segunda-feira, 29 de março de 2021

Hatakeyama Yuko e Wenceslau de Moraes: o Yamato damashii numa musume. Dos "Serões no Japão.".

Wenceslau de Moraes, alto oficial da armada e depois cônsul enamorado do Japão e do seu povo, era uma alma muito sensível, vibrátil, mística, afim da beleza, do altruísmo, da simplicidade, da pureza, da ingenuidade, dos aspectos subtis dos seres e coisas e ao longo dos anos foi registando e comentando pequenos episódios ou histórias valiosas  das almas ou subtilezas que mais o tocavam ou emocionavam. As suas obras tem o fogo do amor e da ternura a escorrer por muitas páginas, emanando afectos, fazendo-nos sentir o oceano da Compaixão e do Amor. Estas foram escritas em 1907, publicadas depois na revista Serões e, finalmente, no livro Serões do Japão, em 1925 (donde transcrevemos), a propósito de uma abnegada, ou se quisermos mártir, jovem de 29 anos japonesa, Hatekeyama Yuko san, uma musume, como ele gostava de dizer, que quis salvar a honra do Yamato damishi, o espírito do Japão ou do Yamato kogoro, o coração ético do Japão...

  «Na primeira metade do ano de 1891, o actual Czar das Rússias [o último, Nicolau II Alexandrovich Romanov, que reinará de 1894 a 1917) e então simples Czarewitche, visitou o Japão, chegando a Kobe a bordo de um cruzador do seu país. Incluía-se no programa da viagem – se a memória me não falha – a excursão por terra até Tokyo, a capital, onde o hóspede seria recebido pelo imperador, com as altas distinções que a sua presença requeria. É certo que, no dia 11 de Maio, o Czarewitche e a sua comitiva iam jornadeando de Kyoto para Otsu, usando de meio de transporte o modesto kuruma, o carrinho puxado por um homem – no caso que aponto, por dois homens, como é do estilo em longas caminhadas.  

A certa altura, um polícia da escolta que acompanhava os viajantes desembainhou o sabre, arremetendo contra o príncipe e ferindo-o na cabeça; escapando o Czarewitche de ser assassinado, graças à dedicação dos dois homens do kuruma, os quais corajosamente subjugaram o agressor. O ferido depois de receber o primeiro curativo, voltou para Kobe, para bordo do seu navio, desistindo de ir a Tokyo. O império caiu em consternação. O imperador apressou-se em vir a Kobe, apresentando em pessoa ao Czarewitche a expressão do seu pesar. Logo após, o cruzador suspendeu ferro, abandonando as águas do Nipon.
 Assim se passou o facto. Como detalhes interessantes, convém notar que os humildes condutores do kuruma, largamente recompensados pelo governo russo e com os peitos cheios de medalhas, tornaram-se uns notáveis personagens. Quanto ao criminoso, Tsuda Samzo, foi preso, processado, condenado, encerrado por toda a vida num presídio; ligeira punição… porque morreu meses depois.

Por mais estranho que pareça, há quem defenda Tsuda Sanzo, que fora anos atrás, um soldado exemplar, um veterano da guerra civil de Satsuma, onde se distinguiu pelos seus brios. Curiosamente, Lafcadio Hearn, o delicadíssimo narrador de coisas japonesas, diz numa carta íntima, dois anos depois do caso que narrei, e onze anos antes da guerra russo-japonesa [1904-1905], que Tsuda fora vítima por ventura de um deslumbramento patriótico, vendo no príncipe estrangeiro o representante do terrível colosso do Ocidente e o futuro inimigo do Japão… Como Hearn, eu assim o creio; e, se Tsuda sofreu um tal deslumbramento, não se enganava, confessemos… Dão-se, por vezes, fenómenos de estupenda previsão, na emotividade humana; Tsuda adivinhara no futuro; tivera a prematura intuição das exigências políticas do colosso, dos enormes sacrifícios da pátria, da carnificina da Manchúria; por uma diferença de datas, foi justamente um criminoso, quando um herói podera ser…

O crime enodoou a pátria inteira, caindo todo o peso da vergonha no representante supremo da nação – o Imperador. – Quando se considerem os melindres de cortesia, de hospitalidade orientais, que formam como que um código religioso em toda a Ásia e mais especialmente no Japão, poder-se-ia fazer ideia, vaga embora, da mágoa do país, da angústia do soberano. Como se se tratasse de um luto nacional, os teatros, foram fechados, suprimidas todas as diversões habituais; até o shamisen, a popular guitarra indígena, que de ordinário se faz ouvir por toda a parte, a toda a hora, em cada rua, em cada casa, emudecera; pensou-se em mudar o nome da terra onde o desacato fora feito; todos sofriam; e sabia-se que o Tenshi–Sama, o Nobre-Filho-do-Céu, o Imperador, era quem mais sofria…

O príncipe molestado saíra da terra que o ofendera; voltara-lhe as costas; vingara-se – estava no seu direito. – Não se pensava nele. O que mortificava a turba era sobretudo a consciência do desprestígio da nação e do desconsolo do soberano. Que fazer? Cada qual segredava a si próprio esta pergunta, na ânsia de ser útil, de expiar por si a falta nacional e de reintegrar o soberano em seu conforto. Mas nada havia que fazer, sentindo cada um a mesquinha individualidade de si mesmo, sem peso em tamanha conjectura.

Então, uma mulher, Hatakeyama Yuko, com vinte e nove anos de idade, exercendo a profissão de serviçal em Tokyo, a capital, perguntou também à sua consciência: - «Que fazer?» - Mais compenetrada de sofrimento do que a turba, palpitando em místico patriotismo mais intenso, pode encontrar uma resposta: - «Que fazer? Morrer!..» - Morrer, dar o que tinha – a vida, - pela pátria e pelo Imperador. Remir, por esta forma, o crime da nação; restituindo, assim, à pátria a honra e a tranquilidade, ao soberano a paz do sentimento… Nós os loiros do Ocidente, não podemos atingir o inteiro alcance desta emanação de afectos, deste mar de ternuras, pelo solo sagrado, e pelo Mikado-Deus. [Mi kado, honrado portal = Imperador]

De alma gasta, a nossa compreensão não dá para tanto. Ligamos como que uma ideia de delírio a tais transportes. Não o delírio do insano, certamente: sentimos que nos achamos em presença de uma grandiosidade moral inconcebível; acodem-nos assomos de vertigem, como se, na ordem material das coisas, em frente dos olhos nos surgisse a paisagem estupenda de um planeta estranho, de Marte, de Saturno!..

Hatakeyama Yuko pediu licença a seus amos para se ausentar. Vendeu os seus kimonos,os seus enfeites, obtendo assim um peculiosinho indispensável para o fim que tinha em mente. Em 19 de Maio, isto é, oito dias depois do atentado, seguiu para a estação da linha férrea, tomando passagem para Kyoto, a cidade santa, a cidade dos Mikados e das cavalheirescas tradições. Chegou a Kyoto na manhã do dia 20. Dirigindo-se ao estabelecimento de uma cabeleireira, ali fez afiar, à sua vista, a navalhinha de barba que trazia, - instrumento de que toda a japonesa se utiliza, talhando com ele as sobrancelhas e tirando das faces a penugem. 

Visitou piedosamente vários templos. No templo de Chion-in, num canto solitário, escreveu uma carta de despedida a seu irmão e outra às autoridades de Tokyo, rogando nesta que se implorasse do imperador para cessar de afligir-se, ao saber que uma mulher dera a sua vida em expiação pelos agravos cometidos. Pela noite, junto do palácio da prefeitura, suicidou-se, ferindo-se na garganta com um golpe certeiro de navalha. O caso foi fácil de apurar, em presença das duas cartas encontradas; o corpo foi transportado ao templo de Makkeiji, em cujo cemitério se enterrou.

Makkeiji fica para o lado do oeste da cidade de Kyoto, não longe de Nishi-Hongwanji, o célebre mosteiro; modesto poiso budista, contando mais de trezentos anos de existência, situado num bairro ermo (Omiya dori, Matsubara), onde se agrupam outros templos e onde verdejam vastos campos. Eu visitei, há poucos dias, Makkeiji. Recebeu-me o superior, grave nas suas vestes rituais, belo na sua fisionomia serena, dignamente cortês; chama-se Wada Junnen, habita aquele templo há mais de trinta anos. Um jovem sacerdote levou-me ao cemitério adjunto – todo sol, todo paz, todo silêncio, - curto espaço rectangular, eriçado de velhas lápides funerárias, que aqui se amontoam umas sobre as outras, carcomidas, esverdeadas pelos musgos. A um canto – único sítio disponível, - eleva-se uma bela pedra negra, com estes simples dizeres, em caracteres indígenas: - «Retsujó Hatakeyama Uuko Haka» (Túmulo da virtuosa mulher Hatakeyama Yuko). – monumento erigido por subscrição voluntária do povo de Kyoto.

                                            

Visitando seguidamente o interior do templo e o altar dos deuses, foi-me mostrado, junto das imagens, o ihai de Yuko, isto é, a pequenina tábua com o seu nome inscrito, de mistura com outros muitos, representando os mortos que estão sob a protecção particular daquele templo e pelos quais especialmente aqueles padres rezam. Após numa sala vizinha, relanceei dois biombos – únicos ornamentos do aposento, - sobre os quais se encontram colados muitos pedacitos de papel, com poesias que vários poetas japoneses têm dedicado à memória daquela admirável rapariga; sendo certo que amoráveis cultores das letras pátrias vêm ainda de quando em quando recitar ternas composições elegíacas junto da sepultura, em quanto que outros peregrinos e enfeitam de folhas e de flores frescas, colhidas nos campos que avizinham. Finalmente, numa outra sala, o superior mostrou-me as relíquias colhidas do cadáver, bagatelas que dão vontade de chorar: - dois pentes da cabeça; o habitual kanzashi, gancho dos cabelos com uma conta de coral; a navalhinha, toda ferrugenta, que foi a arma do suicídio; um rosário budista; um lápis e um pequeno instrumento para apará-lo; um jornal comprado na viagem, tinto de sangue; vários papéis com apontamentos e notas de despesa; uma modesta bolsa de dinheiro, onde foi encontrada a soma de cinco yens (uns três mil reis) e alguns cobres, quantia previdentemente destinada aos gastos com o enterro. – A estas relíquias, o superior Wada Junnen juntou depois, delicadamente, duas mais: - duas cartas que Lafcado Hearn lhe escrevera, quando interessado vivamente pela história de Hatakeyama Yuko, visitara Makkeiji, entrando em relações com o sacerdote; - sabe-se que dois primorosos artigos sobre o assunto figuram na obra literária de Lafcadio, falecido em 26 de Setembro de 1904, com grande perda para as letras.

 Bem. Despedindo-me do superior do templo de Makkeiji, recebi das suas mãos piedosas a dádiva gentil de uma fotografia de Yuko, outra da sua sepultura e ainda outras. Que espera o leitor reconhecer no rosto da musumé? Acaso os traços geniais de uma exaltada sonhadora? A nobreza das damas da velha corte dos Mikados?.. Nada disso: - a figurinha trivial, modesta, sorridente, de uma criada de servir. 

E é precisamente pelo seu plebeísmo que sobretudo encanta o dramático episódio que acabo de contar: - uma filha do povo, educada entre o povo, ganhando duramente a subsistência, isenta por conseguinte de histerismos de ociosa, é a heroína. – Trata-se pois de uma flor de sentimento, nascida na alma de Yuko, como poderá brotar em outra qualquer alma; é uma manifestação comezinha daquilo que se chama, em linguagem do país, o Yamato damashii, o espírito do Japão.

O acto de Yuko inspira-se intimamente na moral do Shintoismo, a religião primitiva, que manda adorar a pátria e o soberano, sacrificando-lhe de bom grado a própria vida. O Budismo, que condena em princípio o suicídio, recebe em um dos seus templos o corpo ensanguentado da musumé e dá-lhe digna sepultura. Duas religiões abençoam a lama enternecida daquela doce filha de Nipon…»

Om... Muita Luz e amor em Wenceslau de Moraes e em 
Hatakeyama Yuko, e que eles nos inspirem e abençoem....

domingo, 28 de março de 2021

Livros belos do Japão. O 1º, duma recolha em 2010, no Japão.

Em 2010 peregrinei o Japão sozinho durante 40 dias e embora os Kami, o Shintoismo, Kyoto, o Fujiyama e Tokushima de Wenceslau de Moraes fossem os principais objectivos, também outros valores e amores estiveram vivos, levando-me a visitar não só santuários do shinto e templos budistas mas também outros locais de culto como as montanhas, os rios e as livrarias.

Numa destas em Kyoto, e numa pequena feira que houve nos amplos recintos de um Jinja shintoísta, pude adquirir alguns livros que embora não conseguindo ler me atraíram pelo tema,  pela beleza formal, pela invulgaridade e pelo preço acessível.

Hoje de manhã consultando as estantes nipónicas à procura dos Serões no Japão de Wenceslau de Moraes, deparou-se-me este e ei-lo partilhado, sem grandes possibilidades de contextualização para além de parecer ser de propaganda a uma água de colónia Wakamoto e de oferecer uns ensinamentos sobre os bonsais e  a arte floral japonesa Ikebana, ou Kado, o caminho das Flores, tal como o Shinto é também o caminho do Shin, do espírito, e que poderão ser mais úteis a quem os conseguir não só apreciar mas ler..

O livro desdobra-se em 27 folhas e portanto 34 páginas, com as dimensões 19x11cm, e é cartonado. A jovem senhora saúda-nos com uma flor de crisântemo....

                                    





                                               


Wenceslau de Morais e o amor dos animais : "Budismo e Amor", um capítulo dos "Serões no Japão"

                                                       

Como há poucos textos de Wenceslau de Moraes na web disponíveis, eis um dos que escreveu para a revista Serões e que em 1925 publicou na obra intitulada Serões no Japão, dedicando-o ao seu camarada da Armada e notável historiador Henrique Lopes Mendonça, um dos autores que aos 12, 13 anos me encantava. Pois neste texto Wenceslau debruça-se com simpatia e humor sobre algumas crenças populares do budismo e dos que muito gostam dos animais, tal como a de que é possível os espíritos passarem de animais para humanos, ou vice versa. Esta crença implica outra,  a da reencarnação ou metempsicose e Wenceslau  admiti-a, numa ascensão para a perfeição, enumerando os seis reinos ou planos. Todavia, o culto dos mortos queridos, forte nele, de tal modo que já houve quem considerasse essa a religião de Wenceslau de Morais, poderá ser abalado por tal crença na reencarnação pois quando projectamos para alguém o nosso amor e saudade e essa pessoa já está incarnada e a fazer uma nova vida na qual com connosco nada terá a haver,  com que personalidade é que se comunica ou dialoga? 

É certo que mesmo as mais fantasiosas teorias ou leituras de vidas passadas, em que caíram (e seguem hoje) tantos ocultistas, sempre dão alguns anos no tempo subtil do além, num intermezzo das reincarnações, o qual em geral dará para a pessoa em vida também morrer e portanto poder (eventualmente, caso a sua visão espiritual estiver bem desperta...) certificar-se para onde deverá dirigir a partir de então as suas energias, preces e flechas de amor. Ressalve-se no Budismo Mahayana, o que chegou mais à China, Japão, a crença absurda de que o espírito reencarna-se em poucos dias, no caso da tradição do  Vietname, enumerando-se mesmo as hipóteses: 3, 21, 49 ou 100 após a morte, e em certos casos podendo chegar até 7 anos.

A harmonização das memórias da vida deve ser complexa, e deve ser difícil uma síntese bem feita de várias vidas num só ser e personalidade, algo, porém, que os milhões de pessoas, que pensam que já viveram antes, experimentam descontraídamente. Na verdade sabemos pouco seja da pre-existência espiritual, seja além dessa, também das possíveis vidas passadas, para não falar da vida depois da morte, da qual os seis reinos do Budismo são uma mera hipótese, e à partida defeituosa ou preconceituosa....

Ora Wenceslau de Moraes vai ironizar ou brincar um pouco, pois tendo conhecido um russo que morava num templo budista em Kobe perto dele, e que valorizava tanto, tanto o amor do cão para os donos, que admitia ser esse o seu desejado estado paradisíaco ou nirvânico, vai imaginar que ele, tendo morrido quando regressou à Rússia, poderá estar reencarnado em algum cão nipónico que ele encontre na rua....

Como na sexta-feira ao dirigir-me para um trabalho temporal na zona do Chiado, um cão negro, bem encaracolado, tipo fox-terrier mas alto, levado pelo dono, ouvindo o meu cumprimento saltou com tanta alegria e só queria estar comigo, e falar-me e ouvir-me, mais festas, o que fizemos uns momentos, e ganindo e ladrando com emoção quando o dono e a mulher seguiram para um lado e eu para outro, ficou-me dentro da alma uma tal dor de amor, ou de separação, que me custou e me levou a pensar, de novo, que os cães são crianças, e quem sabe se alguns têm almas já muito ou quase humanas, ou pelo menos muito amor... 

Gravei um pequeno (espaço no disco insuficiente...) vídeo, uns minutos depois já nessa livraria, e agora passado dois dias resolvi partilhá-lo (no fim deste artigo)  com o   texto de Wenceslau, que li depois, e desejar que o amor tão puro, de facto, dos animais para connosco seja um exemplo e uma força para diminuir, travar, sublimar o desamor de alguns dos governantes e exércitos mais imperialistas, racistas, ou criminosos e terroristas.

Voltemos então a Wenceslau de Moraes e às suas vivências e reflexões fabulosas nipónicas, ainda tão pouco lidas e aprofundadas, e neste caso, não as shintoistas, as que me dizem, ou nos dizem aos amantes do Shinto, mais.... 

                             

    O Budismo e o amor

«Há um provérbio japonês, de pura essência budista, que diz assim: - «Rokudo wa, mé no máe» (seis caminhos se encontram diante dos teus olhos). – O laconismo requer, evidentemente, explicações, para leitores ocidentais: seis caminhos, seis normas de conduta estão em frente ao homem; da sua escolha, do caminho que ele prefere, isto é, das boas ou más acções que pratica nesta vida, depende o destino da sua vida futura. – Sabe-se como seja a teoria da reencarnação: o homem morre para reviver, para ir viver uma outra vida; sucedem-se as existências umas às outras, as quais não são mais do que simples existências de purificação; conduzindo naturalmente o espírito, após uma série de estados diferentes, ao reino celestial. Posto isto, vejamos como o Budismo classifica os seis caminhos que apontei: - Jigokudô, o caminho do reino do inferno; Gakidô, o caminho do reino dos tormentos da fome; Chikushôdô, o caminho do reino dos animais; Shuradô, o caminho do reino da luta e dos maus tratos; Ninghendô, o caminho do reino dos homens; Tenjôdô, o caminho do reino dos céus; estes seis reinos abrangem todos os possíveis estados de existência; além deles, só existe o Nirvana, a mansão da suprema paz, da absoluta abstracção.

 Como já disse, torna-se evidente que quaisquer dos cinco primeiros reinos apontados, mais ou menos penosos ao espírito, representam estações de penitência, poisos expiatórios desse espírito, purgatórios tendentes à sua purificação, até que possa atingir o verdadeiro mundo consolador: o reino celestial. Ficamos assim habilitados a encararmo-nos, nós mesmos e todos os seres humanos, existentes, como reencarnações de espíritos que já viveram noutros homens, mas que, pela sua conduta pouco digna, tiveram de permanecer no mesmo estado; ou então tais espíritos já sofreram martírios noutros reinos, ou viveram obscuras existências de animais, merecendo após o que podemos chamar – ser promovidos, - passando a viver a vida humana. Os nossos mortos, os nossos queridos mortos, quem nos pode dizer aonde se encontram?.. 

A piedade filial leva-nos a considerá-los no reino celestial, em prémio das virtudes que na terra praticaram. Quanto aos brutos que relanceamos – o elefante, o cão, o cavalo, a serpente, o insecto, o verme, a inteira série dos seres irracionais, - devemos concluir, por idêntico raciocínio, que são reencarnações de espíritos que subiram dos infernos ou que já foram dos homens, segundo os seus méritos ou segundo as suas culpas. O esforço humano deve porfiar quanto possível – e nisto consiste a moralidade do provérbio que citei – na prática do bem, furtando-se aos reinos dos tormentos, para alcançar sem demora o bem supremo… como numa comparação muito comezinha, o sargento que, pelos seus brios, trabalhe pelos galões de oficial, evitando com cuidado uma preterição, ou – o que é pior – uma baixa de posto…

Ora conheci no Japão, há alguns anos, um homem, um russo, - um louco?.. – que, pelo Amor, se consagrou ao estudo do Budismo no intuito de falseá-lo e de fugir do Buda. Chegara ele à conclusão de que o homem ama a mulher por orgulho, por cobiça, por egoísmo; ou melhor, não ama, mas deseja. Concluíra ao mesmo tempo que a emotividade do cão realiza o sentimento do Amor na sua expressão mais sublime, amando o dono ou a dona para servi-lo ou para servi-la, para lhe obedecer, para se lhe dar todo, para defender o ídolo, para salvá-lo dos perigos, não pedindo nada em troca, não esperando benefícios, indiferente à beleza do ídolo, à sua idade e ao seu sexo… ao sexo, não inteiramente; pois afirmava que, quando se haja estudado com interesse a psicologia dos animais, será reconhecível em alguns deles, nas relações de simpatia do bruto pelo dono, o prestígio sexual, na sua expansibilidade mais pura, mais casta, mais subtil. Um cão em repouso aos pés duma mulher, fixando nos olhos dela a sua terníssima pupila é – dizia o russo, o quadro da verdadeira apoteose do Amor. Pois, para amar assim uma mulher, o russo aprofundava as doutrinas do Budismo, cuidando de descobrir como, em frente das seis estradas que decidem da vida futura de nós todos, poderia ele fugir do Buda, fugir de Deus, para optar, de acordo com as acções eu praticasse, pelo Chikushodô, o caminho do reino dos animais, e ser um deles, e ser um cão… Estranho!.. O mais estranho porém de tudo isto é que o ídolo, a mulher, segundo me constou, não existia; seria quando muito, pelo que julguei adivinhar, uma mulher ideal, como símbolo das múltiplas reminiscências de todas as mulheres que o russo já amara; tendo de uma os pés marmóreos, de outra as mãos finíssimas, de outra as tranças negras, de outra os lábios húmidos, de outra o olhar sereno…

                                       

Este curioso forasteiro alojara-se numa casinha japonesa, anexa ao templo de Maya-San, perto de Kobe, pagando aos bonzos o aluguer; registe-se de passagem que este templo, votando a Maya Bunin, a mãe do Buda, encanta pelo aspecto pitoresco do lugar. Os bonzos de Maya-san tratavam o russo com carinho, com os desvelos paternais que se devem a um doente – um doente moral. – Quando porém rebentou a guerra russo-japonesa, cuidaram de convencê-lo, por prudência, a que se ausentasse do Japão. Diz-me um informador que o russo seguiu para a Sibéria, onde, porém, morreu doido. A dar crédito a outros boatos, um coronel de cossacos, que o encontrara, descobrindo-lhe na bagagem grande soma de livros japoneses, budistas, mas suspeitos para quem não os entendia, tomou-o por um espião, mandando-o logo fuzilar pelos seus soldados.

Pelo que me respeita, ficou-me do caso uma impressão grotesca: - ao encontrar na rua um cão qualquer, lembro-me se estará nele o espírito do russo que conheci em Maya – San; vindo-me de quando em quando tentações de levar a mão ao meu chapéu e de bradar-lhe um «adeus ó coisa!» - Quem sabe!.. No entretanto, uma outra hipótese mais plausível, também budista, se apresenta: numa existência anterior, o espírito do russo encarnara-se num cão; de facto, se explica o seu desejo, activo, em readquirir aquela forma; tal como num exemplo trivial, o antigo aprendiz de sapateiro, depois feito barão, deputado, inspector de instrução pública, etc., experimente às vezes ganas de voltar à tripeça e ao tirapé. E essa mulher ideal, que ao russo tão ternos sentimentos inspirava, não seria mais do que uma sombra, do que uma visão do passado… a sua dona!..

Imaginemos que o espírito do russo, sobejamente purificado nos reinos transitórios, está no céu…»

P. S. Tendo ocorrido o encontro com o  Terrier na sexta-feira, regressando à catalogação pela mesma rua na segunda-feira, pensei "querem ver que o cão, ainda vai reaparecer", e dentro de segundos ei-lo à minha frente. Grande festa, mas mais curta e a dona puxou-o e afastou-o. O marido é que me explicou que eram da Suécia, e o cão é da variedade Crain Blue Terrier. Este encontro parece que acalmou a intensa vibração de amor sentido e cortado, e logo doloroso mas ardente, da 1ª vez que nos encontráramos. Amainou...

                   

sexta-feira, 26 de março de 2021

«Ó Anjo, ó Mestre, ó Deus!» O Anjo da Guarda é o nosso primeiro elo ascensional.

 Após uma boa meditação matinal, hoje 26-III-2021, Sexta-feira santa, escrevi um pouco num dos suportes de diário. Depois, abrindo um caderno semi-diário  antigo, vi na última página escrita um poema ao Anjo, e acrescentei umas linhas poéticas e resolvi agora transcrever tudo, com as imagens.

«"Ó Anjo, ó Mestre, ó Deus! Oh Anjo, Oh Mestre, Oh Deus", eis uma oração de aspiração, de invocação, boa...

O Anjo da Guarda é o nosso primeiro elo ascensional.

O Anjo da Guarda é um realidade, um ser que paira sobre nós e que participa de tudo (com maior ou menor distanciamento vibratório) e que é como a alma-gémea do nosso espirito, da nossa essência, da centelha divina em nós.

Estamos nós a realizar núpcias alquímicas com ele?

Quando estamos bem orientados e logo calmos, estabilizados e gratos, o Anjo protege-nos e permite que o coração seja mais sentido e trabalhado, seja na aspiração divina, seja no Amor, gratidão, adoração, devoção.

Então o Anjo é apenas o mensageiro, uma corporificação subtil da Divindade na humanidade, mas sempre para além do conecptualizado ou pensado. Ser, Luz Divina.

Om. Sexta, 26, 8 e tal da manhã. Luz e Amor para ti...»

Segue-se do caderno antigo:

1/2/2014

Anjo da Guarda subtil

Que me abençoas tanto

Confirma o meu amor puro

A ti dado e comungado.

Inspira-me, sacia-me,

Torna-me a ti mais unificado.

 

2021-26-III

Anjo da Guarda amado

Subtil companhia inspiradora

Brilha na minha aspiração

Ergue-me na adoração,

Fortifica-me na acção.

quarta-feira, 24 de março de 2021

João F. Gonçalves Cardoso, um orientalista pioneiro em Portugal. Ensinamentos espirituais.

João Feliciano Gonçalves Cardoso nasceu em 12-I-1846, em Candolim, Bardez, Índia Portuguesa. Estudou em Calangute e depois no curso da Escola Matemática e Militar de Goa. Com quem conviveu e se publicou na imprensa local, não sabemos. Em Bombaim estudou com um dos pioneiros do orientalismo inglês, o missionário e co-fundador da Universidade de Bombaim John Wilson (1804-1875), e fortaleceu com o sânscrito o seu conhecimento de latim, português, francês e inglês, o que lhe permitirá vir a ser  um pioneiro, discreto, da filologia comparada orientalista. Chegará por barco à Península em 1871, publicando Da Barra da Aguada ao Estreito de Gibraltar, no semanário Jornal de Viagens, do Porto, mas será em Coimbra que estabilizará como professor de inglês no Seminário, sendo funcionário dos Correios e examinador de provas universitárias. Como professor de línguas esteve ainda em Viseu, 1883, e Cabo Verde. Como eram as suas aulas, o que sentiram e aprenderam os seus alunos, o que partilhava ou emanava da sua Índia natal, não sabemos...
Na sua obra escrita, para além da narração da sua viagem, destacam-se os Estudos Philologicos, na Imprensa da Universidade de Coimbra, 1876, onde, embora citando ainda as fontes bíblicas mostra a sua familiaridade com Max Müller, Halheld, William Jones, Lord Mombold, Wilkins, etc., e dá belos exemplos da influência do sânscrito nas línguas europeias: «Nos vocábulos portugueses coroamento, coroar, coroação, encontramos a raiz primitiva do sânscrito que é Kard (poder, força, felicidade, coroa). Encontramo-la também no arménio kurum, no gaulês coron, no alemão krone, no inglês crown, no sueco krona, no irlandês coroin, no latino, espanhol, francês, e em diversos dialectos da Índia.» 
Finis coronat opus, o fim coroa a obra, é uma frase bela que podemos relembrar, associado ao coroar, ao fazer brilhar o centro de forças subtis da alma, em sânscrito os chakras, nomeadamente o da coroa ou cimo da cabeça. E isto tanto numa palestra, como num escrito, como em qualquer trabalho, ou obra, acrescentando luz à luz, como se diz também, ou dando o toque final, finalizando a coroação.
Explicará ainda o culto dos Cinco Elementos, bem importante de nos relembrarmos pelos seus efeitos no nosso equilíbrio psico-somático e no  alargamento consciencial de microcosmo humano ao macrocosmo: «Nos tempos da época da inspiração e da adoração espontânea, em que a religião era pura sem subtilezas metafisicas, nem complicações sacerdotais, sociais ou políticas, em que faziam esta pura invocação: Dyaus pitar Prithivi matar adhruk/ Agne bhratar vasavah mrilata nah, os primitivos arianos, descobrindo a presença de alguma coisa sobrenatural e inalterável, guiavam-se por ela».
Ao transcrever esta oração contida nas brahamanas, ou parte ritualística dos Vedas, João Gonçalves Cardoso mostra que era um brâmane e que provavelmente a recitaria, tal como a famosa Gayatri, pois tal oração relaciona-se afectivamente com esses Deuses ou, como explica,  elementos da Natureza onde se sente a Presença Divina, quem sabe oferecendo-nos a possibilidade de ainda hoje a repetirmos, e que se pode traduzir assim, numa linha algo trinitária: «Deus (Dyaus)  Pai celestial, Terra (Prithivi) Mãe inocente, irmão Fogo (Agni), Energias  Divinas,  abençoai-nos!»
Dá também alguns exemplos valiosos da espiritualidade inicial indiana plasmada na língua (aludindo implicitamente à importância da respiração como aproximação consciencial à subtileza da alma e do espírito), vendo a sua influência nas múltiplas línguas: «A palavra anima, derivada da raiz sânscrita an (respirar) significava originariamente sopro ou respiração; em grego era anémos, vento. Da mesma maneira o saxónico sawl, o inglês soul (alma) é aparentado com o gótico saivs (mês), saxónico sae, alemão see, holandês zee, inglês sea, vindo da raiz  si ou siv (agitar, mover), donde temos o grego seio (agitar). O latino spiritus (espírito) vem de spirare (respirar). O saxónico gast (espírito), o inglês ghost e o alemão gheist vêm da raiz gust (sopro do vento), donde temos a palavra portuguesa gaz, gazoso e seus derivados. »
Os seus dois estudos históricos publicados: Breve Estudo sobre as instituições sociaes, politicas, philosophica e religiosas da Índia aryana, 1874 e  a História da India, período mussulmano até à extinção do imperio mogol. Com uma introdução contendo a historia, geographia, cosmographia da antiga Índia, 1875, são livros valiosos e raros. E, falecendo aos 49 anos, com a mesma idade que Antero de Quental (embora  tivesse nascido quatro anos  depois de Santo Antero, e que não deverá ter conhecido, pois Antero a partir de 1867 já não se encontra em Coimbra), deixou alguns escritos por publicar, tal o intitulado, e bem interessante seria sabermos quem ele referenciaria de cronistas e viajantes, Mémoire sur les premiers indianistes de l'Europe, et le rôle que le Portugal chez eux, que hoje está na biblioteca virtual dos manuscritos que não chegaram a ser dados à luz e que em geral se dissolveram na poalha ou poeira dos suportes materiais não acolhidos, não perenizados.  
 Com um amigo de Antero de Quental pode ter contactado, Guilherme  Vasconcelos d'Abreu (1842-1907), pois este veio a ser um dos nossos primeiros orientalistas, e sabendo nós por cartas que Antero recebera emprestados alguns livros de Vasconcelos de Abreu, poderemos  interrogar-nos sobre os livros que terá  João Gonçalves Cardoso trazido ou feito vir da Índia, tanto mais que a dado momento da seu Breve Estudo sobre as Instituições Sociaes... mencionará um deles, a propósito do famoso Mahabharata. E como a nota é interessante vamos transcrevê-la: «Mahá-Bhárata é um imenso poema épico escrito originalmente em um sânscrito que se aproximava do vedico. Vyaça passa por seu autor e segundo ele é testemunha ocular das proezas cantadas no poema.
Segundo nos transmite o próprio poema, foi modificado por Çanti que o recebeu por outra pessoa do autor, e que 24.000 versos além dos 100.00 são a obra do poeta original. Quem quiser pode consultar o Oriental Magazine vol. III, pág. 133. Todos os que têm lido o original, à excepção de Colebrooke que censura na parte da poesia sagrada, entusiasticamente testemunham a favor do poema, aplaudindo a sua simplicidade na composição, sublimidade, graça e pathos nas passagens particulares. Quem não leu o original não pode decerto formar a sua ideia. Não lemos o original a não ser um seu episódio - Bhagavad Gita, editado por J. Cockburn Thomson [em 1855, bem prefaciado e anotado] que possuímos na nossa estante.».... 
Quanto ao destino dos valiosos livros das misteriosas estantes de uma pioneira biblioteca orientalista em Coimbra, na rua do Correio, nº 108, e onde pontificava, como lemos, uma boa edição do Bhagavad Gita, um dos mais belos e sábios textos da espiritualidade mundial e do qual entre nós saiu à luz há pouco tempo, de uma tradução já relativamente antiga, 1956, goesa, realizada pelo médico Rajarama Pundolica Sanai Quelecar, uma reimpressão  dada à luz nas Publicações Maitreya, a partir de um exemplar emprestado por mim,  pela Maria Ferreira da Silva, que a prefaciou e que ainda contou com a supervisão da professora  Margarida Corrêa de Lacerda, ninguém pode hoje adivinhar, embora eventualmente a Biblioteca de Coimbra possa ter recebido alguns, ou eventuais notas de posse que ele tenha consagrado em algumas obras da sua biblioteca possam aparecer...
Pena foi que não houvesse ainda na sua época, uma cadeira de estudos Orientais, que se desenvolveria pouco depois no Curso Superior de Letras em Lisboa (criado por D. Pedro V já em 1859), a partir do decreto de 18.XI.1878, que fundou a cadeira de Língua e Literatura Sânscrita, Védica e Clássica. Adolfo Coelho seria o seu professor, todavia quando finalmente surge a Faculdade de Letras de Lisboa, pela reforma de 1901, o professor de Língua e Literatura Sânscrita é o Monsenhor Sebastião Dalgado (1855-1922), que será o mestre de Mariano Saldanha (1878-1975), o qual será o mestre de Margarida Corrêa de Lacerda, que ensinou por fim ao professor e historiador Luís Filipe Tomás, entre outros alunos, na Junqueira, onde o psiquiatra transpessoal Mário Simões, o Rui Simões e eu, ainda aprendemos os rudimentos.
Em verdade o Breve estudo sobre as instituições sociaes, politicas, philosophica e religiosas da Índia aryana, publicado na Imprensa Commercial e Industrial de Coimbra, em 1874, num livrinho de capa amarela de 80 páginas, é ainda hoje obra que se lê bem, pois apoiada em muitas obras valiosas de orientalistas, oferece-nos um bom panorama da história da Índia na sua religião, literatura, filosofia e castas, num  resumo sintético, e do qual extrairemos agora alguns passos mais significativos, começando pelo início da sua dissertação, onde menciona os elementos e os deuses associado a eles:
«Achamos que os rishis [os inspirados autores dos Vedas] sentiram a presença dum Deus Omnipotente, criador do do céu e da terra, nos principais elementos da natureza, e por isso os divinizaram. Adoraram o firmamento (Indra), o fogo (Agni), a água (Varuna), o vento (Vayu), o sol (Athya), a lua (Chandra), a luz (Surya), a terra (Pritivi); porque se sente nesses mesmos elementos uma força poderosa, e aí a existência de Deus...»
Depois de referir a essência dos Vedas, a crença na metempsicose, os seis darshanas (de drs, ver) pontos de vista ou sistemas filosóficos, parece aceitar uma predestinação que tanto hindus como islâmicos ensinam, e descreve depois os deuses principais, e em especial as diversas manifestações de Vishnu, as chamados dez avatares, dando até uma versão da última, do Kalki, que haveria de vir num cavalo branco, invulgar. 
 A sua apresentação de Vishnu é simples mas valiosa:«A segunda pessoa da Trindade é Vishnu, alma universal de tudo quanto existe, e tem diversos nomes correspondentes às qualidades que se lhes atribuem. É Deus bom, protege os homens, consola os aflitos e redime os pecadores. Como Deus do Oceano é denominado Narayana, que se representa deitado na superfície das águas; como deus do Sol e dos astros é Indra. Entre os vegetais representa-se por uma planta Toluci [tulsi, manjericão], nas ciências por Sama Veda, nas invocações por AUM»...
Narayana, ainda hoje muito cultuado e no seu mantra, Aum namo Narayana namah, cantado, e que foi bem desenhado pelo transmontano António Lopes Mendes, outro "orientalista" pioneiro, quem sabe se amigo de Gonçalves Cardoso pois o seu A India Portuguesa, de 1886, foi o resultado de uma missão do Estado Português na qual desenhou dezenas de monumentos, paisagens e pessoas, logo que se viu desembarcado na Índia em Agosto de 1866.
Entrando depois nas leis de Manu, José Gonçalves Cardoso relativiza, e bem, a sua origem de inspiração divina, e virando-se para os tempos antigos e suas religiões confessa que «por toda a parte encontraremos essas instituições fortificadas pela autoridade sobrenatural»,  referindo «na Pérsia que Ormuzd as ditara a Zedoust; os getas acreditaram que as suas leis foram inspiradas por Hestia a Zalmoxis ; os hebreus, que Moisés as recebeu de Iao; os árabes o recebem por Gabriel ao seu profeta, que promulga em nome de Besm ellah elroham elrahin [Em nome do Senhor Clemente e Misericordioso]. Todos pretendem a força e poder sobrenatural e todos inspirados falam em nome de Deus».
De destacar a referência ao shaman ou mestre Zalmoxis e aos Getas, um povo do Danúbio, possível antepassado dos Godos e de que se encontram  referências nos escritores antigos gregos ou mesmo já no iniciado Jâmblico (280-333), que nos diz: "por ter instruído os Getas nestes assuntos e ter escrito para eles leis, Zalmoxis foi considerado por eles o maior dos deuses. Já segundo Diodoro Sículo, os Getas cultuavam Zalmoxis e a deusa Hestia," Esta terá sido a possível fonte de Gonçalves Cardoso.
Refere depois as castas, os seus defeitos e qualidades, sati (cremação da viúva) e soti (festa no 6º dia do nascimento), e as ashramas ou estágios da vida de um brâmane, cujos deveres principais «consistem na leitura dos Vedas, no seu ensino, em oferecer sacrifícios e assistir aos outros para semelhantes serviços, dar esmolas e receber ofertas.» 

Para finalizarmos (ou coroarmos...) este pequeno texto sobre João Gonçalves Cardoso (de quem reproduzimos a letra presente numa dedicatória do livrinho que nos impulsionou) primeiro, lembraremos  que, casando com Isabel Pereira da Costa (e seria algo à querida amiga, e notável escritora portuense, Dalila Pereira da Costa?), a sua descendência de três filhos, Vítor, Edgar, ambos militares, e Meta, chegou aos nossos dias, destacando-se o engenheiro de pontes e professor Edgar Cardoso (1913-2000) e a gentil e abnegada Catarina Furtado, filha do jornalista Joaquim Furtado e de sua mulher Helena Cardoso; e segundo, concluiremos com uma explicação espiritual do seu Breve resumo, quem sabe inspiradora de leituras, pois as Upanishadas são dos melhores textos da espiritualidade indiana, tendo recentemente sido publicada entre nós a tradução de uma delas por António Barahona, de grande qualidade, e nas mesmas edições Maitryea e por sugestão minha: «Upanishad segundo a definição dos autores nacionais é o que destrói a ignorância e assim se livra da obscuridade. Destes tratados resultou o sistema filosófico Vedanta, que é considerado por todos os hindus ortodoxos como o Brahmadjnana (puro conhecimento espiritual).» 

Acrescento final: hoje 30 de Julho de 2023, ao responder  aos comentários, dei-me conta que o seu  Breve Estudo sobre as instituições sociaes, politicas, philosophica e religiosas da Índia aryana, de 1874, belamente dedicado a sua mãe Maria Cristina Gonçalves, encontra-se já digitalizado no Archive Internet, onde pode portanto ser consultado, ou mesmo reimprimido.  

E dele extraio mais um ensinamento valioso, tanto mais que menciona um seu compatriota misterioso: No Rig-Veda a sua doutrina principal é a unidade de Deus. Frequente e repetidamente o texto diz: «Há na verdade uma divindade, que é o Supremo Espírito, o Senhor Omnipotente, cuja obra é o Universo» A interpretação do texto, corroborada por um nossso sábio compatriota bráhmane, e citada por um orientalista da primeira geração [William Jones. Works, vol. VI, pág. 418] assim reza: «Perfeita verdade [Satya] perfeita felicidade [Ananda], sem igual, imortal, absoluta unidade que a língua humana não pode descrever nem o espírito compreender, dominadora por toda a parte, transcendente em tudo, iluminado por sua infinita inteligência, infinito em tempo e espaço; não tem pés, mas move-se ligeiramente; não tem mãos mas agarra todo o mundo; não tem olhos, mas observa tudo; não tem ouvidos, mas ouve tudo; sem um guia inteligente entende tudo; sem causa é a primeira de todas as causas. Ele governa tudo, é omni-potente, creador [Brahma], conservador [Vishnu] e transformador [Shiva] de todas as cousas: tal é o Único Grande [Parabrahman].»

Saibamos purificar a nossa consciência com a demanda harmoniosa, conhecimento (jnana) e comunhão do espírito e da Divindade (Brahman), libertando-nos das múltiplas obscuridades, manipulações e opressões. E muita luz e amor na alma de João Feliciano Gonçalves Cardoso e dos seus familiares e descendentes...

segunda-feira, 22 de março de 2021

Poesia de Amor, de Pedro Teixeira da Mota. No rescaldo do dia mundial da Poesia de 2021

No dia seguinte ao dia Mundial da Poesia, aproveitemos para passar de um caderno escrito nestes últimos anos poesia que vale pelo amor sentido e partilhado, tanto mais que nos tempos actuais o que se tenta fazer sentir mais nas pessoas é o medo e não o amor. Logo, sejamos Fiéis do Amor...
                                                     
            Subitamente resplandeceste no céu da minha alma:

            Vinhas leda pelo jardim com teus cabelos luminosos

            E a tua face divina como a lua sorridente brilhava.

            Não pude deixar de te reverenciar e falar

            E na tua voz calma e olhar inteligente

            Discerni uma alma de eleição, um ser do coração.

 

            Conseguimos atravessar a barreira dos desconhecidos,

            E subitamente encontrarmos tantas afinidades

            É como um arco-íris no céu instável citadino.

            Como que dois peregrinos para a mesma Meca

            Que se encontram no caminho e se estimulam

            Para vencer as dificuldades e intensificar a Luz.

 

            Vou agora pelos dias com teu nome a vibrar em mim

            E o amor que por ti brota é comum ao Anjo e a Deus.

            Até onde, por quanto tempo, em que direcções,

            Que descobertas, curas, harmonias e felicidade?

            Confiantes, crentes, amantes, no Divino Ser

            Nos encontramos, comunicamos e comungamos.   

                                                  *****


Chegaste e entraste

Na minha alma e vida,

Na minha casa e ser.

Quem diria que por fim chegarias.


Vou pelo corredor e antevejo-te,

Contemplo as nuvens belas à janela

E o teu nome aparece escrito no beiral.

Chove leve e o meu coração é um Graal.


Tudo se transfigura pelo amor

Estamos prontos para tudo,

Até mesmo para morrer.

Sentimos a grande unidade

Pois um mais um são três.


Estou como o Anjo, Deus e Tu,

O coração arde e irradia.

A tua voz por dentro de mim

Circula e acalma, inspira e guia.


Quanto ao sorriso dos deuses gregos

Ou o mistério das estrelas humanas

Mesmo isso tu incarnas e desvendas,

Ser de Luz, ser de Amor, ser de Paz.

*******

Para ti, meu Amor, para ti

Flui a minha alma e coração,

Raios e sorrisos brotam dela

E fortificarem-te e alegrarem-te

Aspiram, desejam e querem.

 

Meu Amor, Teu ser misterioso

Subitamente irrompeu em mim

E fiquei de tal modo encantado

Que tenho de abrir bem os olhos

E erguer-me, dançar, voar até Ti.

 

Já o dia da vida passou o seu meio

Já numa síntese das 4 estações vivemos

E contudo quanta peregrinação contigo

Meu ser aspira a pôr em acção.

 

Que posso dizer de ti e teu interior,

E do teu sentir para comigo

Senão desejar que a reciprocidade

Nos eleve e aprofunde até à Divindade,

Em criatividade no Bem e na Felicidade.

 

Atravesso o dia por vezes clamando o teu nome,

Ao andar penso que estás ao fim da estrada.

As nuvens brancas já compõem o céu azul.

Assim possam as nossas almas se intensificar 

E ao máximo de Verdade, Amor e Divindade chegar!

                                      

domingo, 21 de março de 2021

Dia Mundial da Poesia de 2021: Um poema oferecido por Pedro Teixeira da Mota.

 

POESIA

 Palavras buscadas no céu das ideias,

Associações de ideias e aspirações,

A criatividade infinita em acção,

Ninguém sabe a conclusão...

 

Mistérios dos seres e eventos,

Infinitas vontades em lutas subtis.

Quem consegue manter-se livre,

Justo, criativo e capaz de amar?

 

Coração vivo e flamejante

Em quantas almas arde livre?

O apelo a Deus crepita em ti,

Desejas o amor pleno e perene?

 

Então luta, persiste e confia.

A chama do teu coração brilhará

Mesmo nas noites e sofrimentos

Abrindo caminho no mundo espiritual.

 

A comunhão da amizade é um farol:

- Se estás sós, lembra-te dos que amas

E sentirás o corpo místico da Humanidade

E em comunhão abrir-te-ás à Divindade. 


Quis abraçar-te mas a distância é muita.

Recebe então as subtis asas angélicas:

escreve as palavras nas batidas do coração

e sopra-as com força na respiração e oração.

 

Que a Divindade e o Amor brilhem mais em ti,

Em nós, numa Humanidade fraterna,  no mundo! 

                                                    Aummm....

             * Dia da Poesia. 18:00, 21-3-2021, nas margens do Tejo e de suas Tágides.  Caligrafia de Pedro Teixeira da Mota, na transcrição digital com pequenas alterações da única redacção manual. Vinheta de Bô Yin Râ, colorida por mim, abençoadora...