quarta-feira, 7 de maio de 2025

Erasmo e seus ensinamentos perenes. Breve revisitação na minha alma.

Erasmo num altar lisboeta

Erasmo, antropologicamente, vê o ser humano como trino: corpo animal, alma humana, espírito divino, e é no equilíbrio frutífero destes três que resulta o avanço ou não para o cumprimento da sua missão na vida e para o sumo bem, em geral, seja este alegria, amor, ligação a Deus, salvação.

O ser humano procura a felicidade, só que o corpo quere-a à sua maneira de instintos, a alma vai pelos afectos e paixões, a mente pensa e interroga racionalmente mas é o  discernimento provindo da centelha do espírito, obtido seja pela inteligência seja pela intuição  obtida na oração e meditação, que pode coordenar e orientar melhor os diversos níveis do ser.  Daqui a necessidade do constante estudo e trabalho com o auto-exame e com a inteligência para não sermos manipulados e enganados por tantos oportunistas e avençados, de modo a que a Sabedoria vá crescendo na nossa individuação, permitindo o discernir e implementar as respostas mais certas e frutíferas às inter-relações e desafios da vida.

O ser humano não nasce homem ou mulher, mas faz-se, cresce, desenvolve-se, nomeadamente em sensibilidade, capacidades, virtudes, luz interior. Subjacente à vida está então uma arte de vencer e harmonizar obstáculos e resistências, tendências e fraquezas.

 S. Inácio de Loiola dizia aos seus discípulos e primeiros jesuítas que não lessem Erasmo pois esfriava a fé. Mas a verdade é que Desidério Erasmo era uma pessoa tão culta, e sabia tanto da mensagem de Jesus  ou, como lhe chamava, da philosophia christi, bem como das heresias e diferenças de ideias ocorridas ao longo dos séculos do Cristianismo, que certamente quem o lesse aumentava a Razão ou Logos em si, pois ao ser confrontado com tantas versões naturalmente teria de exercitar o discernimento gerador duma gnose pessoal, tanto mais que lucidez racional erudita e em busca da verdade em Erasmo era tão grande que algo disso transmitia-se a quem o lia ou lê e estuda com amor ou mais perseverantemente. 

 Eu próprio, quando o leio ou medito, sinto subtilmente algo de comunhão com as forças lúcidas e desmistificantes do autor do Elogio da Loucura, dos Adágios e dos Colóquios. Ora o problema, e que já S. Inácio sentira,  é que dentro da Igreja e das suas narrativas, doutrinas e história  somos confrontados com tanta imaginação ou mesmo disparate, que podemos começar a pôr mesmo em causa o que até Erasmo ainda parecia admitir, mas que com o nosso racionalismo mais informado de cidadãos do século XXI, já não coarctados pela longa tradição unânime da Igreja, talvez por Erasmo ainda assim venerada em certos casos  demasiado, pomos mais naturalmente em causa. Não referirei porém agora esses aspectos e ficará para outro texto.

Na época a Teologia e a dogmática da Igreja controlavam na Europa a educação, a ciência, a razão, a política. Foi o Renascimento e a Reforma que deram os primeiros grandes golpes no monopólio do ensino e da visão do mundo, que deixou de ser a antiquíssima judaico-cristã, tão patriarcal e violenta, sobrecarregada dos  fanatismos de inquisidores e censores que se atreveram a matar génios como Giordano Bruno, Michael Servetus, Frei Valentim da Luz, ou a prender Pico della Mirandola e Damião de Goes, ou a censurar  milhares de outros.

Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola e Angelo Poliziano, por Cossimo de Rosselli, igreja de S. Ambrósio, Florença

Erasmo foi muito atacado, sobretudo depois de se ter atrevido a publicar em 1515 uma nova tradução do Novo Testamento, por alguns dominicanos mais reacionários, tal o castelhano Zúñiga, e o cardeal Girolamo Aleandro, mas como a sua sabedoria e lucidez eram imensas e soube defender-se bem, tiveram de se calar, por ordens até papais, pois foi mesmo a Erasmo que os papas Leão X, Adriano VI e Clemente VIII se dirigiram com o pedido que enfrentasse Lutero e o desmascarasse. Erasmo esperou, pois havia aspectos da Reforma que eram válidos e necessários e só quando Lutero e os reformistas entraram em mais violência e opressão radical das formas cristãs de culto, é que em 1524 o contestou, e claro Lutero não gostou nada e replicou, e a polémica agitou a Cristandade, embora Erasmo tenha escrito sobretudo filosófica e eticamente no campo do livre-arbítrio que Lutero, numa dependência exagerada na fé no Deus das Escrituras como salvífica, considerava inexistente no ser humano, pois já estaria predestinada a sua salvação ou não apenas pela graça divina, de pouco ou nada contando a individualidade e a liberdade humana. 

Para Erasmo era diferente: cada ser humano tem se fazer, tem de se salvar pelos seus actos, pensamentos, sentimentos e esta salvação é a construção do templo divino ou dum graal receptivo no coração de cada um e onde o espírito divino deve descer e nos encher de luz, de amor, de sabedoria, que depois são partilhadas em comunidade,  em orações, em esforços e criações, e sobretudo no bom senso e no amor ao próximo, à família, à Humanidade, ao Bem comum.

Saibamos comungar e coadjuvar Erasmo e os outros que ergueram e encheram (ou erguem, e fazemos votos para que o novo papa Leão XIV seja um elo luminoso)  bem a taça do santo Graal das correntes do Amor e da Sabedoria Divinas e a derramaram e derramam pela Humanidade harmoniosa, livre e multipolar, hoje como outrora sempre ameaçada pelos que a querem controlar, manipular, infrahumanizar.  Lux Dei.

Sancte Erasme, ora pro nobis, ora cum nobis!

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