Este poema de Fernando Pessoa, Clarim de Portugal, dactilografado em 1934 e dado à luz pela 1ª vez em 1965 por Maria Aliete Galhoz (1929-2020, sábia e com quem ainda trabalhei na decifração de um ou outro texto de Fernando Pessoa, nos reservados da B. N. L.), na 2ª edição da Obra Poética de Fernando Pessoa, na Aguilar, do Rio de Janeiro, é um dos melhores da sua poesia da tradição espiritual portuguesa e contém em si muitos ensinamentos nunca bem compreendidos ou destacados, em vários casos até encontrando-se noutros passos da sua obra poética ou de investigação, esta permanecendo na sua totalidade inédita em vida e sido publicada parcelarmente posteriormente, em geral sem os melhores critérios e hermenêuticas, isto é, interpretações profundas, interligações com a sua obra e contextualizações amplas. E neste dia 30 de Novembro de 2021, 86 anos depois da sua partida da Terra, resolvi comentá-lo ao de leve, como encontrará no fim...
Nas sucessivas trinta e uma quadras (a 9ª acrescentada posteriormente à mão), algumas bastante profundas, ocultas, mântricas, ou seja, com forças sonoras e psico-somáticas, para se repetirem e assimilarem até de cor, Fernando Pessoa partilha o seu grande amor a Portugal e algumas das suas crenças e conhecimentos, saudades e esperanças, sentindo-as virem das raízes históricas de Portugal, consciencializando-se do corpo místico português, ou grande alma portuguesa, e projectando-o para um Universo, isto é, uma sociedade e um tempo de unidade ocidental liderado pelos portugueses ou a língua portuguesa, mas que deveria assentar até mais no do estado de religação mais harmoniosa, plena e consciente ao espírito, à alma mundi e à Divindade, o que ainda assim Fernando Pessoa aponta. De qualquer modo, Fernando Pessoa, neste poema, já final na sua vida, ainda que mantendo algo ingenuamente e nacionalisticamente o seu sonho num V Império português, que em tantos textos especulara, doutrinara e poetizara, lança várias linhas de força operativas e reais no caminho espiritual e na inserção na Tradição Espiritual Portuguesa, esta sim bem mais real e acessível.
Leiamos e oiçamos-las, com fotografias captadas há uns anos no convento de Cristo em Tomar, com ser profundo e no agora e aqui:
1
Que outrora ergueste o grito real
Por D. João, Mestre de Aviz,
E Portugal!
2
Vibra, grita aquele hausto fundo
Com que impeliste, como um remo,
Em El-Rei D. João Segundo
O Império extremo!
3
Vibra, sem lei ou com a lei,
Como aclamaste outrora em vão
O morto que hoje é vivo — El-Rei
D. Sebastião!
4
Vibra chamando, e aqui convoca
O inteiro exército fadado
Cuja extensão os pólos toca
Do mundo dado!
5
Aquele exército que é feito
Do quanto em Portugal é o mundo
E enche este mundo vasto e estreito
De ser profundo.
6
Para a obra que há que prometer
Ao nosso esforço alado em si,
Convoca todos sem saber
(É a Hora!) aqui!
7
Os que, soldados da alta glória,
Deram batalhas com um nome,
E de cuja alma a voz da história
Tem sede e fome.
8
E os que, pequenos e mesquinhos,
No ver e no crer da externa sorte,
Calçaram imperiais caminhos
Com vida e morte.
Sim, estes, os plebeus do Império,
Heróis sem ter para quem o ser,
Chama-os aqui, ó som etéreo
Que vibra a arder!
E, se o futuro é já presente
Na visão de quem sabe ver,
Convoca aqui eternamente
Os que hão de ser!
Todos, todos! A hora passa,
O génio colhe-a quando vai.
Vibra! Forma outra e a mesma raça
Da que se esvai.
A todos, todos, feitos num
Que é Portugal, sem lei nem fim,
Convoca, e, erguendo-os um a um,
Vibra, clarim!
14
E outros, e outros, gente vária,
Oculta neste mundo misto.
Seu peito atrai, rubra e templária,
A Cruz de Cristo.
15
Glosam, secretos, altos motes,
Dados no idioma do Mistério —
Soldados não, mas sacerdotes,
Do Quinto Império.
16
Aqui! Aqui! Todos que são
O Portugal que é tudo em si,
Venham do abismo ou da ilusão,
Todos aqui!
17
Armada intérmina surgindo,
Sobre ondas de uma vida estranha,
Do que por haver ou do que é findo —
É o mesmo: venha!
18
Vós não soubestes o que havia
No fundo incógnito da raça,
Nem como a Mão, que tudo guia,
Seus planos traça.
19
Mas um instinto involuntário,
Um ímpeto de Portugal,
Encheu vosso destino vário
De um dom fatal.
20
De um rasgo de ir além de tudo,
De passar para além de Deus,
E, abandonando o gládio e o escudo,
Galgar os céus.
De uma cruzada além dos astros,
De que esses astros, aos milheiros,
São só os rastros.
22
Vibra, estandarte feito som,
No ar do mundo que há de ser.
Nada pequeno é justo e bom.
Vibra a vencer!
23
Transcende a Grécia e a sua história
Que em nosso sangue continua!
Deixa atrás Roma e a sua glória
E a Igreja sua!
Depois transcende esse furor
E a todos chama ao mundo visto.
Hereges por um Deus maior
E um novo Cristo!
25
Vinde aqui todos os que sois.
Sabendo-o bem, sabendo-o mal,
Poetas, ou santos ou heróis
De Portugal.
26
Não foi para servos que nascemos,
De Grécia ou Roma ou de ninguém.
Tudo negámos e esquecemos:
Fomos para além.
27
Vibra, clarim, mais alto! Vibra!
Grita a nossa ânsia já ciente
Que do seu inteiro vôo libra
De poente a oriente.
28
Vibra, clarim! A todos chama!
Vibra! E tu mesmo, voz a arder,
O Portugal de Deus proclama
Com o fazer!
29
O Portugal feito Universo,
Que reúne, sob amplos céus,
O corpo anónimo e disperso
De Osíris, Deus.
30
O Portugal que se levanta
Do fundo surdo do Destino,
E, como a Grécia, obscuro canta
Baccho divino.
31
Aquele inteiro Portugal,
Que, universal perante a Luz,
Reza, ante a Cruz universal,
Ao Deus Jesus.»
Nas quadras seguintes, 7ª, 8ª e 9ª, Pessoa aponta alguns desses portugueses que esforçadamente da lei da morte se libertaram, servindo a alma portuguesa, a Mátria-Pátria, na parte final da 9ª quadra aludindo mesmo à subtil vibração silenciosa ou por vezes até músical das esferas pitagórica.
A quadra 10ª, redigida posteriormente a tinta e na margem, parece mesmo auto-biográfica, ou não tivesse ele se deixado enlevar ou mesmo embebedar em tal sonho e aspiração. E na 11ª quadra menciona a subtil e tão iniciática visão espiritual, supra temporal-espacial, e na 12ª quadra o oculto génio da Nação ou, se assim o conseguirmos ver, o Arcanjo custódio de Portugal, caldeando as metamorfoses das gerações de portugueses.
Na quadra 13ª surge a invocação do Portugal
inteiro, sem lei e infinito, sem estar sujeito às leis das religiões e
estados, e poetiza assim como um cavaleiro da milícia portuguesa, que se
vai desvendar na quadra seguinte, a 14ª, e que é central no ocultismo e
espiritualidade de Fernando Pessoa, ainda hoje bastante desconhecida ou
mesmo menosprezada: a realização da milícia Templária e da Ordem de Cristo, obtida
nos portugueses por ressonância de peitos ou corações, feitos de corpos
e almas.
A
15ª quadra é talvez a mais valiosa e poderosa em termos de prática, mas a que pouca gente
liga e trabalha, pois refere os motes, lemas, mantras, orações ou
cantos iniciáticos, sacerdotais, isto é sacralizadores e geradores de
clarificações e impulsos luminosos.
Nas quadras seguintes, as 16ª, 17ª, 18ª, 19ª e 20ª, Fernando Pessoa continua na sua invocação mágica dos portugueses mais despertos, corajosos, heróicos, trabalhadores criadores ao longo dos séculos e projecta-os para além das armas e crenças limitadores em Deus.
A
21ª quadra é de novo crucial e neste ir para além da vulgar crença,
chama aos cavaleiros e cavaleiras Titãs, os que não se deixam prender
nas teias da Lei, e desenvolve tal nas quadras 22ª e 23ª, culminando realmente na
24ª, em que uma nova concepção de Deus e um novo mestre ou ungido se
revelam, ou melhor, apregoa, sem a especificar ou descrever muito bem, pois ele próprio mais não conseguia do que desejar ou imaginar, continuando nas seguintes a desenvolver o poder dos
portugueses de irem mais longe que os impérios e realizações antigas,
atingindo o Cosmos e o Divino.
Destacaremos as quadras 29ª e 30ª pelo que elas repetem ou confirmam ou poetizam várias linhas de força contidas em fragmentos do espólio (como investiguei, transcrevi e comentei nos meus quatro livros de inéditos de Fernando Pessoa, publicados em 1988 e 1989), e que são a universalidade portuguesa e do mundo ou império futuro. no qual todas as religiões serão vistas e tidas ou realizadas como partes do corpo retalhado de Osíris, a concepção de divindade mais antiga nossa de Ocidentais com raízes no Egipto.
E assim na quadra 30ª esse
erguer energético das profundezas, subtilmente invocado na Mensagem e tão fundamental no caminho espiritual,
e nos seus poema mágicos, surge associado a Baco, o portador do tirso, e aos
seus mistérios iniciáticos báquicos, nos quais Fernando Pessoa libou exageradamente e assim
de algum modo se dissolvendo mais precocemente mas deixando atrás de si bastante busca de gnose...
A
quadra final, a 31ª, é a do cristão gnóstico: Cristo, face de Deus,
e a cruz do Cosmos, astronómica e geométrica, e que complementa e eleva
a humana de Jesus, surgem como fundamentais como focos de concentração perante a universal luz que banha todos os que meditam e demandam a Verdade.
Estamos pois diante de um poema de grande valor espiritual, que bem merece ser lido, relido (e será o caso de agora...), e até "de-corado" (pelo e no coração...) em algumas partes.
Comunguemos então mais com Fernando Pessoa e a sua demanda, poesia e sabedoria, conscientes da nossa inserção na Tradição Espiritual Portuguesa, da qual ele foi e é um grande cultor, desejando ainda neste dia da sua partida do corpo físico terreno muita realização espiritual e divina na sua alma e espírito.
Cabeceira de cruz de cavaleiro templário ou da ordem de Cristo existente no convento de Tomar e com o importante ou primordial símbolo da estrela pentagonal e espiritual... |