sábado, 3 de maio de 2025

Encontros com mulheres velhas da serra da Freita e diálogos e reflexões perenes.

Texto base escrito num diário há já bastante tempo e agora mais reflexionado ou aprofundado.

   Porto, registo: «Domingo, fim do dia. Passeio a um sítio belo da serra da Freita [Arouca]. Caminhar ao sol sob árvores e sobre pedras, carqueja e regatos. Ao lado de bois e velhotas que os guardam ou pensam (dão o penso). Quando  pergunto a uma delas onde está Deus, ela responde-me: “Deus está em toda a parte". Eu acolho a sua realização mas depois de acenar com a cabeça, contraponho a questão da justiça e do bem e do mal, e ela  concorda: "sim, Deus afasta-se algo dos maus". Mas é uma zona filosófica complexa e no dinamismo em que estamos peço-lhe que dê as suas bênçãos  à aluna mais jovem, a Maria João, e ela exclama: “Ai minha filha, liga-te a teus pais, tios, primas e a estes senhores, mas tem cautela”.  

Ao princípio não parece ter percebido bem a sacralidade e investidura do meu pedido respondendo com simples conselho de atenção-discernimento, mas depois começa a lançar uma autêntica ladainha. Parecia que o veio profético das mulheres, das mulheres de virtude em especial, vinha-lhe ao de cima, correndo à velocidade do regato, denso e gorgolhoso, como a água do inverno, ou o suor das ceifeiras nas searas escaldantes. 

Eram anos de luta, de pobreza, de sofrimento, de medos, de acossamento animal e da simbiose do humano com os bois e a grande natureza que escorriam agora subitamente por ela como águas de nascente abrindo caminho pelas pedras de granito toscas, da sua alma e do ambiente, e que as deixavam engrossar com as areias e o terriço do solo estrumado centenariamente pelos aquiescentes bois.

Contou então histórias com os seus olhos semi-fechados, um jeito qualquer ou gesto repetido  de tapar o pescoço, talvez um abcesso, talvez vítima  como outro pastor cego dum olho, do dardejar dos raios de sol nos penedos e nas neves ou geadas. Seres dolorosos, seres doridos. E eu e os alunos e alunas do Yoga a passearmos, a harmonizar-nos, a elevar-nos, e eu a sentir o bolso vazio sem saber onde deixara a carteira (ficara no carro), mas a avançar desprendido de cartões do Multibanco e do bilhete de Identidade, porém sem dinheiro para com ela compartilhar na fraternidade humana e na gratidão pela sua vida e ser.

Ai as populações velhotas das montanhas e serranias. Gente ainda analfabeta mas com corações tão grandes. Contou histórias, tal como quando tinham aberto a cabecinha dum à sachada por discussões de águas e regas. "- Ai", diz ela, "que não me tocou no corpo, mas dói-me". 

Que modo simples mas tocante de manifestar a sua alma aberta, empática, em osmose profunda e supra-egóica com os seres que a rodeiam. E eu a pensar depois que vamos por aí quase todos considerando-nos independentes e isolados do que se passa com os outros [ou algures na Palestina e noutros locais mais intensamente] e a rir-nos dos que denominamos como simples, loucos ou atrasados e que no povo e neste Porto e Norte são em geral apenas seres  mais fortes nas feições telúricas, sinceras, directas, sofridas, sem máscaras ou disfarces.

 Esta comunhão com os elementos da Natureza, a lavoura e os animais, tão absorvente que era há cem anos, tende hoje a desaparecer quase por completo, e os saberes tradicionais que existiam desvanecem-se (ainda que provérbios, mezinhas e devoções ainda subsistam) diante um conhecimento geral, já com mais bases científicas mas sobretudo de fontes mediáticas manipuladoras, perdendo-se assim tanto o enraizamento com a natureza, tão saudável psico-somáticamente,  como tradições e intuições populares.

Comparemos de modo muito geral as populações, ou mesmo as velhotas de então e as da agora e veremos logo que nestas há muito mais conhecimentos e capacidades de utilização de instrumentos e tecnologias novas e a luta pela sobrevivência tornou-se menos dura e absorvente. Mas as qualidades anímicas melhoraram assim tanto, ou  a animalidade-instintividade ainda permanece forte, violentíssima até por vezes, por múltiplas razões [análises são bem necessárias], e as melhores qualidades do coração de sensibilidade, solidariedade e amor  podem até ter aumentado pouco ou mesmo em certos aspectos diminuído?

Cremos que apesar de tudo as populações, os portugueses melhoraram muito, pois grande parte desenvolveu mais os estudos, a cultura, a reflexão e o discernimento. Mas não estão elas também muito mais expostas as forças de mentira, de manipulação, de engano, de superficialização em bens de consumo inúteis ou daninhos, e nos canais de informação e suas tascas forças e amilhazados?

Na balanço final, seja das virtudes desenvolvidas (tal a paciência, a determinação, a coragem, a fé, o estoicismo), seja na pesagem e julgamento dos actos da vida, quais estarão melhores animicamente nessa hora da morte e logo destino de viagem posterior?

Quem está mais ligado com o coração? E com a verdade, a sua verdade (swadharma) e logo sinceridade? Quem agiu mais solidariamente? Quem está com a aura mais luminosa e mais desperta como alma espiritual? Quem consegue ter mais ligação com os antepassados, o corpo místico da Igreja ou da Humanidade, ou ainda do campo unificado da Anima mundi e da Divindade no seu caminho ascensional?

Ganhou-se realmente mesmo mais conhecimento, visão, vivência e ligação com a Divindade hoje em dia, com tanto diálogo inter-religioso, esoterismo, auto-ajuda, constelações, astrologias, transpessoal, yogas ou aquela velhota estava mais aberta à Providência divina  quando via ou sentia Deus ou a força Divina (a shakti)  em toda a Natureza, em toda a parte?  Lux Amor Dei!

1 comentário:

Anónimo disse...

Pedro
Seres mesclados
Obrigada pela partilha