«Na primeira metade do ano de 1891, o actual Czar das Rússias [o último, Nicolau II Alexandrovich Romanov, que reinará de 1894 a 1917) e então simples Czarewitche, visitou o Japão, chegando a Kobe a bordo de um cruzador do seu país. Incluía-se no programa da viagem – se a memória me não falha – a excursão por terra até Tokyo, a capital, onde o hóspede seria recebido pelo imperador, com as altas distinções que a sua presença requeria. É certo que, no dia 11 de Maio, o Czarewitche e a sua comitiva iam jornadeando de Kyoto para Otsu, usando de meio de transporte o modesto kuruma, o carrinho puxado por um homem – no caso que aponto, por dois homens, como é do estilo em longas caminhadas.
Por mais estranho que pareça, há quem defenda Tsuda Sanzo, que fora anos atrás, um soldado exemplar, um veterano da guerra civil de Satsuma, onde se distinguiu pelos seus brios. Curiosamente, Lafcadio Hearn, o delicadíssimo narrador de coisas japonesas, diz numa carta íntima, dois anos depois do caso que narrei, e onze anos antes da guerra russo-japonesa [1904-1905], que Tsuda fora vítima por ventura de um deslumbramento patriótico, vendo no príncipe estrangeiro o representante do terrível colosso do Ocidente e o futuro inimigo do Japão… Como Hearn, eu assim o creio; e, se Tsuda sofreu um tal deslumbramento, não se enganava, confessemos… Dão-se, por vezes, fenómenos de estupenda previsão, na emotividade humana; Tsuda adivinhara no futuro; tivera a prematura intuição das exigências políticas do colosso, dos enormes sacrifícios da pátria, da carnificina da Manchúria; por uma diferença de datas, foi justamente um criminoso, quando um herói podera ser…
O crime enodoou a pátria inteira, caindo todo o peso da vergonha no representante supremo da nação – o Imperador. – Quando se considerem os melindres de cortesia, de hospitalidade orientais, que formam como que um código religioso em toda a Ásia e mais especialmente no Japão, poder-se-ia fazer ideia, vaga embora, da mágoa do país, da angústia do soberano. Como se se tratasse de um luto nacional, os teatros, foram fechados, suprimidas todas as diversões habituais; até o shamisen, a popular guitarra indígena, que de ordinário se faz ouvir por toda a parte, a toda a hora, em cada rua, em cada casa, emudecera; pensou-se em mudar o nome da terra onde o desacato fora feito; todos sofriam; e sabia-se que o Tenshi–Sama, o Nobre-Filho-do-Céu, o Imperador, era quem mais sofria…
O príncipe molestado saíra da terra que o ofendera; voltara-lhe as costas; vingara-se – estava no seu direito. – Não se pensava nele. O que mortificava a turba era sobretudo a consciência do desprestígio da nação e do desconsolo do soberano. Que fazer? Cada qual segredava a si próprio esta pergunta, na ânsia de ser útil, de expiar por si a falta nacional e de reintegrar o soberano em seu conforto. Mas nada havia que fazer, sentindo cada um a mesquinha individualidade de si mesmo, sem peso em tamanha conjectura.
Então,
uma mulher, Hatakeyama Yuko, com vinte e nove anos de idade,
exercendo a profissão de serviçal em Tokyo, a capital, perguntou
também à sua consciência: - «Que fazer?» - Mais compenetrada de
sofrimento do que a turba, palpitando em místico patriotismo mais
intenso, pode encontrar uma resposta: - «Que fazer? Morrer!..» -
Morrer, dar o que tinha – a vida, - pela pátria e pelo Imperador.
Remir, por esta forma, o crime da nação; restituindo, assim, à
pátria a honra e a tranquilidade, ao soberano a paz do sentimento…
Nós os loiros do Ocidente, não podemos atingir o inteiro alcance
desta emanação de afectos, deste mar de ternuras, pelo solo
sagrado, e pelo Mikado-Deus. [Mi kado, honrado portal = Imperador]
De alma gasta, a nossa compreensão não dá para tanto. Ligamos como que uma ideia de delírio a tais transportes. Não o delírio do insano, certamente: sentimos que nos achamos em presença de uma grandiosidade moral inconcebível; acodem-nos assomos de vertigem, como se, na ordem material das coisas, em frente dos olhos nos surgisse a paisagem estupenda de um planeta estranho, de Marte, de Saturno!..
Hatakeyama Yuko pediu licença a seus amos para se ausentar. Vendeu os seus kimonos,os seus enfeites, obtendo assim um peculiosinho indispensável para o fim que tinha em mente. Em 19 de Maio, isto é, oito dias depois do atentado, seguiu para a estação da linha férrea, tomando passagem para Kyoto, a cidade santa, a cidade dos Mikados e das cavalheirescas tradições. Chegou a Kyoto na manhã do dia 20. Dirigindo-se ao estabelecimento de uma cabeleireira, ali fez afiar, à sua vista, a navalhinha de barba que trazia, - instrumento de que toda a japonesa se utiliza, talhando com ele as sobrancelhas e tirando das faces a penugem.
Visitou piedosamente vários templos. No templo de Chion-in, num canto solitário, escreveu uma carta de despedida a seu irmão e outra às autoridades de Tokyo, rogando nesta que se implorasse do imperador para cessar de afligir-se, ao saber que uma mulher dera a sua vida em expiação pelos agravos cometidos. Pela noite, junto do palácio da prefeitura, suicidou-se, ferindo-se na garganta com um golpe certeiro de navalha. O caso foi fácil de apurar, em presença das duas cartas encontradas; o corpo foi transportado ao templo de Makkeiji, em cujo cemitério se enterrou.
Makkeiji fica para o lado do oeste da cidade de Kyoto, não longe de Nishi-Hongwanji, o célebre mosteiro; modesto poiso budista, contando mais de trezentos anos de existência, situado num bairro ermo (Omiya dori, Matsubara), onde se agrupam outros templos e onde verdejam vastos campos. Eu visitei, há poucos dias, Makkeiji. Recebeu-me o superior, grave nas suas vestes rituais, belo na sua fisionomia serena, dignamente cortês; chama-se Wada Junnen, habita aquele templo há mais de trinta anos. Um jovem sacerdote levou-me ao cemitério adjunto – todo sol, todo paz, todo silêncio, - curto espaço rectangular, eriçado de velhas lápides funerárias, que aqui se amontoam umas sobre as outras, carcomidas, esverdeadas pelos musgos. A um canto – único sítio disponível, - eleva-se uma bela pedra negra, com estes simples dizeres, em caracteres indígenas: - «Retsujó Hatakeyama Uuko Haka» (Túmulo da virtuosa mulher Hatakeyama Yuko). – monumento erigido por subscrição voluntária do povo de Kyoto.
Visitando seguidamente o interior do templo e o altar dos deuses, foi-me mostrado, junto das imagens, o ihai de Yuko, isto é, a pequenina tábua com o seu nome inscrito, de mistura com outros muitos, representando os mortos que estão sob a protecção particular daquele templo e pelos quais especialmente aqueles padres rezam. Após numa sala vizinha, relanceei dois biombos – únicos ornamentos do aposento, - sobre os quais se encontram colados muitos pedacitos de papel, com poesias que vários poetas japoneses têm dedicado à memória daquela admirável rapariga; sendo certo que amoráveis cultores das letras pátrias vêm ainda de quando em quando recitar ternas composições elegíacas junto da sepultura, em quanto que outros peregrinos e enfeitam de folhas e de flores frescas, colhidas nos campos que avizinham. Finalmente, numa outra sala, o superior mostrou-me as relíquias colhidas do cadáver, bagatelas que dão vontade de chorar: - dois pentes da cabeça; o habitual kanzashi, gancho dos cabelos com uma conta de coral; a navalhinha, toda ferrugenta, que foi a arma do suicídio; um rosário budista; um lápis e um pequeno instrumento para apará-lo; um jornal comprado na viagem, tinto de sangue; vários papéis com apontamentos e notas de despesa; uma modesta bolsa de dinheiro, onde foi encontrada a soma de cinco yens (uns três mil reis) e alguns cobres, quantia previdentemente destinada aos gastos com o enterro. – A estas relíquias, o superior Wada Junnen juntou depois, delicadamente, duas mais: - duas cartas que Lafcado Hearn lhe escrevera, quando interessado vivamente pela história de Hatakeyama Yuko, visitara Makkeiji, entrando em relações com o sacerdote; - sabe-se que dois primorosos artigos sobre o assunto figuram na obra literária de Lafcadio, falecido em 26 de Setembro de 1904, com grande perda para as letras.
E é precisamente pelo seu plebeísmo que sobretudo encanta o dramático episódio que acabo de contar: - uma filha do povo, educada entre o povo, ganhando duramente a subsistência, isenta por conseguinte de histerismos de ociosa, é a heroína. – Trata-se pois de uma flor de sentimento, nascida na alma de Yuko, como poderá brotar em outra qualquer alma; é uma manifestação comezinha daquilo que se chama, em linguagem do país, o Yamato damashii, o espírito do Japão.
O acto de Yuko inspira-se intimamente na moral do Shintoismo, a religião primitiva, que manda adorar a pátria e o soberano, sacrificando-lhe de bom grado a própria vida. O Budismo, que condena em princípio o suicídio, recebe em um dos seus templos o corpo ensanguentado da musumé e dá-lhe digna sepultura. Duas religiões abençoam a lama enternecida daquela doce filha de Nipon…»
Om... Muita Luz e amor em Wenceslau de Moraes e em
Hatakeyama Yuko, e que eles nos inspirem e abençoem....