| Erasmo num altar lisboeta |
Erasmo, antropologicamente, vê o ser humano como trino: corpo animal, alma humana, espírito divino, e é no equilíbrio frutífero destes três que resulta o avanço ou não para o cumprimento da sua missão na vida e para o sumo bem, em geral, seja este alegria, amor, ligação a Deus, salvação.
O ser humano procura a felicidade, só que o corpo quere-a à sua maneira de instintos, a alma vai pelos afectos e paixões, a mente pensa e interroga racionalmente mas é o discernimento provindo da centelha do espírito, obtido seja pela inteligência seja pela intuição obtida na oração e meditação, que pode coordenar e orientar melhor os diversos níveis do ser. Daqui a necessidade do constante estudo e trabalho com o auto-exame e com a inteligência para não sermos manipulados e enganados por tantos oportunistas e avençados, de modo a que a Sabedoria vá crescendo na nossa individuação, permitindo o discernir e implementar as respostas mais certas e frutíferas às inter-relações e desafios da vida.
O ser humano não nasce homem ou mulher, mas faz-se, cresce, desenvolve-se, nomeadamente em sensibilidade, capacidades, virtudes, luz interior. Subjacente à vida está então uma arte de vencer e harmonizar obstáculos e resistências, tendências e fraquezas.
S. Inácio de Loiola dizia aos seus discípulos e primeiros jesuítas que não lessem Erasmo pois esfriava a fé. Mas a verdade é que Desidério Erasmo era uma pessoa tão culta, e sabia tanto da mensagem de Jesus ou, como lhe chamava, da philosophia christi, bem como das heresias e diferenças de ideias ocorridas ao longo dos séculos do Cristianismo, que certamente quem o lesse aumentava a Razão ou Logos em si, pois ao ser confrontado com tantas versões naturalmente teria de exercitar o discernimento gerador duma gnose pessoal, tanto mais que lucidez racional erudita e em busca da verdade em Erasmo era tão grande que algo disso transmitia-se a quem o lia ou lê e estuda com amor ou mais perseverantemente.
Na época a Teologia e a dogmática da Igreja controlavam na Europa a educação, a ciência, a razão, a política. Foi o Renascimento e a Reforma que deram os primeiros grandes golpes no monopólio do ensino e da visão do mundo, que deixou de ser a antiquíssima judaico-cristã, tão patriarcal e violenta, sobrecarregada dos fanatismos de inquisidores e censores que se atreveram a matar génios como Giordano Bruno, Michael Servetus, Frei Valentim da Luz, ou a prender Pico della Mirandola e Damião de Goes, ou a censurar milhares de outros.
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| Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola e Angelo Poliziano, por Cossimo de Rosselli, igreja de S. Ambrósio, Florença |
Erasmo foi muito atacado, sobretudo depois de se ter atrevido a publicar em 1515 uma nova tradução do Novo Testamento, por alguns dominicanos mais reacionários, tal o castelhano Zúñiga, e o cardeal Girolamo Aleandro, mas como a sua sabedoria e lucidez eram imensas e soube defender-se bem, tiveram de se calar, por ordens até papais, pois foi mesmo a Erasmo que os papas Leão X, Adriano VI e Clemente VIII se dirigiram com o pedido que enfrentasse Lutero e o desmascarasse. Erasmo esperou, pois havia aspectos da Reforma que eram válidos e necessários e só quando Lutero e os reformistas entraram em mais violência e opressão radical das formas cristãs de culto, é que em 1524 o contestou, e claro Lutero não gostou nada e replicou, e a polémica agitou a Cristandade, embora Erasmo tenha escrito sobretudo filosófica e eticamente no campo do livre-arbítrio que Lutero, numa dependência exagerada na fé no Deus das Escrituras como salvífica, considerava inexistente no ser humano, pois já estaria predestinada a sua salvação ou não apenas pela graça divina, de pouco ou nada contando a individualidade e a liberdade humana.
Para Erasmo era diferente: cada ser humano tem se fazer, tem de se salvar pelos seus actos, pensamentos, sentimentos e esta salvação é a construção do templo divino ou dum graal receptivo no coração de cada um e onde o espírito divino deve descer e nos encher de luz, de amor, de sabedoria, que depois são partilhadas em comunidade, em orações, em esforços e criações, e sobretudo no bom senso e no amor ao próximo, à família, à Humanidade, ao Bem comum.
Saibamos comungar e coadjuvar Erasmo e os outros que ergueram e encheram (ou erguem, e fazemos votos para que o novo papa Leão XIV seja um elo luminoso) bem a taça do santo Graal das correntes do Amor e da Sabedoria Divinas e a derramaram e derramam pela Humanidade harmoniosa, livre e multipolar, hoje como outrora sempre ameaçada pelos que a querem controlar, manipular, infrahumanizar. Lux Dei.
| Sancte Erasme, ora pro nobis, ora cum nobis! |

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