimensões psico-espirituais ou quais eram as suas cosmovisões, por vezes tingidas ou aperfeiçoadas no iluminismo e cientismo que os seus contemporâneos Duque de Lafões, Abade Correia da Serra e o P. Teodoro de Almeida, este seu dialogante, lançavam. Ei-lo falando do poeta amigo Pato Moniz e do Infinito: «Coa mente juvenil, sublime, alada,/ Sais da térrea mansão, mansão profana;/ Introduzes, Moniz, a ideia ufana/ Lá na de sóis sem conto estância ornada:» (p. 453) ou «Com alma solta, e do vil globo alheia/(...)/ Subira céus e céus; já nume Elmano,/Bebera sois, e sois, extasiado:» (p. 478), ou ainda «Oh tu, que tens no seio a eternidade,/E em cujo resplendor o sol se acende,/Grande, imutável ser, de quem depende/ A harmonia da etérea imensidade!» (p. 415).
Muito menos frequentes são os poemas mais ousados, mais heterodoxos nos quais para além dessa ascensão há mesmo uma divinização, não só por os seres serem apresentados como numes, que tem tanto o sentido de espíritos numinosos como deuses, mas quando diz expressamente que o ser é divinizado. Um caso destes explica-se melhor por ser tal atribuído a uma princesa, o que não poderia ser criticado pois sempre houvera uma retórica tradicional da ligação mais directa da realeza com a Divindade.
É o poema dedicado ao nascimento da Infanta D. Maria da Assunção, em 1805, filha de D. Carlota Joaquina e possivelmente de D. João VI, no qual põe o Fado a vaticinar, depois de se confessar conhecedor do futuro:«Tais futuros te deu risonho o Fado/ (Eu o sei, confidente eu sou dos numes)/ De encantadores, divinais costumes/ Serás norma querida, exemplo amado;/E gozará teu ser, divinizado,/ Aras, ministros, cânticos, perfumes:» (p. 455).
                                        
Que não era só o Fado a poder adivinhar o futuro mas também as magas e magos que volta e meia nos surgem e ele próprio, alguns poemas manifestam-nos, e isto numa linha bem comum da Tradição Espiritual Portuguesa bem presente em Gil Vicente, Jorge Ferreira de Vasconcelos e Francisco Botelho de Moraes e Vasconcelos,  tal como quando glosa o mote O Livro Anoso do Fatal Destino: «Do velho Ertílio, mágico afamado,/ Meus passos dirigi ao antro escuro,/ (...)/ Me dize; pois que lendo no éter puro,/ Alças o véu do túrbido futuro,/ Sopras a névoa, que rodeia o fado». (p. 343).
Neste poema podemos discernir psicomorfismos valiosos: a consciência do nível do éter puro, talvez associado ao Céu Cristalino dos diagramas greco-latinos do Cosmos, ou do quinto elemento ou ainda da visão dos glóbulos etéricos solares ou prânicos na Natureza pura. E ainda significativo é o afastar o véu ou soprar a névoa, algo que tanto acontece nas visões interiores como os exercícios psico-respiratórios de Yoga realizam, e que Bocage poderá até ter visto na Índia...
São corajosos estes poemas de Magia, nos quais visita magos ou magas, numa época ainda próxima daquela em que a Inquisição perseguia as bruxas, e nos quais entram formas medicinais, alquímicas e invocatórias que devemos religar à presença na nossa Literatura tanto em Jorge Ferreira de Vasconcelos no seu Memorial de Proezas da Segunda Távola Redonda, como depois a Francisco Botelho de Moraes e Vasconcelos, na sua História das Covas de Salamanca, e já no séc. XX a Fernando Pessoa, tal como eu evidenciei na sua Poesia Profética, Mágica e Espiritual, publicada em 1988.
Sendo perene o mistério da vida depois da morte, sempre houve seres que o tentaram sondar e intuir para além da fronteira do desaparecimento do corpo físico e com o coração e o olho espiritual telescopizados na alma amada conseguiram não perder o seu rasto e até o contacto, celebrando-o em efusões anímicas, cantos e escritos.
Talvez Dante e Beatriz sejam literariamente o caso mais paradigmático e, embora Bocage não tenha encontrado a sua Beatriz, entreviu-a pelo menos parcialmente em algumas das sucessivas amadas (sem que se deva culpá-lo de infidelidade ou de don juanismo...), pelo que naturalmente acolheu ou gerou intuições e rasgos valiosos nos mistérios do além e do amor e, quem sabe, da alma-gémea.
É nas elegias dedicadas a certas a pessoas, por amor ou amizade, ou convidado por elas ou seus familiares, que encontramos mais sinais dos seus conhecimentos, provenientes das leituras religiosas, mitológicas e filosóficas, ou então de diálogos com sábios amigos e intuições. Mas nos sonetos, como já mostrámos, essa presença da morte como passagem para outra dimensão sem que fique impedida a comunicação, está bastante assinalada e sentida emotivamente, pelo que não se devem ser consideradas como retóricas e interesseiras produções, como alguns críticos têm feito. Bocage foi inegavelmente um espiritualista conhecedor e crente de ser um espírito e de haver vida depois da morte do corpo físico.
Destacaremos acerca do momento da morte as seguintes expressões como  exemplos do que Bocage soube sentir e veicular poeticamente do conhecimento da constituição trinitária do ser humano, corpo, alma e espírito, e de alguns aspectos subtis deles: - Quando pensa suicidar-se e se arrepende «Alma quebra as prisões da Humanidade/Despe o vil manto, que pertence ao nada» (p. 273). - Quando comemora o camarada Prudêncio Rebelo Palhares morto em combate:«Cerras teus olhos, despe o teu semblante/ Aquela viva cor de que era ornado,/ E sobes da matéria desatado,/ Espírito feliz, ao Céu brilhante.» (p. 288). Ou ainda, à memória de Marília, o «Áureo fio subtil, que teve unida/ A corpo imaculado uma alma pura,/ de mimoso estalou e a sepultura/ Ficou do teu despojo enriquecida:» (p. 217), afirmação bem interessante por poder aludir, para além do fio das Parcas, aquele que na literatura ocultista é denominado "fio de prata" e que liga o corpo físico e éterico à alma espiritual. 

                                    
Outro psicomorfismo valioso e muito presente na Tradição Espiritual Portuguesa é o destemor perante a morte, pois «é nos eleitos um sorriso a morte», ou como dirão mais tarde Antero e Pessoa, "Morrer é ser iniciado", surgindo mesmo com ousadia na homenagem a um sentenciado no patíbulo em 1797: «Mortal, que foste herói no extremo dia,/ De ideias carrancudas e pavorosas/ Não sofreste o pavor na fantasia:» (p. 393), observando-se, tanto a condenação da pena de morte como a consciência ou sensibilidade às formas de pensamento que se não forem dominadas podem tomar conta da imaginação e causarem ilusão, apego e sofrimento.

No séc. XIX as pessoas eram certamente mais clarividentes e capazes de sentirem e verem como imagens os pensamentos, sentimentos e egrégoras colectivas, já que não havia um tão grande número de imagens a soterrar e a paralizar essa capacidade plástica da imaginação e do olhar interior que é a de reflectirem as ideias-forças subtis, das quais a actividade onírica é também sinal e espelho:«Bem hajas, oh Morfeu! À fantasia/ Que cena divinal me deste agora!» (p.349).  
Outras imagens valiosas encontramos nos sonetos dedicados às amadas Anarda e a Ritália: « Voaste, alma inocente, alma querida/ foste ver outro sol de luz mais pura/ Falsos bens desta vida, que não dura/ Trocaste pelos bens da eterna vida:// Por Deus chamada, para Deus nascida,» (p. 230), este último verso funcionando quase como um mantra, noutro poema manifestado também, «Eu parto, e vou teu nome repetindo» (p. 270), numa linha da Tradição Perene, entre nós por Fernando Pessoa muito glossado. Ou noutro ainda, para Ritália, admitindo dominar o seu corpo de glória e prometendo: «Se, primeiro que a tua, andar errante/ Pelas margens do Letes preguiçoso:/(...)/Ao negro esquecimento hei-de furtar-te:// E o pensamento alígero voando/ Por abafados ares, visitar-te/dali virá, meu bem, de quando em quando.» (p.182), numa bela comunhão de almas em viagens psico-espirituais subtis.
Podemos observar ainda que por vezes o vate, algo iniciaticamente, interroga-se como interpretar a visão gerada, ou intuída, da amada, já deste mundo partida:«Refulgente visão, tu és de Ulina;/ Tu és cópia fiel da minha amada,/ Ou reflexo talvez da luz divina» (p. 227), manifestando a sua actividade gnóstica quanto à substância e origem das visões e da nossa influência nelas, mesmo que receptores passivos.
 
Finalizemos com uma leve hermenêutica a um dos poemas mais profundos e conseguidos órfica e gnosticamente, o dedicado à mulher do grande amigo médico António Bersane Leite: «Espíritos gentis, por Jove amados,/ Volvendo a seu princípio luminoso,/ Olham Sol não crestante, e mais formoso,/ Vagueiam sem temor por entre os fados.» (p.401).
Em verdade, esta quadra dos "espíritos gentis" é certamente das mais espirituais do séc. XIX, pois transmite psicomorfismos da Tradição Perene valiosos, quais sejam os dos amigos de Deus, o do regresso à consciência e mundo espiritual, a dimensão espiritual e amorosa do Sol e, finalmente, a liberdade dos seres luminosos ou já despertos nos seus corpos de glória circulando por entre os seres e planos. 
Muitos outros passos da sua obra manifestam a sua espiritualidade, mas ficaria longo de mais este texto, e sobre algo em geral pouco vislumbrado ou aceite pela crítica literária, embora mais recentemente Ana Chora e Daniel Pires sejam bem mais abertos.
                                     
Este trabalho nasceu de um convite  do Daniel Pires e da Ana Chora  para participar no Congresso internacional Bocage e as Luzes do séc. XVIII, realizado de 12 a 14 de Setembro de 2016, na sua vila natal de Setúbal, e foi continuado e completado em 2 e 3 de Abril de 2019. O improviso da comunicação ao vivo no Congresso está registado no Youtube e as páginas das citações são das Obras de Bocage, Porto, Lello & Irmão Editores, 1968, edição hoje ultrapassada face ao valioso trabalho de reconstituição crítica textual realizado em vários volumes, para a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pelo amigo Daniel Pires, sem dúvida o melhor conhecedor da vida e obra de Bocage, de Elmano, do vate órfico e amoroso nosso...