terça-feira, 26 de julho de 2022

O Grande Livro dos Livros. Alguns dos seus aspectos.

O Grande Livro dos Livros é uma designação, um nome, um título, que corresponde a uma realidade de acesso bem subtil e espiritual e que nós apenas podemos pressentir pela imaginação, a visão interior, pelos sonhos e pela intuição. Inclui tanto o melhor de todos os livros como a nós seres humanos, mormente aqueles que se afirmam  por pensamentos, actos e palavras, sentimentos e intenções e, sobretudo, pela escrita, sendo escritores e logo cooperadores dele.
Há muitas dimensões neste título, embora a principal aponte para a totalidade do conhecimento humano valioso, escrito ou gravado, e sobretudo para o que merece ser incluído ou seleccionado nessa grande antologia do que melhor se pensou e se escreveu e que é o maior tesouro da Biblioteca Cósmica, a alegria maior dos livreiros, bibliotecários e leitoras e leitores.
Se ela se concretizasse na forma de livro, imaginal ou mesmo subtilmente real, ela seria a obra prima sempre aberta com milhões de títulos a serem dicionados, com milhões de linhas a serem escritas em todo o Universo, conflundo antologicamente nesse Grande Livro dos Livros, que seria um outro Alfa e o Ómega, o princípio e o fim da actividade anímica por escrito do ser humano, já não reduzido a autores e livros, mas sim quintessenciado no Livro como Logos, como Anima Mundi, como Inteligência e Amor Divino, celestial e humano, neste cosmos infinito por onde peregrinamos.
Assim, sempre que estamos a escrever podemos estar a acrescentar mais uma linha, ideia ou elo significativo no Grande Livro dos Livros e, por exemplo, quando depomos um ponto final parágrafo estamos provavelmente a reactivar ou simbolizar à nossa escala ou dimensão a pontuação divina intencional que ora nos diz: - "Pára, pensa, medita e torna a escrever," ora nos chama a erguer-nos das medianias e sensaborias com que a nossa existência quotidiana ou mesmo a modernidade nos estagna e faz degenerar: - "Põe um ponto final nesse hábito, nessa dependência, nessa relação, nessa incapacidade. Afirma-te como espírito luminoso e na comunhão do corpo místico da Humanidade e luzirás e serás abençoado".
Cada ser, a cada momento, tem uma página em branco em si e diante de si e até nos seres que estão mais consigo, por afinidades misteriosas, e deve escrevê-la e desenhá-la o melhor possível, ou seja, com justiça e harmonia, amor e sabedoria. Com a pontuação correcta, as vírgulas que acrescentam, os pontos que terminam, os grafismos que exclamam ou interrogam e fazem ecos de valores e ideias universais.
Vive então no presente harmoniosamente, isto é criativa e intensificadamente, tentando que cada acontecimento ou relacionamento seja o mais luminoso e evolutivo para todos os seres em causa e então estarás escrevendo e pontuando correctamente as tuas páginas do Grande Livro dos Livros e espargindo luzes inspiradoras e centelhas amorosas em ti e à tua volta, mormente nos que te lerem e que ao vibrarem com que vai na fala da escrita, ou mesmo ao assimilarem até à prática a leitura, e que assim despertarão mais a sua entidade luminosa unida ao espírito, à Humanidade, ao Bem, à Verdade e à Divindade...
Na realidade podemos afirmar pioneiramente que a abertura consciencial do ser humano à sua participação no Grande Livro dos Livros e nas ideias e significações, impulsos e aspirações planetários, bem como sintonização do seu coração às melhores emanações que brotam, perpassam ou são accionadas pelos livros, fazem com que a sua inteligência e amor tragam mais ao de cima, à consciência e manifestação, a intencionalidade divina original de Luz e Amor.

Neste encontro entre o microcosmos humano e o macrocosmo infinito, e quando escreve ou lê, o ser humano intensifica as suas melhores capacidades afectivas e intelectuais e irradia para todo o Universo, da sua alma deligente e esforçada, iluminada e amorosa, múltiplas centelhas douradas ou ondas azuladas ou rosadas que abençoam os seres.
E ao posicionar-se por detrás da porta de saída dos pensamentos e energias psíquicas, do que escreveu e o que vai nisso, consciencializnado-se que é o mesmo "eu sou (luz e amor)" que observa o que pensa e  sonha, o que sente e o deseja, o que intui e escreve, esta pessoa faz diminuir as vagas do pensamento e a agitação global e entra mais na paz profunda que vai gerar a receptividade à escrita inspirada, ao aumento da aspiração silenciosa a Deus, à irradiação ou emanação do Amor e da Sabedoria, ao enriquecimento do Grande Livro dos Livros.

Artigo a desenvolver ainda, ou a correlacionar com outros. Começado a 24-VII-2015, no Porto e concluído a 24, 26-VII-2022, em Lisboa.

sábado, 23 de julho de 2022

Acerca do Amor, da sua origem, fundamento e desenvolvimento. Começado num diário de 2015 e concluido sete anos depois.

A origem e essência do Amor é, mesmo nos nossos dias, misteriosa. Dizem alguns, porque sabem, imaginam ou ousam, que o Amor é a motivação original Divina, geradora da Manifestação Cósmica, e que circula como a sua energia substante e unitiva, sendo por isso  a mais primordial, bela e valiosa qualidade da Humanidade, já que na vivência de tal energia de irradiação criativa e atracção complementar se desenvolve uma vontade de partilha, de comunhão e de unidade  que faz sair os seres do seu egoísmo e os torna mais sensíveis ou  unidos à ordem e harmonia, ao outro, aos outros, ao Cosmos.
O egoísmo, que é a base do funcionamento da vida individualizada e da luta pela sobrevivência, pode ser suplantado pela vontade amorosa, pois esta vence-o, ultrapassa-o, transcende-o, por vezes plenamente outras nem tanto, alargando contudo sempre a consciência, pois esta já não é só limitadamente individual mas vai-se tornando mais profunda e vasta, sensível e harmonizadora e no fundo unificada ou unificadora, nesse relacionar com outros e o Cosmos e que é bem mais fácil de ser sentido ao contemplar-se a harmonia do Universo e da Natureza, nomeadamente nos céus, montanhas, rios e campos.
Podemos ver então o Amor como um estado consciencial, no qual o nosso desejar ou querer a unidade é aprofundado, como um sentir e admirar interior, um sentir e consciencializar do fogo do amor, um sentir da unidade com a amada ou o amado, sendo sempre uma intensificação da irradiação do fogo do Amor que ressoa ou emana do peito, do coração e da cabeça, ou seja do espírito na sua pluridimensionalidade, a qual abrange todos os corpos e seus centros e órgãos.
Perguntam alguns contudo se o amor sentido entre dois seres nasce do nosso interior, seja de hormonas e neurotransmissores, seja do subtil espírito ou, melhor, da atração e encontro afim e complementar entre dois corpos e almas, focos de vida e intencionalidades, ou ainda se da graça da Ordem implícita no universo, e talvez devamos reconhecer que, se por vezes é difícil discernirmos a fonte ou motivação principal, ele gera-se em nós, ou parte de nós, e é ora uma irradiação motivacional geral ora uma rendição do fogo do nosso ser em amor para um outro ser, sendo assim um reconhecimento no motivo ou no outro de um destinatário merecido do melhor e mais divino do nosso ser, ou ainda  um reconhecimento do amor e valor que cada ser tem e que atrai o nosso ser e amor. O que nos pode tornar mais sensíveis e simpáticos, e capazes de querer melhor conhecer (connaitre, nascer com ), ou seja, sermos um, estarmos ou vivermos mais juntos, próximos, unidos, seja tal com uma coisa, um assunto, um valor, uma realização, um ser, os seres.
O amor é então uma escola de aprofundamento de conhecimento do outro e de nós próprios, e da capacidade de nos ultrapassarmos, de nos desegotizarmos, pois retira-nos do  isolamento e põe-nos em contacto, convivência, comunhão com alguém que é uma chama de amor afim da nossa, ou por quem a nossa chama de amor se intensifica, numa reciprocidade que permite a união mágica da Terra e o Céu, ou seja das fundações telúricas, corporais e ígneas com estados de consciência expandidos ou elevados, por vezes mesmo celestiais ou até divinos, se entre os dois seres tal abertura é verdadeira e perseverantemente trabalhada ou demandada.
Ao ser fogo e luz, ao ser intensificado na correnteza recíproca, o Amor transfigura os seres, revela-lhes constantemente novos faces ou facetas da nossa pluridimensionalidade corporal, anímica e espiritual, a qual frequentemente nas relações humanas normais se limita ou mesmo se perde, pela superficialidade, dispersão e falta de tempo em que as pessoas vivem para se sentirem, conhecerem, amarem, espelharem e aprofundarem mais, nesses níveis subtis em que tudo está interligado e se corresponde.
O amor retira-nos da linearidade do tempo e abre-nos a porta para o sem tempo, a eternidade, já que cada momento vivido intensamente em amor pode ser uma descoberta das correspondências subtis dos corpos e da Terra, ou pode ser como uma entrada no plano  da eternidade, sentido num abraço mais prolongado e para onde se irradia a energia benéfica desse abraço e que assim tinge a aura da história planeta, reforçando simultaneamente a realização da imagem arquetípica da presença amorosa desses dois eus caminhando no Um e na Eternidade.
Embora se possa dizer que o estudo racional e a visão e contacto directo  sejam as principais fontes do conhecimento, todavia o amor é fundamental para o aprofundamento cognitivo, para conseguirmos sair da superfície e aparência da vida e entrarmos no interior, no anímico, na  intimidade, na empatia, compaixão,  serenidade, intensidade e subtil resplendor, pelo qual o outro ser, ou então objecto, é mais recebido, compreendido, abraçado por dentro, intimamente e unificadoramente. 
O fogo do amor tem no coração o seu templo e, pelos  cinco sentidos,  sentimentos,  pensamentos, aspirações e intenções, as suas portas de acesso às múltiplas realidades e as correspondências e é por isso que os seres que se amam estreitam intensamente os seus peitos num desejo ou ânsia de que as chamas dos dois corações e auras saiam das suas limitações pessoais e se fundam e alarguem numa nova consciência, tanto individual como na que resulta dessa confluência de dois oceanos ondulados não só pelo sentir do coração mas também pelo pensar, dialogar e ver interior ou psico-espiritual que deve acompanhar qualquer relação, sobretudo mais íntima.  
É pois um novo ser ou estado consciencial, qual ovo alquímico ou mandorla engrinaldada da Tradição Perene, que vai sendo gerado, trabalhado e fecundado pelos abraços, pelas palavras e diálogos, mesmo quando estes são conflituosos devido às sínteses harmonizadoras posteriores que se geram, e ainda pelos actos de apoio e unificação. De tal entrosamento ou enlaçamento alquímico resultam ou nascem os frutos de vida eterna, seja artísticos e criativos, seja filhos, seja causas, seja ainda a auto-compreensão e realização espiritual, havendo sempre a magia irradiante em orações, posturas, gestos, caminhadas, danças, curas, poemas, mantras, respirações, massagens, passes.
Por tudo isto houve quem dissesse ou proclamasse "Amor, o Libertador", "Amor, o Conquistador". Talvez se possa acrescentar "Amor, o Divinizador", pois sendo a Divindade Amor, ou  a Fonte de Amor, quando o manifestamos na Terra estamos trazendo à manifestação o mundo psico-espiritual e divino e, logo, melhorando a sua aura e alma, pois estamos de algum modo infundindo-a mais da aspiração unitiva divina e, logo, divinizando-a, ou abrindo-a mais a tal Presença sacralizadora e harmonizadora.
O Amor é então profundamente purificador, redentor, iluminador, pelo que a nossa oração-aspiração é que saibamos abrir-nos cada vez mais a ele, morrermos nos nossos egos e separatividade e renascermos na unidade da inteligência e comunhão da Verdade.
Assim iremos alcançando aquela incandescência de sermos sóis e luas, ora emitindo ora acolhendo, e reflectindo a luz do Amor Primordial na intimidade e no firmamento humano e terrestre, ora apenas o incarnando no bom senso, na paz, no discernimento, na compaixão, no dinamismo de quem investiga,  divulga, cria e é activista,  artista, etc...
Sejamos mais o Amor, vencendo  o que o limita em nós e no Universo...
Sejamos, à nossa medida e na nossa missão de propósitos na vida, um Sol do Amor...

sábado, 16 de julho de 2022

Poemas de Kabir traduzidos por Rabindranath Tagores, os primeiros seis, e depois por mim. Com video de mantras e da tradução improvisada.

Tendo há dias gravado numa das noites ardentes deste Julho de 2022, a tradução dos seis primeiros poemas do místico hindu e sufi Kabir, seguindo a tradução inglesa de Rabindranath Tagores, no livro Kabir's poems, de 1915, com algumas hesitações e incorreções no quinto poema, resolvi hoje traduzir por escrito, com mais exactidão e ei-la. A gravação vai no fim e leva alguns comentários, e os por escrito de agora são  mais breves face aos belos poemas transcritos, e ao que já foi dito. Aum. Demos graças a Rabindranath Tagore e a Kabir!      Jai Guru...

I.      I. 13 Mo ko kahan dhunro bande

Ó devoto, onde andas tu a procurar-me?

Olha! Eu estou ao teu lado,

Não estou nem no templo nem na mesquita,

Nem estou nos ritos e cerimónias

Nem no Yoga e na renúncia.

Se tu és um verdadeiro procurador,

encontrar-me-ás rapidamente.

Encontrar-me-ás num momento.

Kabir diz: O Sadhu! Deus é a respiração de toda a respiração!»

Comentário: a observação perseverante e com amor da respiração consciente leva-nos à uma interiorização e proximidade maior do espírito e da Divindade...

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II. 1. 16     santa jat na pucha nirguniyan

«É inútil perguntar a um santo a casta à qual ele pertence

O sacerdote, o guerreiro, o comerciante e todas as 36 castas, todas elas procuram igualmente Deus.

É mera tolice perguntar de que casta pode ser um santo.

O barbeiro procura Deus, tal como a lavadeira e o carpinteiro.

Mesmo Raidas era um ser na procura de Deus

O Rishi Swapacha era um tanoeiro pela casta.

Tanto Hindus como Islâmicos atingiram o mesmo Fim, onde não há mais marca de distinção.»

Comentário: um dos sakhis (evidências) tradicionais atribuídos a Kabir corre assim: «Não perguntes a um sadhu a sua casta, mas sim acerca do seu conhecimento da Divindade; quando estás a decidir o preço de uma espada não é tão necessário considerar a bainha.»

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                        III      I. 57. Sadho bhai, jivat hi karo asa

Ó amigo! Aspira a Ele enquanto vives, aprende enquanto vives, compreende enquanto vives: pois é em vida que se encontra a libertação.

Se as tuas cadeias não forem quebradas enquanto vives, que esperança de libertação haverá quando morreres?

Não é senão um sonho vazio, que a alma tenha a união com Ele quando tiver deixado o corpo.

Se Ele é encontrado agora, Ele é encontrado então,

Se não, apenas vamos habitar na cidade da morte. [Yama]

Se tens união agora, tê-la-ás no além.

Banha-te na Verdade, conhece o Mestre verdadeiro, tem fé no nome verdadeiro [Sat Nam]!

Kabir diz: É o espírito da demanda que ajuda; Eu sou o servo deste Espírito da demanda"

Aqui e agora tem de ser a realização interior. E para isso o nome da Divindade deve ser repetido com fé, no caso de Kabir e do seu guru Ramananda sabemos nós que era Ram...

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IV. I.58. Bago na ja re na ja

Não vás ao jardim das flores

Oh alma amiga, não vás lá;

No teu corpo está o jardim das flores.

Toma o teu assento no lótus das mil pétalas [sahashara],

E nele contempla a Beleza Infinita.

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V        I. 68 avadhu maya taji na jay

Diz-me, Irmão, como posso eu renunciar a Maya [ilusão]?

Quando eu deixei de atar os laços, ainda assim eu atei a minha roupa sobre mim.

Quando deixei de atar a minha veste, ainda assim cobri o meu corpo nos seus folhos.

Deste modo, quando  abandono a paixão, vejo que a cólera permanece;

E quando renuncio a cólera, a ganância ainda está comigo;

E quando a ganância é vencida, o orgulho e vã glória permanecem.

Quando a mente está desprendida e lança fora a ilusão [maya], ainda assim agarra-se à letra.

Kabir diz, " Escuta-me, querido peregrino [sadhu]! O verdadeiro caminho raramente é encontrado"


Comentário: E tem de ser encontrado e começado a trilhar em vida, tal como a realização do Amor e a aspiração e a união à presença Divina íntima.

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VI          I.83     canda jhalkai yahi ghat mahin

A lua brilha no meu corpo, mas os meus olhos cego não a podem ver.

A lua está dentro de mim, e assim está também o sol.

O tambor não batido da Eternidade, soa dentro de mim; mas os meus ouvidos surdos não o conseguem ouvir.

Enquanto o ser humano clamar pelo Eu e pelo Meu, as suas obras são como nada.

Quando todo o amor do Eu e do Meu estiver morto, então o trabalho do Senhor está feito.

Pois o trabalho só tem o objectivo de adquirir o conhecimento: Quando tal vem, então o trabalho é posto de lado.

A flor desabrocha para o fruto: quando o fruto aparece, a flor murcha.

O almíscar está no veado, mas ele não o procura dentro de si: ele perambula em busca da erva.»

Comentário: Concentrar-nos no silêncio e no seu o som interior ajuda a serenarmos a mente e a reflectirmos melhor o espírito e a Divindade...

Aum Jaya Aum, Aum Jaya Guru!

                        

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Introdução aos "Poemas de Kabir", (2ª p.) por Evelyn Underhil e Rabindranath Tagore. Tradução brevemente comentada por Pedro Teixeira da Mota

«A história de Kabir está rodeada de lendas contraditórias, e não se pode confiar em nenhuma delas. Algumas emanam de uma fonte hindu, outras de fonte islâmica, e apropriam-se dele ora como um santo hindu ora como um santo sufi. O seu nome é, porém, praticamente uma prova concludente da sua ascendência Islâmica: e a mais provável versão é a que o apresenta como um filho verdadeiro ou adoptivo de um tecelão islâmico [Niru e da sua mulher Nima] em Benares, a cidade na qual tiveram lugar os principais acontecimentos da sua vida .

Na Benares quinhentista as tendências sincretistas da religião Bhakti [a do amor devoto ao Divino, seja no Cosmos, nos avatares ou no coração] tinham atingido o seu desenvolvimento máximo, e os Sufis e Bramânees parecem ter-se encontrado em debates, pois os membros mais espirituais de ambos os credos religiosos frequentavam os ensinamentos de Ramananda [1400-1476], cuja reputação estava então no seu apogeu. O jovem Kabir, em quem a paixão da religião era inata, viu logo em Ramananda o seu mestre predestinado; mas sabia quão frágil era a esperança de um guru hindu aceitá-lo como discípulo. Escondeu-se portanto junto às escadarias [dos gaths] do rio Ganges, onde Ramananda costumava banhar-se e isto fez com que o mestre, descendo para a água, chocasse com o seu corpo e exclamasse espantado: " Ram! Ram!" - o nome da incarnação na qual ele adorava Deus. 

Om Sri Ramamanda

 Kabir declarou então que tinha recebido o mantra da iniciação dos lábios de Ramananda, e foi por isso admitido no discipulado. Apesar dos protestos dos brâmanes e islâmicos ortodoxos, Kabir persistiu no que ele clamava, exibindo deste modo activamente o próprio princípio de síntese religiosa que Ramananda procurava estabelecer pelo pensamento. Ramananda parece tê-lo aceitado e, apesar das lendas islâmicas falarem do famoso Sufi Pir, Takki de Jhansi, como o mestre de Kabir na parte final da vida, o santo hindu [Ramananda] é o único mestre indiano para quem ele em algumas das suas canções se reconhece devedor.
O pouco que conhecemos da vida de Kabir contradiz muitas das ideias correntes concernentes a mística oriental. Ignoramos completamente os estágios da disciplina através das quais ele passou e o modo como o seu génio espiritual se desenvolveu. Parece ter permanecido durante anos discípulo de Ramananda, juntando-se às discussões teológicas e argumentações filosóficas que o seu mestre mantinha com os grandes Mullahs [religiosos islâmicos] e Bramanes [os religiosos hindus]; e a esta fonte causal devemos provavelmente a sua familiaridade com a terminologia [e conceitos próprios] de filosofia Hindu e Sufi.
Ele pode ter-se submetido ou não à educação tradicional do contemplativo Hindu ou Sufi: é claro, que de modo algum adoptou a vida do asceta profissional, ou a de estar retirado do mundo com o objectivo de se entregar às mortificações corporais e à demanda exclusiva da vida contemplativa. Lado a lado com a sua vida interior de adoração, a sua expressão artística em música e palavras - pois ele era um hábil músico tal como poeta - ele viveu a sã e diligente vida do artesão Oriental. Todas as lendas concordam nisto: que Kabir era um tecelão, uma pessoa simples e sem estudos, que ganhava a sua vida no tear. Tal como Paulo [de Tarso, o apóstolo], o fabricante de tendas, [Jacob] Boehme [1575-1624, místico ocultista], o sapateiro, [John] Bunyan [1628-1668, puritano], o funileiro, [Gerhard]Tersteegen [1697-1768, pietista protestante], o fabricante de fitas, ele sabia como combinar visão e indústria; o trabalho das suas mãos ajudava mais do que impedia a meditação desapaixonada do seu coração.
Detestando as austeridades meramente corporais, ele não era um asceta mas um homem casado, o pai de uma família - uma circunstância que as legendas hindus de tipo monástico em vão tentam esconder ou explicar - foi a partir do coração da vida comum 
que ele cantou, arrebatadas pelo amor divino, as suas líricas.
Nisto as suas obras corroboram a versão tradicional da sua vida.
Constantemente enaltece a vida doméstica, o valor e a realidade da existência diurna, com as suas oportunidades de amor e renúncia, ridicularizando a santidade profissional do Yogi, que "tem uma grande barba e os cabelos enlaçados, e que parece um bode", e todos aqueles que pensam ser necessário fugir de um mundo penetrado pelo amor, a alegria e beleza - o próprio teatro da demanda do ser humano - para encontrar a Realidade Una que "espalhou a Sua forma de amor através de todo o mundo".
Não é preciso muita experiência da literatura ascética para reconhecer a coragem e a originalidade desta atitude em tal tempo e época. Do ponto de vista da santidade ortodoxa, seja hindu ou islâmica, Kabir era plenamente um herético, e o seu sincero desagrado de toda a religião institucional, de todas as obrigações externas - que eram tão árduas e intensas como as dos Quakers [reformistas místicos protestantes] - completavam, no que diz respeito à opinião eclesiástica, a sua reputação como um homem perigoso. A A simples união com a Realidade Divina que ele enalteceu constantemente, tal como o dever e a alegria de cada alma, era independente tanto dos rituais como das austeridades corporais. O Deus que ele proclamava não estava nem na Kaaba nem no monte Kailas. Aqueles que o procuravam não precisavam de ir tão longe, pois Ele esperava ser descoberto em qualquer lugar, mais acessível "à lavadeira e ao carpinteiro" do que ao que se considera uma pessoa santa. Deste modo, todo o aparato de piedade, tanto hindu como islâmico - o templo e a mesquita, o ídolo e a água santa, as Escrituras e os sacerdotes - eram denunciados por este inconveniente poeta de visão clara, como coisas mortas materializando-se entre a alma e o seu amor - 

«Todas as imagens não têm vida, não podem falar:
Eu sei, pois gritei-lhes alto.
As Puranas e o Alcorão são meras palavras:
      Levantando a cortina, eu vi.» (Poemas XLII, LXV, LXVII)

Este tipo de pensamento não podia ser tolerado por qualquer igreja organizada, e assim não surpreende que Kabir, tendo a sua sede em Benares, o próprio centro da influência sacerdotal, tivesse sido sujeito a uma perseguição considerável. A conhecida lenda de uma bela cortesão ter sido enviada pelos Bramânes para tentar a sua virtude, e que contudo se converteu, como a Maria Madalena, pelo seu súbito encontro com um amor mais elevado, preserva a memória do medo e do desagrado com que ele era olhado pelos poderes eclesiásticos. Pelo menos uma vez, após a realização de um suposto milagre de cura, foi levado diante do sultão de Delhi [e depois rei] Sikandar Lodi [1458-1517], e acusado de possuir poderes divinos [ou mesmo, como o mártirAl-Allaj, uma unidade-identidade-não dual com a Divindade]. Mas Sikandar Lodi, um governante de considerável cultura, era tolerante com as excentridades das pessoas santas pertencendo à sua fé. Kabir, sendo pela nascença islâmico, estava fora da autoridade do Brâmanes, e classificado tecnicamente [ou considerado pertencer] nos Sufis, para os quais uma grande liberalidade (latitude) teológica era permitida. Pelo que, embora no interesse da paz tivesse sido banido de Benares, a sua vida foi poupada. Isto parece ter acontecido em 1495, quando ele estava com cerca dos 60 anos de vida. É o último acontecimento da sua carreira do qual temos um conhecimento seguro. A partir de então parece ter-se movido por entre várias cidades do norte da Índia, o centro de um grupo de discípulos, continuando em exílio essa vida de apóstolo e poeta de amor, para a qual, como ele declara numa das suas canções,  estava destinado "desde o começo do tempo". Em 1518, um homem idoso, quebrado na saúde, e com as mãos tão fracas que já não conseguia mais fazer a música que amava, morreu em Maghar, perto de Gorakhpur.
Uma bela lenda conta-nos que após a sua morte os discípulos
islâmicos e hindus discutiram a posse do seu corpo, o qual os islâmicos queriam enterrar e os hindus queimar. Enquanto eles debatiam juntos, Kabir apareceu diante deles e disse-lhes que levantassem o véu e que olhassem o que estava em baixo. Assim fizeram, e encontraram em vez do cadáver um monte de flores, metade das quais foi sepultada pelos islâmicos em Maghar, e a outra metade levada pelos hindus para Benares a fim de ser queimada - uma conclusão apropriada para uma vida que tornara fragrante as mais belas doutrinas dos dois grandes credos.»


                             

Como breve comentário apenas destacaremos o ambiente sincretista
que se viveu frequentemente na Índia dos séculos XV e XVI entre os místicos hindus e islâmicos, de que Kabir é um exemplo, tal como Dara Shikoh (1615-1659) será uns anos depois, este também deixando obras tão valiosas que manifestam bem esse dialogo inter-religioso, e a quem já dediquei alguns textos no blogue e gravações no youtube. Foi pena terem sido poucos os missionários portugueses ou ocidentais a conseguirem sair das camisas de forças que a dogmática ou a ortodoxia católica lhes impuseram.
Segundo realçar a espiritualidade directa e profunda de Kabir em nada dependente de textos e rituais, templo e mesquitas, hierarquias humanas, mas basicamente desenvolvendo pelo Amor a sua espiritualização e comunhão com a Divindade
Diz-nos Evelyn Underhil que sabemos pouco dos passos ou técnicas praticadas pelo poeta místico, e Rabindranath Tagore que as devia conhecer nada disse, mas podemos deduzir que elas foram as típicas dos sufis e hindus, de que os  bauls da Bengala são o melhor exemplo, e que se baseavam na oração, no canto e na dança exaltada no amor ao divino e com posteriores momentos de silencio, meditação, visão, esta em espacial da presença divina no coração.
Talvez por isso surja um pouco como uma posição mais preservadora das duas religiões que realista a afirmação de Evelyn Underhill que Kabir tornara mais fragrantes as melhores doutrinas das duas religiões, já que mais do que doutrinas se tratava sobretudo da experiência do amor, bhakti, dedicado ao ser divino, claro utilizando algumas das práticas dos sufis e yogis, nomeadamente os cantos e a repetição dos nomes divinos, que em geral se recebe directamente do guru na iniciação e que, como vimos, Kabir recebera de um modo algo ardiloso de Ramananda. Deste Ram, Ram, que foi também o mantra principal do ou quem sabe mesmo dado por um guru, Mahatma Gandhi, ficou em português o ramram, pois esse repetir cadenciado do mantra, na nossa psicologia linguística ficou associada a uma alma paciente, capaz de repetir ou de viver calmamente, repetindo demoradamente um simples nome de Deus, mas com efeitos muito profundos por vezes nos corpos subtis e espirituais, tal como algumas poesias ou canções de Kabir ilustram, por vezes ligadas com o centro íntimo do coração ou ainda ao 3º olho, mas isso veremos num próximo comentário às canções de Kabir, sem dúvida um mestre guru ou pir, da realização divina transversal à essência de todas as verdadeiras religiões... Aum Kabir!

terça-feira, 12 de julho de 2022

Introdução aos "Poemas de Kabir", por Evelyn Underhill e Rabindranath Tagore. Tradução brevemente comentada por Pedro Teixeira da Mota.

                                         

Rabindranath Tagore (1861-1941), como grande poeta e místico indiano, quis prestar homenagem a um dos maiores poetas e místicos do seu país e resolveu traduzir para inglês os poemas-cantos de Kabir (1398 ?-1518), dando à luz em Fevereiro de 1915, Kabir's Poems, sendo assistido pela estudiosa inglesa de misticismo Evelyn Underhill (1875-1941)  Como tal antologia não está traduzida em Portugal, embora haja edições dos poemas de Kabir, resolvemos apresentar a introdução, pois é valiosa na sensibilidade e espiritualidade, e assim acrescentamos mais textos neste blogue  dedicados tanto a Rabindranath Tagore como à Tradição Espiritual Indiana, o Sanatana Dharma, e seus mestres, e até porque ainda visitei em 1995 perto de Calcutá o seu centro Shantiniketan, com a famosa ao ar livre Universidade  Visva Bharati, tendo tido um bom diálogo com um dos responsáveis e que espero um dia partilhar.

Embora a introdução esteja assinada por Evelyn Underhill e manifeste a sua cultura de ocidental e cristã, cremos que a aprovação, senão mesmo sugestões, de Rabindranath também se terão exercido no texto. Ora ouvirmos  místicos falarem de místicos, pode impulsionar em nós a correnteza de Amor divino que ambos expressaram tão sincera e ardentemente embora Rabindranath Tagore experimentasse e cantasse também fortemente o amor humano e o da Natureza, enquanto Kabir, embora casado e tendo tido filhos,  sentiu ou dedicou mais o amor ao amor em si, à realização espiritual, à Divindade e à fraternidade dos adoradores de Deus, acima das denominações e dogmas das religiões e seitas, exprimindo os seus poemas a partir de vivências yogicas, meditativas ou devocionais fortes, estimuladas pelo canto ou kirtan, a oração, os mantras, por vezes mesmo a dança, sendo essas canções ainda hoje muito populares, havendo yogis, ascetas e bauls que o têm como mestre do mestre, ou seja, como param guru, e por isso são chamados os Kabir panthis, os que seguem o caminho (panth) de Kabir...


Oiçamos então a introdução: «O poeta Kabir, de quem uma selecção de cantigas é aqui pela primeira vez oferecida aos leitores de inglês, é uma das mais interessantes personalidades da história do misticismo indiano. Nascido em, ou perto, de Bénares, de pais islâmicos [tecelões], e provavelmente perto do ano de 1440,  ainda jovem tornou-se discípulo [após vários esforços] do célebre asceta hindu Ramananda. Ramananda levou até ao Norte da Índia  o revivalismo religioso que Ramanuja, o grande [místico e filósofo] reformador do séc. XII do Bramanismo, iniciou no Sul. Esta reviviscência foi em parte a reacção contra o crescente formalismo do culto ortodoxo, em parte uma asserção das exigências do coração contra o intenso intelectualismo da filosofia Vedanta, o monismo exagerado que esta filosofia proclamou. Na pregação de Ramanuja tal reacção tomou a forma de uma ardente devoção pessoal ao Deus Vishnu, como representando o aspecto pessoal da natureza Divina: essa mística "religião do Amor" que faz o seu aparecimento a certo nível da cultura espiritual, e que credos e filosofias são impotentes em  matar.
Ramananda... Será uma vera efígie...?

Apesar de tal devoção ser indígena [ou inata] no Hinduísmo, e encontrar expressão em muitas passagens da Bhagavad Gita, havia no seu revivalismo medieval um largo elemento do sincretismo. Ramananda, através de cujo espírito, diz-se,  terá chegado [a  devoção a Rama,  avatar ou incarnação de Vishnu, e a influência da Bhagavad Gita] a Kabir, parece ter sido uma pessoa de  cultura religiosa ampla, cheia de entusiasmo missionário.  Vivendo numa época  na qual a poesia apaixonada e a  filosofia profunda dos grandes místicos Persas, Attar, Saadi, Jalalu'ddin Rumi e Hafiz  exerciam uma influência poderosa no pensamento religioso na Índia, ele sonhou reconciliar esse misticismo pessoal e intenso  Maometano com a teologia tradicional do Bramanismo.

Alguns consideram que estes grandes líderes religiosos  foram influenciados pelo pensamento e a vida Cristã; mas como é um ponto sobre o qual as  autoridades competentes mantêm pontos de vista amplamente divergentes, tal discussão não será aqui tentada. Podemos contudo afirmar com segurança, que nos seus ensinamentos, duas - ou talvez três  - correntes aparentemente antagonistas de intensa cultura espiritual se encontram, tal como a Judaica e a Helenística se cruzaram no começo da Igreja Cristã: e  uma das mais notáveis características do génio de Kabir é ele ter sido capaz nos seus poemas de fundi-las [islâmica e hindu] numa.

Sendo um grande reformador religioso, o fundador de uma seita à qual pertencem ainda hoje cerca de um milhão de Hindus do norte,   é todavia  como poeta místico que Kabir vive supremamente em nós. O seu destino foi o de muitos dos reveladores da Verdade. Inimigo do exclusivismo religioso,  procurando acima de todas as coisas iniciar os seres humanos na liberdade das crianças[ou filhos] de Deus, os seus seguidores honraram a sua memória reconstruindo num novo local as as barreiras que ele esforçara-se por deitar abaixo. Mas as suas maravilhosas canções sobrevivem, as expressões espontâneas da sua visão e do seu amor; e é por estas, não pelos ensinamentos didácticos associados ao seu nome, que ele faz o seu apelo imortal ao coração. 

Nestes poemas uma vasta diversidade de emoção mística é trazida à acção: desde as mais sublimes abstrações, à paixão mais extra-mundana pelo Infinito, até à mais íntima e pessoal realização de Deus, expressa em metáforas naturais e símbolos religiosos extraídos indiferentemente da crença hindu ou islâmica. 

É impossível dizer o seu autor se era um Brahman ou Sufi, Vedantico ou Vaishnava. Ele é, como ele  diz, «ao mesmo tempo a criança da Allah e de Rama». Esse Supremo Espírito a quem ele conhece e adora, e a cuja alegre amizade ele procurou induzir as almas de outras pessoas, enquanto incluía todas as categorias metafísicas e todas as definições de credos, transcendia-as; e contudo cada uma delas contribuía algo para a  descrição dessa Infinita e Simples Totalidade que se revelava a ele próprio, e de acordo com a medida deles, aos amantes fiéis de todos os credos». 

Concluindo eu agora,  seja por que nome, mantra sagrado ou concepção divina nos dedicarmos a orar, meditar ou contemplarmos,  consigamos nós estabilizar  a nossa mente e alma e elevar a intensificar  a chama em nós do amor  pela Fonte e deste modo aprofundarmos  a sintonização da nossa consciência com ela, para  podermos comungar mais seja a "Infinita e Simples Totalidade", como sentiram e poetizaram tão bem Kabir e Rabindranath Tagore, seja a devoção amorosa com a Divindade no aspecto ou face pessoal, feminina ou masculina, que mais nos diz ou toca.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Das amizades, e do Amor, e das suas potencialidades e realizações.

Encontro Internacional de Yoga em Zinal, Suíça, em Setembro de 1985, com quatro belas almas praticantes de Yoga e o swami Amaldas, discípulo de Bede Griffiths. Conhecera-os no seu ashram Shantivanam, nas margens do rio Kavery, em Tamil Nadu, onde estive um mês.

 Na rotina ou banalização da vida quotidiana, ou  na conflitualidade ou indiferença em que ela nos envolve, acabamos por deixar enfraquecer ou mesmo perecer a percepção do valor qualitativo de alguns seres, e logo da amizade com eles (na Índia denominada até na sua dimensão espiritual, satsanga, companhia da verdade) e, embora até ele nos possam surgir em sonhos, indicando-nos assim tal, já que os encontramos no mundo interior semi-consciente, ou no além subtil e paralelo das almas semi-despertas, pouco fazemos no dia a dia, ou na ocasião, para estabelecermos  elos ou laços de amor, e dialogarmos de modo a ganharmos jus a que tais amizades ou pessoas entrem  numa certa profundidade e perenidade de manifestação ou mesmo numa exemplaridade ou complementaridade arquetípica frutuosa.

Quantos seres valiosos ou mesmo fabulosos não morrem semi- frustrados nas suas melhores potencialidades e diálogos que estimulassem  capacidades e realizações luminosas?  Quantas vezes não sofremos pela incapacidade de encontrarmos ou mantermos os diálogos valiosos que trariam mais luz a nós e aos outros, e pelos quais entraríamos em estados expandidos de consciência, obteríamos intuições valiosas, partilharíamos gnose libertadora, geraríamos um corpo espiritual mais consciente e luminoso e sentiríamos mais o Amor e a Divindade?

Em geral  a audácia, para contactar e aprofundar elos com tais pessoas, e mesmo  pressentindo as que estarão em afinidade vibratória de demanda dos mistérios da Vida,  é pouca e deixamo-nos ficar nas mais limitadas rotinas, amizades e afinidades profissionais, familiares, emocionais, mas que não conseguem uma maior floração do Amor Inteligência que nos abre aos grandes mistérios da vida, do espírito, do Cosmos e da Divindade...

Na realidade a pérola principal das amizades e diálogos, a que mais deveríamos demandar, é a que permitirá melhor despertar o espírito, isto é, a percepção pela nossa alma  do espírito e do Amor Divino e das suas energias criativas e abençoadoras subtis, e a sua vivência a dois ou em família Mas quantos de nós olvidamos tal potencialidade, ou deixamos soçobrar e escapar tal raridade? 

É realmente uma bênção  estarmos muito bem com alguém, vivermos em plena entrega e confiança e podermos dar as mãos ou abraçar-nos em amor, proporcionando múltiplos efeitos, tais como o equilibrar das polaridades e hemisférios cerebrais e o irradiar bemfazejo para o universo, numa relação conducente à  quietude  anímica e capaz de nos tornar mais sensíveis ao Espírito e ao Amor e simultaneamente à sua manifestação e até desvendação recíproca nos dois espíritos individualizados em corpos e almas que se amam, se apoiam e se estimulam.

Assim, esta intensificação da alma em amor com outrem, e que é similar nos seus efeitos religativos à sua harmonização pela acalmia e interiorizaçao meditativa, é  algo que constantemente nos deveria desafiar a procurar ou a perseverar, para não cairmos na tal medianidade pela qual tantas vezes nos desligamos da união respiratória e psíquica com as correntes espirituais divinas que se derramam a todo momento sobre a humanidade e que a sós, ou a dois, ou a mais, podemos e devemos sentir, invocar, intensificar e comungar. Neste sentido corre o dito do mestre Jesus: "Onde dois ou três se reunirem no meu nome, na minha vibração, em Amor, Eu, o Amor, o Espírito, o Mestre, estou neles..."

Sejamos cavaleiros e cavaleiras do Amor, ou perseverantes Fiéis do Amor, para que tal possa acontecer em muitos seres, para melhoria luminosa da Humanidade...

terça-feira, 5 de julho de 2022

Reflexões sobre as questões, demandas e lutas conscienciais nos nossos dias...

 
Uma das questões que se põe sempre face aos múltiplos ensinamentos psíquicos e espirituais é congraçar a visão materialista da mente, na qual ela é apenas um epifenómeno do cérebro, com a existência de um espírito, seja individual seja universal ou de não-dualidade, que certamente se pode admitir seja tanto em termos de unidade da energia-matéria como da consciência-informação e com a hipótese de nos considerarmos ou sermos tanto mentes como centelhas individualizadas de tal consciência e, portanto, chamados ou desafiados ao discernimento da acção correcta ou justa no dia a dia consciencial e social, face a tanto determinismo e condicionalismo externo, face a tanto conflito, ignorância, alienação e sofrimento.
Se a dualidade e oposição espírito-matéria está constantemente a ser ultrapassada pelo reconhecimento que alguns fazem de que mesmo a matéria dita inorgânica está dotada de consciência, ou que à energia das partículas subjaz uma consciência e que esta é portanto a grande substância base do Cosmos, provinda da Fonte Primordial (Amorosa e Divina), mesmo assim não há dúvidas que existem diferenças de graus de consciência detidos pelos átomos de um cristal de quartzo leitoso, um protozoário, um rouxinol, um cérebro ou um ser humano
Será talvez então exagerado ou despropositado acreditarmos que a realização máxima do ser humano possa ser a sua extinção como consciência individual, num nirvana, num não-ser, mesmo que tal possa ser visto como libertação em relação à ignorância e sofrimento anterior, como querem muitas linhas budistas ou de não-dualidade, para várias delas o mundo, a manifestação, sendo apenas ilusão, transitória, desprovida da presença do tal espírito substante.
Se olharmos para a humanidade, observaremos que mais de 90% das pessoas estão a milhas ou anos de luz de um estado pleno de equanimidade e de libertação e, que mesmo ao longo séculos, pese a grande plêiade de santos e mestres, poucos seres atingiram  níveis de unificação em si próprios e de libertação de desejos e actos no mundo, que possam extinguir-se libertadoramente no fim das suas vidas terrenas.
Mas mesmo que assim fosse, ou seja, por detrás de tal hipótese, espreita-nos outra, a que se prende com as origens e fins da vida humana, nomeadamente se o seres humanos nascem ou vêm à Terra para aprender, para participar, para se unir a Deus, ou para se libertar da ignorância e sofrimento inerentes à manifestação seja terrena seja subtil, e se depois se extinguem, ou se antes continuam ou até reincarnam, como muitos acreditam provavelmente erradamente. E, sabendo-se pouco disto, também as respostas, embora muitas, são pouco firmes ou seguras...
Embora as experiências de morte temporária, ou near death experience, ou de projecção de consciência, dêm já alguns vislumbres teoréticos da sobrevivência da consciência fora do corpo físico, embora os relatos ou doutrinações, com muitas mistificações, que espíritas, clarividentes e mestres apresentam, contenham alguns contributos valiosos, inegavelmente sabe-se pouco, cientificamente, ou seja, com observação cruzada de vários observadores objectivos, quanto  à vida no além (que nos envolve na nossa pluridimensionalidade...) e do tipo de consciência e corpo subtil ou espiritual que sobrevive, pois seja os cinco sentidos seja a mais sensível maquinaria não conseguem captar tais níveis vibratórios, que ficam então no domínio da clarividência, da intuição, iniciação, da mística e do esoterismo, infelizmente com muita mistificação e carnaval.
Onde a investigação tem mais avançado é quanto aos estados modificados de consciência, com os contributos das neurociências e da física quântica, começando a adquirir-se uma visão  mais profunda e exacta da constituição dos seres, do cérebro e da natureza dos fenómenos que nos constituem e rodeiam, embora a subjectividade da experiência da auto-consciência escape sempre à objectivação, pois só cada um é que sabe mesmo quem ele é, ou se sente a si mesmo.
Esta tarefa e demanda do auto-conhecimento essencial não interessa muito aos donos da ciência e do dinheiro, e pesem grupos como os da BIAL, ou do IONS e outros de investigação científica parapsicológica ou de estados modificados de consciência,  temos de ser nós a realizá-la, a sós, a dois ou em pequenos grupos, de facto bem difíceis de se constituir com as afinidades resistentes a tanto factor de desagregação e conflito, que nestes últimos anos se intensificaram fortemente por via da manipulação das narrativas oficiais que se tentam impor opressivamente sobre a humanidade, numa hipotética nova ordem mundial demasiada anti-humanista ou mesmo anti-humana. 
Grandes lutas interiores e exteriores em que estamos pois envolvidos e felizes dos que encontram as almas afins ou a alma-gémea com quem podem aprofundar vivencialmente a demanda do Graal do Conhecimento e do Amor Divinos, com perseverança e vencendo as muitas oposições à grande Obra...
Boas inspirações e frequentes realizações então da sua consciência e corpo espiritual, livres e libertadores! Lux, Amor!

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Madame Blavatsky e os Yogis, por Carlos Cirilo de Machado, o 2º Visconde de SantoTirso. Uma crónica bem humorada.1924.

                                                          

Carlos Cirilo Machado (1865-1919), o 2º Visconde de Santo Tirso, estudou Direito na Universidade de Coimbra, foi Alferes de Cavalaria e muito jovem interessou-se pela filosofia, a literatura, a espiritualidade ("sou espiritualista de nascença, e tenho o espiritualismo agravado pela reflexão"), a política, vindo a ser um jovem discípulo e amigo de Antero de Quental, de quem nos resta uma curta mas valiosa correspondência (duas cartas), por mim já abordada neste blogue. Foi diplomata em Itália, Espanha, Londres, Estados Unidos da América, Bruxelas e Rússia, exercendo com grande qualidade algumas das missões diplomáticas e jurisdicionais espinhosas, nomeadamente contra a ganância inglesa, a incursão do Dr. jameson, no Transvall,  e norte-americana  no caso do caminho de ferro de Lourenço Marques. 

                                      

O texto que transcrevemos, com a ajuda da Cláudia Lopes, é o terceiro dos vinte e nove artigos compilados no livro Cartas de Algures, editado pela Portugália Editora, em 1924, e que tinham sido originalmente escritos para os jornais do Brasil O Estado de São Paulo e O País, onde tais crónicas tiveram grande sucesso pela  cultura, sensibilidade e apurado sentido de humor que Carlos Cirilo Machado manifestava. Aliás os títulos dos artigos mostram bem a sua  funda sensibilidade e a ampla capacidade cognitiva, e como sabia discernir e com verve iluminar as contradições e mistificações, equívocos, paranóias e filosofias baratas ou de massas em que tantos vivem, e destacaremos apenas A ideia de justiça, Da felicidade, Do matrimónio, Da dança, Da música, Do suicídio, Das mulheres, Das crianças, Do jogo, Do alcoolismo, Dos anúncios. Um dos artigos, O Divinitante, destaca-se por ser uma sóbria reflexão sobre a cognoscibilidade e a crença em Deus, temas que sempre interessaram Carlos Cirilo de Machado e que com Antero de Quental os debateu. Interessante, pensei, seria discernirmos o que em alguma destas crónicas teve influência anteriana, já que pelo menos neste último ensaio pressentimos dois passos, um em que parece aludir ao materialismo do dr. Sousa Martins, outro em que realça a incapacidade científico-filosófica para explicar “o espírito ou a alma”: «Porque tudo que sejam células, protozoárias e protoplasmas, selecção natural, luta pela existência, o Logos e o Imanente só nos levam a meio caminho». No fim, porém, do artigo, confirmando a interrogação inicial, ele cita mesmo Antero, pois escreve“não é nem a ciência, a filosofia ou a teologia” que dão o conhecimento da Divindade mas tal «vem da fé. E a fé vem da graça, que é um milagre. Para haver a graça é preciso que haja Deus, e para crer em Deus é preciso que haja graça. É evidentemente um círculo vicioso. Mas, de quantos círculos viciosos eu conheço, é este o mais capaz de produzir virtudes. É por isso que entre os crentes há o tolo que crê porque pensa que raciocina, e há o pensador que reconhece a impotência do pensamento, e que refugia-se na fé consoladora e pacífica [Ou então ora, medita, contempla e inicia-se na gnose espiritual e divina, sob a graça directa ou indirecta, direi eu...].

«Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.»

Foi Antero de Quental quem escreveu isto. Não foi um pensador banal de vulgarização filosófica em folhetos a vintém.
Entre uns e outros - os crentes e os descrentes – há os indiferentes, cujo espírito se engorda com bolota nos montados do Alentejo.» 

Anoto que no seu outro livro de crónicas ou ensaios, De Rebus pluribus, 1923, há três menções magistrais a Antero de Quental e  espero brevemente partilhá-las, comentadas.

Leiamo-lo agora então, nas Cartas de Algures, a propósito da fundadora da Teosofia, Helena Blavatsky e das práticas yoguicas semi-miraculosas, ou talvez mais de fakir, que ela divulgava, apreciadas com bastante humor por Carlos Cirilo de Machado, e que dispensam comentários: 

                                         
                                             Dos Joghi [ou Yogis]

Conta M.me Blavatsky, a pitonissa da Teosophia, que do mesmo modo que

A rosa para ser rosa
Tem de ser de Alexandria
E a mulher p'ra ser formosa
Deve chamar-se Maria

assim também um Yogi, para ser Yogi, tem de ser perfeitamente limpo, não só de espírito, mas de corpo. Esta afirmação inspira-me uma profunda simpatia pelos Yogi, pois há pessoas cujo espírito é perfeitamente imaculado, mas cujo corpo está pedindo os rigores de um banho turco, por se achar fora da alçada do banho ordinário e da espuma de sabão; ao passo que outras, de um escrupuloso asseio corporal, têm almas de suínos. O mais vulgar porém, é encontrar espíritos crapulosos em corpos de suspeita limpeza.
Não sucede isso aos Joghi da Índia, onde M.me Blavatsky bebe a essência da Teosofia, que depois espalha pelo mundo em saquetas e pílulas e artigos nos jornais [ou revistas] daquela religião exótica.
Segundo esta estimável senhora, não basta aos Yogi ter o espírito limpo por dentro e o corpo limpo por fora. Um e outro tem que estar imaculados por fora e por dentro.
A limpeza interior do espírito é uma coisa simples, conquanto não seja vulgar. Quem não tem pensamentos crapulosos, decerto não formula as suas ideias em termos vis – e nisso consiste o asseio interno e externo do espírito. Para o asseio interno do corpo tem a farmacopeia muitos recursos, mas nenhum é satisfatório. Conseguem-no os Yogi recorrendo simplesmente à água.
Eu sempre considerei a água um medicamento perigoso, e estimaria ver nas garrafas em que ela hoje se vende um rótulo amarelo com uma caveira sobre duas tíbias, que é o brasão de armas da Morte, e por baixo em grandes letras pretas o letreiro veneno só para uso externo. A razão do meu preconceito é dizerem-me os sábios que a água é o veículo de vários micróbios – e, portanto, de varias doenças, enquanto a ciência não reabilitar o micróbio. Para ser inocente, a água tem de ser fervida e filtrada, ou então engarrafada, a ponto de deixar de ser água. E neste ultimo caso produz geralmente dispepsias.
Nunca vi peixes morrerem de morte natural, a não ser em bocais de vidro, e esses creio que morrem doidos. Os outros são apanhados em redes, ou então num anzol, quando não preferem, contra as regras do jogo, comer a isca e praticar no anzol operações a que ele não é originariamente destinado, como o prova o seu feitio. A razão disto, a meu ver, é que os peixes empregam a água para uso externo. As pessoas que morrem afogadas, é porque fazem também dela uso interno. Os Yogi, porém, procedem com estas pessoas, cuja prudência tem resultados fatais, e não como, os peixes. Nisso está o milagre. 

Estes santos hindus tem dois meios de purificar o interior. E ambos M.me Blavatsky revela sem pejo, porque não deve haver
pejo de revelar a verdade.
O meio mais natural, ou pelo menos mais compreensível, é
beberem muitas canadas de água, a qual, obedecendo à lei de gravitação universal, providencialmente descoberta por Sir Isaac Newton, quando lhe caiu na testa uma maçã – o que prova que desde o princípio do mundo a maçã teve sempre uma influência decisiva nos destinos da Humanidade, o que não a acontece ao peru – desce rapidamente por o aparelho digestivo, arrastando na caudalosa corrente, todas as impurezas que porventura existam no corpo do Joghi. Compreende-se. A água entra pelo orifício superior e sai pelo orifício inferior da canalização. Não é vulgar, mas compreende-se.
O outro processo é mais maravilhoso. Senta-se o Yogi num semicúpio. E, pela acção do espírito sobre a matéria, a água sai pela boca até o Joghi ficar sentado no enxuto.
Eu, que sou espiritualista de nascença, e tenho o
espiritualismo agravado pela reflexão que vem dos anos e a ignorância que vem do estudo – pois sabe tudo quem nunca estudou nada- acredito piamente na influencia do espírito sobre a matéria. Mas nunca imaginei que ela fosse até ao ponto de, sem bombas nem diferença de nível – antes pelo contrário - converter um homem de bem num repuxo de jardim ou num poço hertziano.
Isto afirma M.me Blavatsky, e, com devota
estupefacão, repetem, crentes, os teosofistas. 

Helena P. Blavatsky com dois teosofistas, em 1884.
Não tentarei explicar o que seja a Teosofia, porque não a entendo, bem, embora haja quem tenha o talento de explicar largamente aquilo que não percebe, e consiga com as suas explicações fazer perceber aos outros, que assim revelam inteligência acima do vulgar. Se a etimologia ainda não levou o destino da genealogia e significa alguma coisa, a palavra, derivada do grego, quer dizer Ciência de Deus. E acho estranho que a Ciência de Deus leve a gente a não saber qual é o lado mais próprio para beber água sem aparelho especial. Esta descoberta de M.me Blavatsky não sei se adianta muito o conhecimento da Divindade; mas é o que eu conheço de mais perfeito em género cambalhotas. Só sei dizer que Teosofia é uma palavra grega, que designa uma religião indiana, professada por uma senhora [ucraniana-russa] em jornais ingleses. Lembra menos uma religião que uma salada russa. E não me refiro à salada russa política, mas à que é feita de legumes, a qual é mais agradável ao paladar e menos indigesta, como o pode ainda testemunhar o malogrado tsar Nicolau II, se são verdadeiras as misteriosas doutrinas teosofistas, em que os mortos vêm conversar com os vivos, de perna traçada e cigarro na boca.
Assim purificados, e estabelecido o predomínio do espírito sobre a matéria, um Joghi pode durante um ano ou mais, estar metido num caixão selado e enterrado, sem comer nem beber, nem gastar roupa e calçado, o que é de um valor incalculável nestes tempos de guerra e de açambarcadores de subsistências e de outros objectos, que são, para quem não é Joghi, de primeira necessidade. Uma família de Joghi deve ser uma coisa extremamente económica.
Um chefe de família, cujos rendimentos não tenham crescido na proporção da carestia da vida, não tem mais que fazer do que meter toda a família num semicúpio. E quando, pelo poder do espírito, houver convertido a mulher e os filhos em outros tantos geisers, faz enterrar-se a si e à família inteira, sem dar parte a ninguém alegando para essa falta de atenção o estado de consternação em que se acha; e determina em testamento que desenterrem tudo quando estiver assinada a paz e restabelecido o preço normal dos comestíveis, dos vestíveis e dos calçáveis. E durante esse tempo não se rala. Terminado ele, volta toda a tropa à vida ordinária, com o capital acumulado, e tendo até recebido, se deixou um procurador honesto, o seu seguro de vida. Não me consta que nas apólices de seguros esteja descriminada a morte temporária. Devo, porém, dizer que esta imprudência me surpreende nas companhias de seguros, que, para serem dignas de crédito, se seguram a si próprias antes de mais ninguém. 

Há muita gente que não acredita nos milagres de Lourdes, e acredita nestas bombas espirituais, que são mais difíceis de fiscalizar e não são mais fáceis de compreender. Para certos milagres incontestáveis, os sábios acharam a explicação natural e óbvia chamando-lhe auto-sugestão. Eu sei perfeitamente o que é um milagre. É a tradução de vocábulo miraculum, que quer dizer coisa admirável, porque é incompreensível. Está cheio de milagres o mundo, e como está cheio de milagres, está naturalmente cheio de superstição e crendices. As crendices políticas são as mais numerosas, e os curandeiros políticos são legião. Estes curandeiros livram com encantamentos e palavreados ás multidões que sofrem de todos os seus males, e têm pastilhas para tirarem as nódoas sociais. Tudo isto são miracula. Todavia, se toda a gente sabe pouco mais ou menos o que seja um autocrata e um automóvel, ainda não encontrei quem me explicasse cabalmente uma auto-sugestão. Que sejam, pois devidos à piedade da Virgem, que apareceu a Bernadette [Soubirus], ou á mágica do vocábulo, que apareceu aos sábios, os fenómenos de Lourdes não deixam de ser milagrosos. Não me admira portanto, o caso da lavagem dos Joghi contado por M.me Blavatsky, mas custa-me a acreditar na sua veracidade, enquanto não vir com os meus olhos o fenómeno da conversão do espírito num motor de bomba hidráulica. O caso mais parecido que eu conheço é o de um amigo que, em que se sentando numa pedra fria, tem uma constipação de cabeça. Mas não lhe sob a pedra à cabeça nem a deita pela boca fora [Caso de um pseudo-guru indiano actual que deita ovos de ouro pela boca]. É portanto um caso muito menos palpitante. Não sei bem o caminho que leva a auto-sugestão, aliás lembraria que seria devido a esta causa, cuja explicação os sábios entendem tão bem, embora a minha ignorância curiosa 
a não penetre.
O que me faria meditar, se não me visse obrigado a pensar em
outras coisas menos importantes, mas mais urgentes, é que a gente que acredita nas operações inversas dos Joghi e nos escritos de M.me Blavatsky, não crê nos milagres de Lourdes, nem nos dizeres dos quatro Evangelistas, nem nas Epístolas do Apóstolo S. Paulo. No género epistolar, preferem acreditar nas epistolas das suas namoradas. Ele há gente para tudo!

Eu nunca fui a Lurdes e nunca fui à Índia. Acreditar nos milagres da Virgem Santíssima é uma questão de fé. Os milagres dos Joghi são fenómenos semelhantes e para crer neles é preciso o mesmo estado espiritual. Mas neste caso da lavagem interna dos Joghi pelo processo inverso, em vez de monosílabo português, eu preferiria empregar o vocábulo italiano de duas sílabas, que designa a mesma beatitude das almas cândidas.» 

Saibamos então discernir bem o que pode verdadeiramente adiantar-nos na realização espiritual, sem cairmos em mistificações nem alienações, e com algum humor libertemo-nos de fanatismos e credulidades. E possa o monosílabo que mais utilizemos ou vivemos, seja o Fé, o dissílabo Fede, ou o Aum ajudar-nos a estabilizar a mente e abrir-nos mais aos raios amor e de luz do espírito e da Divindade. Pax, Lux, Amor!