terça-feira, 30 de novembro de 2021

Fernando Pessoa, "Clarim de Portugal", com uma breve hermenêutica espiritual, de Pedro Teixeira da Mota. No dia e hora da sua morte.

Este poema de Fernando Pessoa, Clarim de Portugaldactilografado em 1934 e dado à luz pela 1ª vez em 1965 por Maria Aliete Galhoz (1929-2020, sábia e com quem ainda trabalhei na decifração de um ou outro texto de Fernando Pessoa, nos reservados da B. N. L.), na 2ª edição da Obra Poética de Fernando Pessoa, na Aguilar, do Rio de Janeiro, é um dos melhores da sua poesia da tradição espiritual portuguesa e contém em si muitos ensinamentos nunca bem compreendidos ou destacados,  em vários casos até  encontrando-se noutros passos da sua obra poética ou de investigação, esta permanecendo na sua totalidade inédita em vida e sido publicada parcelarmente posteriormente, em geral sem os melhores critérios e hermenêuticas, isto é, interpretações profundas, interligações com a sua obra e contextualizações amplas. E neste dia 30 de Novembro de 2021, 86 anos depois da sua partida da Terra, resolvi comentá-lo ao de leve, como encontrará no fim...

Nas sucessivas trinta e uma quadras (a 9ª acrescentada posteriormente à mão), algumas bastante profundas, ocultas, mântricas, ou seja, com forças sonoras e psico-somáticas, para se repetirem e assimilarem até de cor, Fernando Pessoa partilha o seu grande amor a Portugal e algumas das suas crenças e conhecimentos, saudades e esperanças, sentindo-as virem das raízes históricas de Portugal, consciencializando-se do corpo místico português, ou grande alma portuguesa, e projectando-o para um Universo, isto é, uma sociedade e um tempo de unidade ocidental liderado pelos portugueses ou a língua portuguesa, mas que deveria assentar até mais no do estado de religação mais harmoniosa, plena e consciente ao espírito, à alma mundi e à Divindade, o que ainda assim Fernando Pessoa aponta. De qualquer modo, Fernando Pessoa, neste poema, já final na sua vida, ainda que mantendo algo ingenuamente e nacionalisticamente o seu sonho  num V Império português, que em tantos textos especulara, doutrinara e poetizara, lança várias linhas de força operativas e reais no caminho espiritual e na inserção na Tradição Espiritual Portuguesa, esta sim bem mais real e acessível.


Leiamos e oiçamos-las, com fotografias captadas há uns anos no convento de Cristo em Tomar, com ser profundo e no agora e aqui:

                                                         1

«Vibra, clarim, cuja voz diz
Que outrora ergueste o grito real
Por D. João, Mestre de Aviz,
E Portugal!
2
Vibra, grita aquele hausto fundo
Com que impeliste, como um remo,
Em El-Rei D. João Segundo
O Império extremo!
3
Vibra, sem lei ou com a lei,
Como aclamaste outrora em vão
O morto que hoje é vivo — El-Rei
D. Sebastião!
4
Vibra chamando, e aqui convoca
O inteiro exército fadado
Cuja extensão os pólos toca
Do mundo dado!
5
Aquele exército que é feito
Do quanto em Portugal é o mundo
E enche este mundo vasto e estreito
De ser profundo.
6
Para a obra que há que prometer
Ao nosso esforço alado em si,
Convoca todos sem saber
(É a Hora!) aqui!
7
Os que, soldados da alta glória,
Deram batalhas com um nome,
E de cuja alma a voz da história
Tem sede e fome.
 

8
E os que, pequenos e mesquinhos,
No ver e no crer da externa sorte,
Calçaram imperiais caminhos
Com vida e morte.
9
Sim, estes, os plebeus do Império,
Heróis sem ter para quem o ser,
Chama-os aqui, ó som etéreo
Que vibra a arder! 
 10 [mss.]
E os que sonharam enlevados
No Outro Império que sorri
Além do mundo e os céu fechados,
Aqui, Aqui. 
11
E, se o futuro é já presente
Na visão de quem sabe ver,
Convoca aqui eternamente
Os que hão de ser!
 
 12
Todos, todos! A hora passa,
O génio colhe-a quando vai.
Vibra! Forma outra e a mesma raça
Da que se esvai.
  13
A todos, todos, feitos num
Que é Portugal, sem lei nem fim,
Convoca, e, erguendo-os um a um,
Vibra, clarim!
14
E outros, e outros, gente vária,
Oculta neste mundo misto.
Seu peito atrai, rubra e templária,
A Cruz de Cristo. 
 
15
Glosam, secretos, altos motes,
Dados no idioma do Mistério —
Soldados não, mas sacerdotes,
Do Quinto Império.
16
Aqui! Aqui! Todos que são
O Portugal que é tudo em si,
Venham do abismo ou da ilusão,
Todos aqui!
17
Armada intérmina surgindo,
Sobre ondas de uma vida estranha,
Do que por haver ou do que é findo —
É o mesmo: venha!
18
Vós não soubestes o que havia
No fundo incógnito da raça,
Nem como a Mão, que tudo guia,
Seus planos traça.
19
Mas um instinto involuntário,
Um ímpeto de Portugal,
Encheu vosso destino vário
De um dom fatal.
20
De um rasgo de ir além de tudo,
De passar para além de Deus,
E, abandonando o gládio e o escudo,
Galgar os céus.
21
Titãs de Cristo! Cavaleiros
De uma cruzada além dos astros,
De que esses astros, aos milheiros,
São só os rastros.
22
Vibra, estandarte feito som,
No ar do mundo que há de ser.
Nada pequeno é justo e bom.
Vibra a vencer!
23
Transcende a Grécia e a sua história
Que em nosso sangue continua!
Deixa atrás Roma e a sua glória
E a Igreja sua!
24
Depois transcende esse furor
E a todos chama ao mundo visto.
Hereges por um Deus maior
E um novo Cristo!
25
Vinde aqui todos os que sois.
Sabendo-o bem, sabendo-o mal,
Poetas, ou santos ou heróis
De Portugal.
26
Não foi para servos que nascemos,
De Grécia ou Roma ou de ninguém.
Tudo negámos e esquecemos:
Fomos para além.
27
Vibra, clarim, mais alto! Vibra!
Grita a nossa ânsia já ciente
Que do seu inteiro vôo libra
De poente a oriente.
28
Vibra, clarim! A todos chama!
Vibra! E tu mesmo, voz a arder,
O Portugal de Deus proclama
Com o fazer!
29
O Portugal feito Universo,
Que reúne, sob amplos céus,
O corpo anónimo e disperso
De Osíris, Deus.
30
O Portugal que se levanta
Do fundo surdo do Destino,
E, como a Grécia, obscuro canta
Baccho divino.
31
Aquele inteiro Portugal,
Que, universal perante a Luz,
Reza, ante a Cruz universal,
Ao Deus Jesus.»


Neste poema, menos extenso  e menos abrangente detalhadamente, que a Mensagem, recuando apenas  aos reis  D. João I e D João II, põe a tocar ou a clamar o clarim que é o povo de Portugal, a sua voz e alma ecoando ao longo dos séculos em altas ou pequenas individualidades, ou em momentos colectivos. A 1ª e a 2ª quadra apresentam-nos o povo a liderar a aclamação do mestre de Aviz, do qual nascerá a Inclita geração, tão importante para o europeísmo e universalismo  português, com a gesta dos Descobrimentos. Na 2ª quadra ressoa o episódio do Adamastor, da Mensagem, na qual o próprio nome de el-rei é um mantra poderoso, uma vontade plena ao leme e, neste Clarim, o remo. Na 3ª quadra o mito em que de algum modo se embebedou do Sebastianismo surge-lhe vivo. A 4ª e a 5ª quadras são das mais fortes da Tradição espiritual portuguesa na sua imensidade e universalidade, e constituem uma evocação poderosa, mágica, da sua presença e bênçãos, nomeando a intensidade e veracidade de tais almas pela sua profundidade de ser e constituindo assim o ser profundo de Portugal, várias vezes evocado e sentido, desejado e mitificado por Fernando Pessoa. 
A 6ª quadra assinala um momento mágico, que no seu mais alto nível é a desvendação de auto-conhecimento e comunhão espiritual, e que Fernando Pessoa caracteriza como esforço alado e concretiza num apelo, numa convocação, tal como no findar da sua perene Mensagem, e intensifica tal no aqui e agora, o iniciático, de é a Hora.

Nas quadras seguintes, 7ª, 8ª e 9ª, Pessoa aponta alguns desses portugueses que esforçadamente da lei da morte se libertaram, servindo a alma portuguesa, a Mátria-Pátria, na parte final da 9ª quadra aludindo mesmo à subtil vibração silenciosa ou por vezes até músical das esferas pitagórica. 

A quadra 10ª, redigida posteriormente a tinta e na margem, parece mesmo auto-biográfica, ou não tivesse ele se deixado enlevar ou mesmo embebedar em tal sonho e aspiração. E na 11ª  quadra menciona a subtil e tão iniciática visão espiritual, supra temporal-espacial, e na 12ª quadra o oculto génio da Nação ou, se  assim o conseguirmos ver, o Arcanjo custódio de Portugal, caldeando as metamorfoses das gerações de portugueses. 

Na quadra 13ª surge a invocação do Portugal inteiro, sem lei e infinito, sem estar sujeito às leis das religiões e estados, e poetiza assim como um cavaleiro da milícia portuguesa, que se vai desvendar na quadra seguinte, a 14ª, e que é central no ocultismo e espiritualidade de Fernando Pessoa, ainda hoje bastante desconhecida ou mesmo menosprezada: a realização da milícia Templária e da Ordem de Cristo, obtida nos portugueses por ressonância de peitos ou corações, feitos de corpos e almas.

A 15ª quadra é talvez a mais valiosa e poderosa em termos de prática, mas a que pouca gente liga e trabalha, pois refere os motes, lemas, mantras, orações ou cantos iniciáticos, sacerdotais, isto é sacralizadores e geradores de clarificações e impulsos luminosos.

Nas quadras seguintes, as 16ª, 17ª, 18ª, 19ª e 20ª, Fernando Pessoa continua na sua invocação mágica dos portugueses mais despertos, corajosos, heróicos, trabalhadores criadores ao longo dos séculos e projecta-os para além das armas e crenças limitadores em Deus.

A 21ª quadra é de novo crucial e neste ir para além da vulgar crença, chama aos cavaleiros e cavaleiras Titãs, os que não se deixam prender nas teias da Lei,  e desenvolve tal nas quadras 22ª e 23ª, culminando realmente na 24ª, em que uma nova concepção de Deus e um novo mestre ou ungido se revelam, ou melhor, apregoa, sem a especificar ou descrever muito bem, pois ele próprio mais não conseguia do que desejar ou imaginar,   continuando nas seguintes a desenvolver o poder dos portugueses de irem mais longe que os impérios e realizações antigas, atingindo o Cosmos e o Divino.

Destacaremos  as quadras 29ª e 30ª pelo que elas repetem ou confirmam ou poetizam várias linhas de força contidas em fragmentos do espólio (como investiguei, transcrevi e comentei nos meus quatro livros de inéditos de Fernando Pessoa, publicados em 1988 e 1989), e que são a universalidade portuguesa e do mundo ou império futuro. no qual todas as religiões serão vistas e tidas ou realizadas como partes do corpo retalhado de Osíris, a concepção de divindade mais antiga nossa de Ocidentais com raízes no Egipto. 

E assim na quadra 30ª esse erguer energético das profundezas, subtilmente invocado na Mensagem e tão fundamental no caminho espiritual, e nos seus poema mágicos, surge associado a Baco, o portador do tirso, e aos seus mistérios iniciáticos báquicos, nos quais Fernando Pessoa libou exageradamente e assim de algum modo se dissolvendo mais precocemente mas deixando atrás de si bastante busca de gnose...

A quadra final, a 31ª, é a do cristão gnóstico: Cristo, face de Deus, e a cruz do Cosmos, astronómica e geométrica, e que complementa e eleva a humana de Jesus, surgem como fundamentais como focos de concentração perante a universal luz que banha todos os que meditam e demandam a Verdade.

Estamos pois diante de um poema de grande valor espiritual, que bem merece ser lido, relido (e será o caso de agora...), e até "de-corado" (pelo e no coração...) em algumas partes.

Comunguemos então mais com Fernando Pessoa e a sua demanda, poesia e sabedoria,  conscientes da nossa inserção na  Tradição Espiritual Portuguesa, da qual ele foi e é um grande cultor, desejando ainda neste dia da sua partida do corpo físico terreno muita realização espiritual e divina na sua alma e espírito. 

Cabeceira de cruz de cavaleiro templário ou da ordem de Cristo existente no convento de Tomar e com o importante ou primordial símbolo da estrela pentagonal e espiritual...

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Interrogações animicas e demanda espiritual. Como resistirmos e o que desenvolvermos espiritualmente. Um contributo.

 Este texto, concluído em 25-11-2021, que seria para o livro em preparação Ensaios Espirituais, é dado à luz antes no blogue, pois talvez seja mais lido do que em livro, uma realidade que teremos contudo de avaliar futuramente, pois poderá um dia, e  aprofundado, ter lugar nele. Cinco pinturas de Bô Yin Râ, bastante apresentado já neste blogue, e um Y pitagórico, ilustram-no.
- Por quanto tempo mais estaremos nós, tu e eu, vivos e com capacidades transformadoras?
- Quantas décadas aguentará o planeta a carga poluente e esgotante da vida moderna humana, e sobretudo das sociedades capitalistas mais ricas ou industrializadas, e das zonas de lutas e guerras constantes? 
- Quanto tempo mais as pessoas aguentarão a manipulação e opressão dos media e dos governos? Ou, pelo contrário, até quando é que haverá resistentes às narrativas, opressões e massificações sociais em curso?
- Como é que pode haver mais seres humanos, comunidades e grupos despertos e harmoniosos com a Natureza, os seres animais, os humanos e angélicos seres e com a Divindade na sua multidimensionalidade? 
 
 Eis algumas das perguntas que ressoam dentro de mim e de ti,  no peito e na cabeça, e em algumas conversas, livros, grupos, reuniões...
A força destas ideias-questões virá provavelmente, para além de serem de toda a humanidade, do espírito suscitá-las ou sustentá-las, não as deixando desvanecerem-se. E por isso elas ultrapassam  as barreiras da efemeridade e manipulabilidade do quotidiano e amoldam-se poderosamente ou subtilmente nos  recônditos do nosso ser e sensibilidade da alma de tal modo que intuímos que nos lançam tarefas profundas: participarmos na alquimia de tais questões e demandas, lutas e desafios actuais.
 Pessoalmente sinto ser uma tarefa  exigente, tanto quanto a afinidades grupais como à forte interiorização e individualização requerida, bem  contrária ao ritmos dos nossos dias, em que predominam as pessoas apressadas ou as turísticas, por vezes tensas, e desgastadas embora  tentando conservar a cabeça erguida, face aos receios dos vírus, que açaimam muitas, a maioria fatalmente arrastada pela luta  pela sobrevivência, mais ou menos egoísta, e que em geral provoca o esquecimento dos seus níveis e estados de alma mais profundos.
Hoje é bastante raro conseguirmos estar com alguém em paz, sabedoria e amor profundos, deixando os corpos e níveis anímicos e espirituais virem ao de cima, em silêncios, olhares, tactos, sentimentos e palavras ressoantes.  No trabalho, as vibrações psíquicas stressadas, as palavras que saem dos carretos ou cânones, as lutas pelo poder e invejas, afectam-nos. O ambiente internacional está igualmente tão perturbado pelo covid, as vacinas, os lockdowns, os desequilíbrios sexuais, as cargas policiais brutais, o imperialismo norte-americano, o sionismo israelita e a criminalidade saudita no Yemen, que ondas de sofrimento e indignação cruzam muitas almas e por vezes tocam-nos.
Reentrarmos então a nossa vista para dentro tentando debruçar-nos a pique e deixar-nos cair-entrar nas profundezas, nos níveis das raízes medulares onde fermentam energias e sensações semi-ddesconhecidas, ou aspirarmos às altitudes da alma, para os níveis das florescências onde despontam pensamentos, visões e intuições, é tarefa que temos de realizar com persistência e diligência, até para trazermos alguma ideia, compreensão ou metodologia nova que nos clarifique e ajude as pessoas a harmonizarem-se, a estarem mais calmas, lúcidas e a conseguirem ligar-se  ao Espírito, à Felicidade, à Divindade, ao Amor...
Se me relembro das  vezes que consegui atingir ou desencadear uma vivência e depois compreensão mais forte do nível espiritual ou ainda da unidade cósmica através da minha interioridade, e a penso partilhar, quantas pessoas a aceitarão valorizando-a minimamente?
Mesmo assim, falemos do que pode acontecer nas meditações, em que com o decorrer da nossa vida na Terra e entrada na curva descendente da força do corpo físico, se nos abrem mais  vistas subtis  sobre espaços interiores, florestas, árvores, flores, plantas e pedras. Ou até  animais, que nos revelam significações, em intuições rapidíssimas a passarem pela consciência lúcida  que as vê como numa espécie de filme em miniatura projectado no nosso ecrã interior,  animais que correspondem humanamente a sentimento destilados, ou a hábitos mantido por longos anos, ou  pensamentos erguido laboriosamente.
"Surpresa, surpresa", exclamaremos nós, face ao sentimento interior discernido e ao que se gera de compreensões, tais como a de que textura e formas dos suspiros das pastelarias têm certas afinidades com alguns sonhos e desejos subtis das pessoas,  capazes de gerarem ondas ou pombas brancas a voar no firmamento interior.
Podemos compreender também a origem dos animais fantásticos nas  obras de Hieronimus Bosh,  ou como o dar nome aos animais dos mundos interiores corresponde a conseguirmos identificá-los, consciencializá-los e, logo, controlá-los, sublimá-los, utiliza-los adequadamente, tal como é o cavalgar o dragão ou o tigre...
 Compreender também que estamos constantemente em encruzilhadas,  que nos fazem ora entrar ora sair de nós próprios, que são desafios sociais, televisivos ou interneticos que tentam atrair-nos, envolver-nos, captar-nos e frequentemente massificar-nos, para passarmos a ser um dos milhões que estarão a ver (e a sofrer) tal programa na televisão, ou tal notícia nas redes sociais, ou a consumir tal produto propagandeado.
Assim a cada momento, a cada escolha, a cada adesão, desistência ou repulsão estamos a sinalizar ao Cosmos e seus seres e a nós próprios  que nível realizamos na ponte entre a terra que somos e o céu de que somos parte e ao qual aspiramos.
                                  
Esta aspiração, este fogo interior, é o que nos faz deter em certos momentos, em encruzilhadas, pelos antigos pitagóricas simbolizadas no Y ou bivium, a forquilha da escolha  de um dos dois caminhos, num dos quais nos densificaremos ou obscureceremos. Assim podemos criativamente escolher como iluminar as nossas  almas e ambientes pelas mais opções mais coerentes, éticas, ecológicas ou harmoniosas, que põem e acção  capacidades  ou actividades de manifestação do espírito divino, luminoso e feliz, que é a nossa essência e para a qual o famoso e tão discutido (e diminuído...) livre-arbítrio fundamentado é fundamental...
Mas como melhor esclarecer  práticas, ou descrever metodologias, que possam em verdade e concretamente ajudar as pessoas e a Humanidade a tais consciencializações e harmonias?
Aproximemo-nos da alma, da luz, do céu, das cores, dos seres subtis...

Este céu interior, que nos chega de quando quando em visões de azul imenso e dourado, é accionado pele espírito, pois é ele e a abertura dos centros da alma que se tornam as portas para a Divindade, para as Suas Faces divinas, para os mestres, anjos e arcanjos  nos poderem tocar já que eles emanam vibrações e imagens tão ricas de cambiantes, significados e impulsões que  ficamos muito deslumbrados e gratos quanto tal merecemos...
Se fechamos os olhos e persistimos em deixar passar ou assentar as nuvens e neblinas dos pensamentos superficiais e quotidianos, podemos por vezes receber certas cores e formas, ou captar certas correntes minúscula de imagens, ou ainda aperceber-nos dum ouvir interno que, mais do que os diversos sons do exterior que chegam, regista o som do rio perene que corre pelo nosso crânio e que, sintonizado pela nossa consciência, nos pode  servir como fio de meada para a desejada comunhão com o mítico som primordial, vibração ou palavra divina.
  Sim, a subtil música das esferas de Pitágoras, ou o misterioso Reino de Deus, subtil mas firmemente, dizem-nos: - "Para além de todas as dores e dificuldades que atravessas na tua vida humana, lembra-te que pela audição do silêncio, pela aspiração à verdade, ao bem e à misteriosa Divindade, te aproximas da comunhão interior com os mundos e seres espirituais."
Quando sentimos isto podemos quase verter lágrimas, sobretudo quando atravessamos momentos difíceis e constatamos que não somos esquecido do Alto interno, profundo e universal. E há que fazer então algumas sintonizações do silêncio e da respiração e logo voos ou subidas para o Alto neste espaço silencioso tanto  interior como exterior que é o substracto do imenso e variado Mundo, tanto das ondas e partículas como dos sonhos, visões e actos, e que tão pouco conhecemos conscientemente nas suas características e causalidades.

Alguns gestos ajudam-nos, e em todas as religiões e tradições os encontramos, assim o erguer os braços é-nos natural, embora por vezes as dores das fracturas e feridas os baixem de novo à terra e humildemente tenhamos de reconhecer o valor da purificação em todo o caminho de conhecimento e de verdade. Mas claro, respiração e gesto ou movimento, como no Tai-Chi ou Hatha Yoga, ou nas nossas criatividades são meios valiosos para nos alinharmos, fortificarmos ou harmonizarmos...

Todavia, a imobilidade é o que permite mais entrarmos interiormente no coração em oração de gratidão e conciencializar-nos dos ritmos numerosos que atravessam os corpos físico e subtil, e deixarmos que eles venham ao de cima e respirem ou suspirem de alívio, graças à restauração das circulações em zonas do corpo afectadas, e que se libertam assim da lividez das sobrecargas, tensões, medos e más posições do quotidiano. É pela respiração aprofundada e o coração sintonizado que descobrimos uma pulsação ou ritmo por todo o nosso ser silencioso e sensível, o qual pode abrir-nos a sentirmos ou intuirmos, nos níveis subtis da alma, energias e inspirações luminosas.

O nosso coração pode tornar-se então uma grande abertura onde ora um sol dourado esparge os seus raios ora um oceano sem limites envolve-nos,  convidando-nos a uma natação suave e beatífica.

Também a fronte abre-se em olho e pode tornar-se ora um telescópio que nos faz ver o longínquo no sistema solar e no Cosmos, ora um caleidoscópio onde belas cores ou formas voltejam.

Se nos verticalizamos bem, somos como que arrancado a nós  próprios e a alma sente-se como energia cósmica presa como um papagaio colorido por um cordel ao braço ou âncora do corpo, qual barca da glória ou no caminho para a Luz, Kvarnah ou Xvarnath, na tradição zoroástrica e persa.

Podemos sentir então a paisagem ou ambiente da alma como uma foz,  e vamos numa barca, entre o rio e o mar, por entre remoinhos rítmicos, e subimos e descemos até de repente sentir-nos já como uma gaivota célere, livre, aspirando ao divino e infinito.

Por vezes, no vento que nos empurra,  vemos imagens ou intuímos  palavras sob a forma subtil de correntes energéticas nas quais, ao mergulhar ou entrar, podemos identificar as proveniências particulares: se uma constelação celestial ou um espírito celestial poderoso, ora ainda os mundos arquétipos e geométricos derramando virtudes divinas em raios e formas geométricas... 

Transformadoras e benéficas  são estas descobertas, estas vivências internas, pois quando abrimos de novo a consciência à horizontalidade da vida e do quotidiano observamo no nosso ser amor e paz profunda e até olhos, corações e ouvidos como que tremelicam ou latejam ainda com as cintilações donde viemos, e sentimo-nos com mais capacidades e vontade de ajudar os que nos rodeiam e que sofrem e aspiram a harmonizar-se e iluminar-se mais...
Assim vamos vivenciando o que foi ensinado pelos instrutores e mestres, ao longo dos séculos, dum modo que não nos perturba nem egotiza, antes ganhando sempre forças e paciência para as descidas às caves do nosso ser, às contas do passado, às dores e sofrimentos corporais e afectivos, às injustiças, sofrimentos e opressões e inépcias político-sociais, que tanto sanguesugam o melhor da Humanidade e de Gaia.
E a cada provação, a cada boa meditação,  o nosso ser perene vai talhando a sua consciência e forma e emanando harmonias. A certeza da vida futura no post-mortem e a da realidade do espírito e de Deus tornam-se medulares, ou colunas, do nosso ser e por vezes podemos tentar até introduzir tal consciência nos nossos  ainda assim frágeis e tão esquecidos ossos, de modo a verdadeiramente ressuscitarmos ou animarmos as nossas pedras de fundação últimas corporais.
É importante compreender que a vida é uma aventura, uma missão espiritual para todos os seres, mas que quase todos acabamos por a encerrar em limites tão estranhos aos seus fins originais de religação e libertação, e tão estreitos face a sua dimensão infinita e universal que quase todas as religiões e filosofias se tornam as práticas e os recreios de escolas primárias ou, vá lá, secundárias, embora nelas alguns mais devotos ou conhecedores as aprofundem muito bem pelo amor e a sabedoria, para a fraternidade, a liberdade e o Divino...
Com poucos seres poderemos compartilhar esta sabedoria que em nós renasce constantemente, pois a maioria  deseja ainda muito as ilusões e atracções externas da vida: riqueza, poder, prazer, posses, prestígio, distracções...
Temos então de deixar apenas que essas energias superiores passem  por nós, ou se ergam em centros específicos internos, e irmos pelos dias e ruas ora como aves em voo sereno, ou caminhantes peregrinos na calma atenta e forte que só se expande mais na afinidade com algum reencontro mais luminoso e afim, seja humano, da natureza ou da arte...
Certamente que por vezes devemos escrever, focalizar no papel, gerando mapas, as correntes subtis e profundas do oceano da alma, alertar algumas pessoas para estas lutas e explorações tão importantes e significativas para o auto-conhecimento, a realização imortal e  a harmonia dos seres. Como se as explorações ora fascinantes ora alarmantes dum comandante Cousteau tivessem o seu acompanhamento condigno nos níveis invisíveis, com tantas fossas do Mindanau inacessíveis à luz dos olhos, cheias de fogos subterrâneos, paixões e fanatismos que urge compensar com educação para a não-violência, ética e descidas da Luz mais divina e amorosa..
Escrevo assim porque me parece curial e transmissível o apelo espiritual que eternamente nos penetra, mas a que tão pouco ligamos, pois também nas alturas se travam batalhas para que a poluição terrestre não só não estilhace a camada do ozono e aqueça demasiado a terra, como pela sua densidade e confusão psíquica a humanidade não seja isolada das energias luminosas que tentam elevar e espiritualizar as consciências humanas, ainda tão sub-animalmente limitadas e destrutivamente desequilibradas por múltiplos hábitos e interesses egoístas.
Entrem pois as correntes espirituais, musicais e luminosas pelas nossas almas, peitos e ambientes. E como seres espirituais ergamo-nos para as tarefas e desafios que nos cabem, sabendo inter-comunicarmos e agirmos unidos e luminosamente, e em cada novo dia conscientes de podermos manifestar mais qualidades divinas que podemos e devemos desenvolver para uma melhor peregrinação e evolução de todos rumo à Divindade...
Eis o propósito final deste escrito, que deposito na sua alma leitora e afim. 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

João de Deus e Antero de Quental, ou as "Folhas Soltas" enaltecidas por Antero. Com o poema "Adoração, dedicado a Fernando Leal e comentado por Pedro Teixeira da Mota..

                                      

ADORAÇÃO

 (A Fernando Leal)


Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par!
Contemplei-o de longe, mudo e quedo,
Como quem volta d'áspero degredo,
E vê, ao ar subindo,
O fumo do seu lar!

Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual!
Suave como lâmpada sagrada,
Benvindo, como a luz da madrugada,
Que rompe ao navegante
Depois do temporal.

Vi esse corpo de ave!
Que parece que vai
Levado, como o sol ou como a lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!

Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!

Tremo apenas pressinto
A tua aparição!
E, se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor o que eu sinto!
É uma adoração!

Que as asas providentes
Do anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!»
 
Eis um dos belos poemas de João de Deus publicado nas Folhas Soltas,   dadas à luz pela Livraria Universal de Magalhães & Moniz, Editores, ao Largo dos Loios, no Porto, em 1876. 
Adoração dedicada ao seu grande amigo Fernando Leal, e embora  pouco saibamos de tal amizade, como Leal foi amigo de Antero de Quental desde Junho de 1880 observamos em algumas cartas posteriores de Antero de Quental a João de Deus interrogá-lo  por ele (e Gomes Leal, pois eram parentes e amigos) e enviar-lhes cumprimentos.
João de Deus, nascido em S. Bartolomeu de Messines em 8 de Março de 1830, tinha já 46 anos, e era bem mais velho que Antero de Quental, nascido em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, em 18 de Abril de 1842, e que Fernando Leal, nascido em Margão, na Índia, em 15 de Outubro de 1846, e que após uma vida de oficial e explorador botânico, a conselho de Antero, regressou à Índia e se casou, curiosamente com a irmã da minha bisavó. Foi a dedicatória a Fernando Leal, a 1ª do livro, seguindo-se-lhe uma a Luciano Cordeiro e outra a Gomes Leal, que me impulsionou a escrever este artigo quando folheava as Folhas Soltas.
 

Dessa maior madureza e classicidade estava bem consciente
 Antero de Quental que numa carta ao poeta  Tommaso Cannizaro, seu tradutor para italiano, e amante da Literatura Portuguesa, dez anos depois, em 5 de Dezembro de 1886, refere deste modo as Folhas Soltas:
 «Não sei porque esquecimento deixei em tempo de lhe enviar esse outro volume de João de Deus: Folhas Soltas. Remedeio agora esse esquecimento. Há neste volume muita coisa satírica e jocosa, que só os da terra podem apreciar e até entender, pelas alusões a coisas e pessoas de cá e pela linguagem familiar. Entretanto no meio dessas composições especiais, que para Você não oferecem interesse, encontrará outras líricas, do mais alto valor, e até não sei se diga das mais belas entre todas as deste incomparável poeta, pelo menos esteticamente, pois representam o seu período de equilíbrio e madureza perfeita, o período clássico ( se assim posso dizer) em que cada artista ou poeta atinge a sua maneira definitiva e a plena harmonia das suas faculdades de expressão. Pelo contrário, 3 ou 4 dessas composições (como, por exemplo, "Quando a luz dos teus olhos contemplo") são das primeiras que ele fez e quase ao sair da adolescência. João de Deus, como Rafael, tem variado umas poucas vezes de maneira, sem deixar de ser sempre o mesmo». Anote-se que uns meses depois Antero, respondia  a Tommaso Canizaro, que lhe pedira a morada de João de Deus ( Rua de S. António à Estrela, 138): «Deste nosso lírico lhe enviei, haverá três meses, o volume das Folhas Soltas, onde ao lado de muitas fantasias epigramáticas ou burlescas e de interesse só local, encontraria algumas das mais belas inspirações líricas do Autor»
Sentiria Antero de Quental esta Adoração, de João de Deus, como das mais belas? Creio que sim: na primeira sextilha, há a sensação da visão ao longe do olhar da amada,  como a do peregrino ou desterrado avistando por fim o lar.  Na segunda sextilha, João de Deus discerne no olhar dela um fluido especial, certamente do amor, e a luz santa, sagrada que irradia é como o bom porto para o navegante. Na terceira,   sente a sua corporalidade como que celestial, leve e majestosa. Na quarta, catolicamente, e João de Deus sempre o foi, ao contrário de Antero, face à atracção que o tenta, eleva-se à luz que ela irradia e sente-a mais como mãe. Na quinta, João de Deus vai ainda mais longe na sublimação da mulher que o atrai e encanta, pois se próximo dela estivesse, cairia de joelhos e a adoraria. Há como que uma elevação da mulher amada a face feminina da Divindade, algo que ao longo dos séculos muitos já sentiram enquanto cavaleiros do Amor perante a Amada que deixa passar através de si algo da Divindade, e se torna de certa maneira Deusa, Grande Deusa. Finalmente, na sexta e última sextilha, João de Deus vai ter de abandonar o seu voo poético amoroso e, podendo conclui-lo de várias maneiras, escolhe uma sublimação última, a amada não será como um anjo para ele, mas sim reza para que o seu  Anjo da guarda a proteja, já que ele se limitará à adoração de longe. 
Resta-nos concluir este poema de encantar contando que João de Deus se casou com Guilhermina das Mercês Battaglia em 1868 e teve dois filhos (um dos quais o continuador da sua obra pedagógica) e duas filhas, viveu na Terra até 1896, e certamente encontrou na sua mulher tanto os olhares e formas encantadoras como na sua alma e amor a Luz que todos demandamos, adoramos e eventualmente irradiamos.
 
Vinheta subtil e a contemplar-se de Bô Yin Râ, intervencionada...
 
Que a Luz e o Amor divinos fluam bem em João de Deus, Antero de Quental e Fernando Leal e que possamos nós comungar em tal fraternidade e luminosidade, agora e sempre, Amen, Aum...

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Giovanni Pico della Mirandola e os Anjos, Arcanjos e Espíritos celestiais. Tradução do latim da sua "Oratio". No dia da sua libertação da Terra há 527 anos.

Pintura seiscentista de Pico della Mirandola e que pontificava no scriptorium de José de V. de PIna Martins. Fotografia do autor.

Comemorando-se hoje, 17 de Novembro de 2021, os 527 anos da libertação da Terra do genial Giovanni Pico della Mirandola, quando apenas perfizera os 31 anos de idade, mas já tanto se realizara ou divinamente se religara, resolvemos contribuir partilhando aspectos da sua visão do Ser humano e dos Espíritos celestiais,  traduzidos do seu famoso e valioso livro de 1486, e que era um preâmbulo a um debate público sobre 900 Teses filosóficas e teológicas que redigira,  De Hominis Dignitate Oratio ou, conforme as duas traduções portuguesas existentes, de Maria de Lurdes Sirgado Ganho e de Maria Isabel Aguiar, Discurso sobre a Dignidade do Homem, tendo eu em muitos aspectos divergido das palavras escolhidas por elas.  A pintura quinhentista inicial pertenceu ao notável humanista e amigo José Vitorino de Pina Martins, autor de dezenas de obras sobre o Humanismo, como consta na biografia que lhe traçei recentemente, que muito me estimulou no studium humanista e a quem dediquei o Modo de Orar a Deus, de Erasmo, que traduzi com Álvaro Pereira Mendes, e contextualizei e anotei.

Não é  tarefa fácil descortinar-se dos textos de Pico della Mirandola  plenamente a sua compreensão e visão dos Anjos, ou seja, a sua doutrina angélica,  pois as referências a eles estão dispersas por várias das suas obras e frequentemente ecoam os ensinamentos tradicionais do Cristianismo mas também das teologias antigas,  do chamado Paganismo, que todavia se pode denominar antes, e assim o foi, de Filosofia ou Teologia Perene,  ou ainda Prisca (antiga), e que Marsilio Ficino, Angelo Poliziano e Pico della Mirandola, Erasmo (moderadamente), Filippo Beroaldo e Eugubino Steuco, entre outros humanistas, pioneiros em tal comparativismo, muito pesquisaram e valorizaram. 

Que acreditava na sua existência não há qualquer dúvida, seja por fé, por razão ou por visão. Que conhecia as posições e doutrinas angélicas dos principais filósofos e teólogos pagãos ou gentios e cristãos há amplas evidências por citações de suas obras ou doutrinas. Que esteve frequentemente animado por grande amor a eles (ou com eles, a Deus), também não se pode pôr em causa,  sendo talvez mesmo animado por eles, e por isso provavelmente foi designado  como o Anjo sábio do Renascimento, tanto mais que o seu aspecto e alma eram bastante angélicos, tal como podemos observar no centro dum fresco florentino da época, entre Marsilio Ficino e Angelo Poliziano.  Vamos então seleccionar algumas das menções, e para já apenas do Discurso sobre a Dignidade Humana,  para que possamos senti-las, meditá-las e aproveitá-las interiormente, para crescimento das nossas asas, para incremento da nossa comunhão com a Divindade e a sua Luz e Amor.

Nesta sua mais famosa obra, a Oratio,  para muitos o manifesto do Humanismo, Giovanni Pico della Mirandola partilha bastante da sua compreensão e visão bastante original das hierarquias angélicas e eleva-se através delas de um modo tão fulgurante e belo que valerá a pena transcrevê-la, ainda que muito provavelmente não se trate de fruto de experiências espirituais, místicas ou iniciáticas, embora por detrás de tão belas palavras e intensos sentimentos possam estar não só leituras mas também vestígios de boas meditações coroadas de certezas, intuições, visões ou sensações-sentimentos fortificantes e, assim sendo,  vivências espirituais, embora ele não o afirme explicitamente e antes se inclua, humildemente, na humanidade caída. Talvez por tal humildade e "miserabilidade", nos últimos anos de vida recebeu a influência mais ascética e pessimista do frade dominicano Girolamo Savonarola (1452-1498) e do seu círculo anti-platónico de S. Marcos.
                                      
  O princípio da obra reza assim: “Li, padres colendissímos [de colendu, respeito], nos monumentos [livros] dos árabes, que o sarraceno Abdallah interrogado, sobre o que nesta quase cena mundana via com mais admiração, respondeu que nada via de mais admirável de que o homem. Sentença esta que está conforme com aquela de Mercúrio: "Grande milagre, ó Asclépio, é o homem".

Cogitando a razão deste dito não se me fazia suficiente o que por muitos foi referido da prestância [superioridade] da natureza humana: esse homem internúncio das criaturas, familiar dos superiores, rei dos inferiores, intérprete da natureza pela perspicácia dos sentidos, a indagação da razão e a luz da inteligência, interstício entre a estável eternidade e o fluxo do tempo e, como os Persas dizem, cópula ou mesmo himeneu [vínculo] do mundo e, como testemunha David, pouco menos que os anjos  (...)

Hermes, ou Mercúrio, Trismegisto, três vezes grande, na catedral de Siena. Um dos elos da Filosofia Perene, muito citado ao ser-lhe atribuído o Corpus Hermeticum, colectânea anónima de textos neo-platónicos e ocultistas escritos nos séc. II a IV d. C. na zona de Alexandria,  e que foram traduzidos por Marsilio Ficino do grego para latim em 1471, e a partir de tal se divulgando mais facilmente na Europa renascentista.
Que invada a nossa alma aquela ambição sagrada de não nos contentarmos com as coisas medíocres e que aspiremos pelas maiores (...)» 
 
Pico della Mirandola imagina então e narra o hipotético pensamento-programa de Deus quanto ao ser Humano, a sua geração, o seu posicionamento no meio do mundo, o seu livre-arbítrio e a capacidade de se transformar no que quer, e estabelece depois com bastante e esforçado engenho  uma visão dos mundos celestiais, com as suas hierarquias caracterizadas, apoiando-se nos autores e personagens do Antigo Testamento, e do Novo, nos Primeiros Padres da Igreja e no Pseudo-Dionísio Areopagita, já que conheceriam e saberiam mais dos Anjos, o que frequentemente não é o caso, mas também alargando-se aos mistérios (délficos, báquicos e apolíneos) e filósofos espirituais gregos, onde, para além de afirmar a concordância de Aristóteles e Platão, cita bastante Pitágoras, seguindo-se Zoroastro, os caldaicos, cabalistas, árabes e persas (tal como Avicena), e faz algumas analogias originais, próximas do seu famoso dito «A filosofia procura a verdade, a teologia afirma-a e a religião possui-a», co-relacionando-as com o trilho purificador e ascensional do Caminho espiritual, que tem como fim ou objectivo a religação à Divindade. 

Oiçamo-lo: «Quem se absterá de admirar o ser humano? O homem, que se encontra designado com justiça nos textos sagrados de Moisés e dos Cristãos, tanto pela expressão «todo de carne», tanto pela expressão "toda a criatura", tomando qualquer aspecto de carne ou as qualidades de não importa qual criatura, pois ele mesmo se figura, se modela, se transforma. Também o persa Evantes pode escrever, quando ele expõe a teologia caldaica, que o homem não tem qualquer imagem inata própria, antes tem muitas estrangeiras e adventícias. Donde a fórmula dos Caldeus: Enosh hou shinnoujim vekammah tebatoth baal haj, "o homem é um ser de natureza variável, multiforme e voltigente".

Mas a que tende tudo?  A fazer-nos compreender que ele nos pertence, pois a nossa condição nativa permite-nos ser o que nós queremos, e de velarmos sobretudo para que não nos acusem de termos ignorado a nossa elevada missão, ao tornar-nos semelhantes às bestas de carga e aos animais privados de razão. Que digamos antes, com o profeta Asaph [Salmos, 81, 6]: "Vós sois todos deuses e filhos do muito Alto". Guardemo-nos de abusar da extrema boa vontade do Pai, fazendo um uso funesto do livre arbítrio que nos deu para a nossa salvação. Que uma espécie de ambição sagrada invada o nosso espírito e faça que, insatisfeitos da mediocridade, aspiremos aos cimos e trabalhemos de todas as nossas forças a atingi-los (pois nós podemos, se nós o queremos). Desdenhemos as coisas terrestres, não nos preocupemos com as do céu e, para acabar, releguemos para segundo lugar tudo o que é do mundo, voemos à corte que está para além do mundo, perto da supra-eminente Divindade. É lá, como nos relatam os mistérios sagrados, que os Serafins, os Querubins e os Tronos têm o primeiro lugar; quanto a nós, doravante incapazes de bater em retirada e de suportar o segundo lugar, esforcemo-nos por igualar a sua dignidade e a sua glória. Por pouco que nós o queiramos, não lhes seremos em nada inferiores...

Mas de que meio dispomos nós, e o que podemos enfim fazer? Vejamos o que eles próprios fazem, que vida  vivem eles. Se nós assumirmos tal vida, também nós teremos posto a nossa vida ao nível da deles. O Serafim arde do fogo da caridade; o Querubim brilha do esplendor da inteligência; o Trono eleva-se na firmeza do julgamento.
Se portanto,
dados à vida activa, nós tomarmos conta das coisas inferiores mantendo direita a balança, seremos mais firmes na imutável solidez dos Tronos. Se nos pusermos retirados da acção para meditar o trabalhador na obra, a obra no trabalhador, e se a nossa actividade tomar a forma de umas férias contemplativa, nós resplandeceremos de todas as partes do brilho dos Querubins. Se nós ardermos de amor apenas para o próprio trabalhador e para ele só, é do seu fogo, que é voraz, que à imagem dos Serafins seremos abrasados, abraçados subitamente. Sobre o Trono, ou seja o justo juiz, Deus, senta-se e julga os séculos. Sobre o Querubim, ou seja sobre o contemplador, ele voa; e, como se o chocasse, ele aquece-o.

Quando o Espírito do Senhor move-se sobre as águas, eu entendo aquelas que estão em cima dos céus e que, segundo Job, louvam o Senhor nos seus hinos matinais. Aquele que é Serafim, ou seja amante, está em Deus como Deus está nele, ou melhor Deus e ele não são que um. Grande é a potência dos Tronos, à qual nós atingimos pelo julgamento. Suprema a sublimidade dos Serafins, à qual atingimos pelo amor. 

Mas como levarmos o nosso julgamento ou o nosso amor sobre o que não conhecemos? É o Deus que ele viu que Moisés amou; é do que ele viu na sua contemplação sobre a montanha que ele fez na qualidade de juiz, uma regra para o seu povo. Intermediário, portanto, o Querubim prepara-nos pela sua luz ao fogo Seráfico, tal como ele nos orienta pelo seu brilho para o julgamento dos Tronos.

Tal é o nó dos primeiros espíritos, a ordem paládica [de sabedoria de Palas], que preside à filosofia contemplativa: é ele que devemos primeiro obrigar e nos esforçar de atingir, aquele que devemos compreender ao ponto de sermos raptados pelo facto do amor, para descermos de novo bem equipados e preparados para as obrigações da vida activa (...)» 

Ora se Pico della Mirandola nas descrições das hierarquias ou coros de que trata, os mais elevados, os Serafins, Querubins e Tronos, está algo devedor do pseudo-Dionísio Aeropagita, mesmo assim dá os seus toques pessoais e originais nas ligações deles com as metodologias purificadoras e aperfeiçoadoras do ser humano, nomeadamente a justiça, a firmeza e o abrasamento amoroso, realçando bem como por trabalharmos tais qualidades sintonizamos com os espíritos celestiais, pois o Serafim arde do fogo da caridade-amor; o Querubim brilha do esplendor da inteligência; o Trono eleva-se na firmeza do julgamento.  

                     

E concluiremos por ora, com o seu valioso contributo para a melhoria das nossas possíveis relações com os três Arcanjos principais, ou mais conhecidos e venerados na Cristandade, conforme Pico nos segreda então  com bastante originalidade: «Invoquemos Rafael, o médico celeste, a fim de que ele nos liberte pela moral e a dialéctica, como por remédios salutares. Então, nos que formos restaurados, habitará doravante Gabriel, a força de Deus, que nos conduzirá através dos milagres da natureza: ele mostrar-nos-á por toda a parte a virtude e a potência de Deus, e por fim levar-nos-á a Miguel, o sacerdote supremo, para que, tendo-nos alistado ao serviço da filosofia, nos cinja, como duma coroa de pedras preciosas, do sacerdócio da teologia».

 E se não conseguirmos purificar tão bem o nosso pensamento e discernimento, nem sentirmos tais ligações tão elevadas ou excelsas, pratiquemos ao menos tais virtudes e concentremo-nos mais humildemente na oração, aspiração e comunhão, adorativa até da Divindade, com o "nosso" Anjo da Guarda....

E que Pico della Mirandola (muita Luz e Amor estejam com ele) possa inspirar-nos...