sábado, 24 de maio de 2025

Alexandre Seabra, poeta do "Nadas" e da geração de Fernando Pessoa, tece o elogio de Coimbra e invoca os que nela mais amaram.

 Alexandre Seabra, foi um pensador e poeta do começo do séc. XX, que acabou por não entrar, ou ficar lembrado, na história da Literatura portuguesa, pese o seu valor. Um mero acaso, ou uma atração subtil, fez-me há anos adquirir um livrinho seu Nadas (Lisboa, Empresa de Publicidade A Tribuna, 1924), com uma dedicatória ou acrescento forte ao livro.
Procurando informação sobre ele,
deparei-me  na correspondência de Fernando Pessoa,  carta de 7-8-1923 para o seu amigo  Joaquim Pantoja, a quem Seabra entregara um conjunto de poemas manuscritas para apreciação ou quem sabe prefácio, com o recado que informasse Alexandre Seabra que não valia a pena publicar para já, que amadurecesse, que fundisse mais o pensamento e a emoção, e não sentisse ou se emocionasse tanto: «Toda a gente sente. Toda a gente pensa. Nem toda a gente, porém, sente com pensamento ou pensa com emoção...  Qualquer que seja a idade dele, ele tem um cérebro demasiado juvenil; e a arte – ao contrário do que se julga – é trabalho para velhos, ou para envelhecidos», que seria o seu caso, pois Fernando Pessoa tinha então 35 anos.

E contudo o livro Nadas (in-4º gr. de 22 páginas), e já publicara  Crepúsculos de alma (Vila Nova de Gaia,1921),  além de ser raro pois não está na PORBASE, é valioso e faz-nos até lembrar Mário de Saa, Ultra Machado ou mesmo Fernando Pessoa, ao manifestar grande sensibilidade panteísta, e não só sensacionista mas também moral e espiritual. Transcreverei então alguns dos seus textos e antes de mais a dedicatória manuscrita, com letra firme e intensa, pois é um testemunho inédito  original até na hermenêutica da mitologia coimbrã,   e valioso já que desconhecemos outras informações sobre a sua vida, e até se o conteúdo do Nadas, publicado uns meses depois do parecer de Fernando Pessoa, teria feito parte do manuscrito que este leu e não aprovou...


Frontispício: 
                                    Alexandre Seabra

«Pedindo uma esmola
      NADAS
Sobre uma campa uma flor sorri!...

Jesus por amar e sofrer subiu até Deus. O mesmo sucedeu a mim...

                                     

1ª folha branca, ou verso da capa frontispício:
   Invocando:
Camões esteve em Coimbra,
Anthero também.
D. Pedro amou em Coimbra,
Ignez de Castro aqui morreu por amor.
Em Coimbra Santa Izabel andou, serena, e santíssima, derramando a bondade do seu semblante e dando aos pobres e doentes carinho e pão que Deus transformou em flores.
Estas flores são o símbolo eterno que estimula na psicologia de Coimbra o sentido do bem.
Coimbra é um terra santa. Eu devo ter nascido em Coimbra, senão não podia ser portuguez!
                Alexandre Seabra» 

                                         ****

 Oiçamos agora os seus textos, numa prosa muito poética, manifestando uma ora ousada (acima do bem e mal, e das conveniências) ora profunda comunhão com a alma dos seres, das coisas, da Natureza e uma boa abertura ao Infinito, à Unidade Divina, e conseguindo-a partilhar artisticamente, bela e elevadamente, na base de que os aparentemente nadas são na sua pluridimensionalidade riquísimos, imensos, sublimes para quem tem a empatia suficiente para os sentir e sondar. A epígrafe, na folha branca inicial, é justificada: "Vós que tendes sede de ventura entrai...", pois em trinta e cinco apontamentos partilha a sua excelente sensibilidade pluridimensional, concluindo geralmente por "... Quem sente a felicidade!... Silêncio..."

                                                    ****

«A felicidade! Sorriso passageiro da vida, correr sobre seda do espírito, sufocação de surpresa, um ah, que se prolonga, um beijo que se distende, um sonho que não se evola, uma carícia que vincula simpatia, uma alegria faz correr uma lágrima, um morrer-se com esperança, um sentir-se com fé...

Um poente se rosa, um regato se aveluda, um colo se confrange, uma alma crê, uma ave passa, chuva de estrelas, revoltas de oceano, cânticos de alvorada, trinados em crepúsculo: em cavalgada olímpica, vem a nós todo o sublime por intermédio subtil...»

                                              ***

«Sobre um longe de água e céu: O infinito,  azul marinho, o azul celeste! Pontos esvoaçam - gaivotas. Seu descer sobre a água, seu subir para o azul, é lento carinhoso. Procuram a vida, sentem a vida, voam! O mar ruge, o mar murmura, o mar embate. A altivez, a ternura, o puro! Os pontos afagam, as afagam. A alegria alada como um olhar terno! Desliza sem percalços, serena; voa, pura: azul é meigo, seu voo meigo,o mar meigo, brisa é terna, a vida grande!
O mar vasto, dominante, orgulhoso, é terno.... A onda sente o pousar da ave, seu dorso estremece, baixa, ondula, acarinha o peso de nada, não vexa, não desdenha o leve, afaga-o, acarinha-o, só esbofeteia a rocha bruta! O mar esbofeteia a rocha bruta. A ave procura a sardinha, beija o mar; o mar a envolve num carícia de seda, numa carícia de seda, numa carícia de azul, num veludo de onda! O mar é meigo, o monstro é meigo...
Longe um ponto branco. Fenda no infinito! A audácia, o espírito sobre o mar, sob o azul! É o brigue sulcando as águas, Perde-se, diminui, mas branco, esperançoso! As almas o escoltam - Gamas, Albuquerques, Magalhães; do nosso passado, a carreira da audácia, do aspirar infinito, do devaneio do longe.
Aquela linha lhes disse, vinde: O profundo, o azul tem fim, vinde... e a outra terra surgiu, o mundo surgiu, o esférico se fixou. O espírito é infinito, voa para o infinito!
O ponto se perdeu, o branco se perdeu!
A alma dos navegantes também perdeu a terra. Uma nuvem se arrasta além, onde se perdeu o brigue: Navegantes que prazer não é perder-se na terra. A alma deita-se no azul, cobre-se no azul. O puro imenso! Que prazer o dos navegantes. Quem se
nte felicidade! Silêncio...»

                                

Fragmentos: "Tarde de chuva: com que resignação as árvores não recebem o espargir do céu! Religioso êxtase.
A humidade escorre, os cabelos do infinito, as lágrimas do infinito.
Traços d'água, pontos d'água, beijos d'água.
A relva pelo chão esverdece, a seiva é mais cálida, aflui à água.
A vida aflui à agua! A terra bebe, o arbusto bebe, a clorofila bebe. O saciar da sede. Nossa alma bebe. O saciar da sede! (...)

Nas poças d'água os pingos d'água provocam um arrepio de riso. O frisson dum beijo. A água tem nervos, estremece sob os pingos de água. Vede o estremecer da água. Suas moléculas ondeiam. Uma poça contém um mar, revela um infinito. As vibrações, a coesão, a adesão, os princípios do equilíbrio, o respeito pela atração. É o infinito! Uma poça contém o infinito. O sol a evaporou, o frio a condensou, o ar a espargiu, a atração a depôs; uma gota de água contém uma filosofia. Amai a gota d'água. A lágrima é a imagem da gota d'água. Uma lágrima é a imagem do sentimento (...)"


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