sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Dia da libertação terrena de Fernando Pessoa. Seus ensinamentos, analogias com Antero de Quental. Reflexões. 30-XI-2018.

A morte de Fernando Pessoa, a 30-XI-1935, por volta das 20 horas, não foi certamente tão investigada e meditada como a de Antero Quental, esta ainda hoje se prestando às mais diversas explicações, sempre inconclusivas, pois como adivinhar o que ia na cabeça e coração de alguém que se suicida sozinho e sem nada dizer ou escrever. Todavia, certas causas mais plausíveis têm sido apontadas e com alguma unanimidade, tal o clima insular, a perda da educação das crianças adoptadas, o desgaste nervoso e o sentido que o corpo já de pouco servia e que a sua missão ou obra na Terra findara.
Já a de Fernando Pessoa parece aparentemente mais simples: morre corporalmente após dois dias de internamento no Hospital de S. Luís, diagnosticando-se uma pancreatite, embora se diga que tal foi o simples desfecho de uma cirrose hepática já crónica, pois como sabemos o poeta bebia bem, ou seja, com grande capacidade e simultaneamente imperturbabilidade.
Já quanto ao seu estado psíquico não há uma clara visão de como ele estava, apesar de alguns testemunhos da época e tentativas de explicação de hoje, uma das últimas sendo a de Antonio Tabuchi que escreveu mesmo Os três últimos dias de Fernando Pessoa, um delírio, num registo imaginado de diálogos entre o criador e os seus principais heterónimos.
Dos testemunhos haverá a contar com os das pessoas amigas, os dos últimos poemas e textos, embora alguns destes possam não estar datados, e só muito sábia ou intuitivamente saberemos assim classificá-lo, e, finalmente, os das cartas.
Duas destas, a pouco mais de um mês da morte, são sintomáticas do seu estado interior: em 10-XI-1935, a Tomás Ribeiro Colaço, explicando e desculpando-se por não lhe ter enviado colaboração para a revista Fradique:« (...) Salvo erro, desde 4 de Fevereiro - data em que publiquei no Diário de Lisboa o artigo Associações Secretas - não publiquei senão um breve poema na revista Momento, revista de rapazes, revista simpática, mas, parece-me, muito mais secreta que as «associações» acima citadas.
O facto é que, desde o ano passado, tenho estado sob o influxo de estados nervosos de diversas formas e feitios, que por um longo período me arrancaram da vontade até o desejo de não fazer nada. Tenho-me sentido uma espécie de filme psíquico de um manual de psiquiatria secção psiconevroses. Só agora começo a emergir lentamente para qualquer coisa vagamente parecida com actividade. Tanto assim que finalmente lhe estou escrevendo.»
Realcemos que se tem feito pouca indagação sobre o impacto destrutivo em Fernando Pessoa da polémica anti-maçónica em que se deixou envolver.
A segunda carta, de que temos alguns fragmentos, um deles datado, de 30-XI-1935, a um mês de morrer, mostra-nos Fernando Pessoa a morrer nos seus ideais e valores face à repressão ou censura que se adivinhava da parte de Salazar e seu Estado Novo, que de novo nada tinha, como Pessoa ironizava. É enviada a Adolfo Casais Monteiro:
«Desde o discurso que o Salazar fez em 21 de Fevereiro deste ano, na distribuição de prémios no Secretariado da Propaganda Nacional, ficámos sabendo, todos nós que escrevemos, que estava substituída a regra restritiva da Censura, “não se pode dizer isto ou aquilo”, pela regra soviética do Poder, "tem que se dizer aquilo ou isto”. Em palavras mais claras, tudo quanto escrevermos, não só não tem que contrariar os princípios (cuja natureza ignoro) do Estado Novo (cuja definição desconheço), mas tem que ser subordinado às directrizes traçadas pelos orientadores do citado Estado Novo. Isto quer dizer, suponho, que não poderá haver legitimamente manifestação literária em Portugal que não inclua qualquer referência ao equilíbrio orçamental, à composição corporativa (também não sei o que seja) da sociedade portuguesa e as outras engrenagens da mesma espécie». 
Noutros fragmentos, Fernando Pessoa diz que vai então deixar de escrever, até para não dar trabalho aos funcionários do lápis da censura...
  Dos testemunhos, João Gaspar Simões, o seu primeiro biógrafo e ainda hoje um dos melhores, mostra-nos assim no seu clássico Vida e Obra de Fernando Pessoa, a morte a aproximar-se dele: «Três dias antes de morrer, ainda descera à Baixa, entrara no Martinho da Arcada, bebera um café, conversara com José de Almada Negreiros, soltara algumas das suas gargalhadas nervosas, que lhe faziam estremecer o corpo desconjuntado, e pigarreara, tossira, tossira muito, pois tinha agora um pigarro de alcoólico, que se ouvia longe. Tempos antes, em casa da irmã, em S. joão do Estoril, fora acometido de um breve ataque de delirium tremens (...)».
Narra depois como ele bebia e fumava demasiado e estava muito só em casa, dizendo que o seu primo médico Jaime Neves, «proibira-o de beber: "um cálice mais de aguardente, e seria o fim"»
Foi mesmo Jaime Neves quem o obrigou na manhã de 28 a ir para o hospital de S. Luís, ao Bairro Alto, numa "automaca", sem que antes Fernando Pessoa não deixasse de pedir a um amigo que enviasse no dia seguinte um telegrama para a sua encantadora meia-irmã Madalena, a "Tecas" (que  ainda conheci), que fazia anos. Será com uma enfermeira, um capelão e o primo médico que partirá para o além...
João Gaspar Simões, frequentemente fino psicologicamente, e no caso subscrevendo (F. Pessoa afirmara-o) que o génio é um iniciado de nascença e que Fernando Pessoa em jovem vivera no mítico Paraíso Perdido e o assimilara, donde depois a sua busca ocultista e esotérica descreve tal momento assim: «Ei-lo que entrava, finalmente, no paraíso que perdera. Agonizava, e no meio da sua agonia, repuxando a dobra do lençol teve de súbito, uma pausa de estranha quietação. Abriu os olhos, olhou em roda, e vendo que não via, serenamente, como quem não esquece que os míopes, para ver, precisam de óculos, pediu que lhe dessem as suas lentes: "Dai-me os óculos", murmurou, semicerrando os olhos enevoados. Foram estas as suas últimas palavras.» Certamente melhores leituras poderiam ser oferecidas, como a prometaica e heróica que, perante o desvanecimento do fogo da visão, quer ainda focar o mundo e confrontá-lo, recriá-lo...
Sabemos, da véspera, as suas últimas palavras escritas: I don't know what tomorrow will bring, "Não sei o que o amanhã trará", frase de grande humildade para um homem que em vários momentos da vida se erguera como esquadrinhador dos céus natais, seus e dos outros, qual profeta de Portugal e do mundo, na linha de Bandarra e Vieira, como se afirmara na Mensagem.
Quereria dizer apenas que não sabia o que aconteceria amanhã, nomeadamente se estaria ainda vivo?
Quereria dizer que não sabia o que lhe traria a vida no além, cuja entrada iria acontecer no dia seguinte?
Ou como profeta exangue, sentindo-se morrer com a Pátria, afirmava a sua fragilidade de conhecer e augurar os destinos de Portugal, outrora sonhados quinto-imperialmente?
Que ideias e ideais, que aspirações e realizações subsistiam?
Todos os que escrevem e conservam muitos textos que gostariam ainda de publicar sabem bem a tragédia que é quando subitamente a morte dá uns dias, ou horas de vida.
Com o seu génio em grande parte ainda por publicar, tal ameaça subitamente presente, o que lhe causaria de pensamentos e sentimentos, ele que pedira pelo menos mais uns anos para poder publicar parte da sua obra?
Como foi assimilando ele a ideia da aproximação da morte corporal e cerebral, nas últimas semanas ou horas?
Provavelmente não a hipostatizando e chamando e invocando amorosamente, tal como Antero nos seus sonetos, mas sim sentindo apenas o derruír das forças psicossomáticas e vendo a menor ou maior luz e certeza na identidade imortal...
Quem estava mais preparado para morrer, perguntaremos, não apenas no sentido de maturação de desprendimento da terra e dos desejos humanos, como se entende basicamente na arte de morrer, tão ensinada desde a Idade Média religiosamente, nem só também de cumprimento da sua missão ou tarefas na Terra, mas também na sensibilidade interior de realização espiritual de união com a sua centelha espiritual e verdadeiro eu?
Esta unificação das forças anímicas, este saber utilizá-las durante a vida correctamente, sabemos que não foi muito rigorosamente ou metodicamente prosseguido na vida de ambos, embora Fernando Pessoa tivesse escrito e aprofundado Regras de Vida (de que eu dei eco no Moral, Regras de Vida, Condições de Iniciação, 1988), já que gostaram de cultivar o lado decadentista, pessimista, de vazio e morte, Fernando Pessoa bebendo ainda por cima excessivamente, pelo que não tiveram vidas muito harmoniosas e felizes (frequente nos mais geniais..) e poderiam consequentemente  ter chegado à morte com poucas forças de vida, luz e amor acesas neles, não fosse o génio criativo intelectual e o amor aos amigos que tanto fulguraram neles, muitas das cartas de Antero de Quental sendo nesse campo assombrosas de transmissão anímica espiritual...
Ora sabemos que morreram ambos com pouco amor, tanto no que ardia neles como sobretudo no que receberam dos outros.
 Fernando Pessoa teve uns escassos meses, por duas vezes, Ofélia Queirós como namorada, compensando-se desse celibato no forte amor à mãe e a uns poucos, muito poucos, amigos. Estava intimamente só, bebendo, escrevendo, planeando, investigando
Antero, teve os seus amores de juventude, uma paixão por uma senhora alemã ainda na recuperação dos nervos nas termas de Bellevue, junto a Paris, já em 1887-88, mas de novo será o amor aos familiares, às duas crianças adoptadas e aos amigos que o caracterizou.
Relações sexuais amorosas certamente ambos tiveram, embora menos Pessoa, mas o unitivo abraço fusional de dois corpos e duas almas tiveram pouco, embora certamente mais Antero nos seus tempos mais ardentes, juvenis. Não estavam portanto com seus corpos psico-espirituais bem carregados da intensidade alquímica da unidade dourada e do amor.
Perguntar-nos-emos então, como poetas, pensadores, filósofos, metafísicos e espirituais não fizeram eles grandes demandas pioneiras, não entraram eles em contacto com doutrinas esotéricas e ocultas, ou com as tradições de outras religiões?
Sim, certamente aí Antero de Quental foi pioneiro em alguns aspectos de estudo do budismo, do orientalismo, mas também tanto estudando a tradição mística ocidental como as últimas realizações da filosofia e da ciência, e a possível unidade delas, como nos descreve no seu último ensaio Das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, e que denominou Unidade de Consciência, Panpsiquismo, Trancendentalismo místico, etc., propondo mesmo para se aprofundar tal uma Ordem contemplativa e ecológica, a Ordem dos Mateiros.
O que destes estudos ele conseguiu aprofundar, meditar e assimilar interiormente, num sentido de ter gerado dentro de si forças unificadas ao  eu espiritual e logo capazes de lhe darem mais imortalidade consciencial, não sabemos bem, bem...
E Fernando Pessoa, o enorme conhecedor de religião cristã, ocultismo, maçonaria, ordem secretas, mistérios pagãos, astrologia, simbolismo, iniciação?
Fernando Pessoa, que esboçou até alguns tratados de metafisica, e vários  estudos-ensaios inacabados sobre a intuição, a iniciação, os rosacruzes, a maçonaria e que sobretudo nos últimos meses de vida entra numa luta em defesa das sociedades secretas e mais concretamente da maçonaria?
Esta última parte, que só se sabe fragmentariamente, embora bastante melhor quanto ao ano final da sua vida graças aos recentes estudos de José Barreto, contém contudo bastante aspectos valiosos que devem ser questionados e que nos auxiliarão até a cingirmos melhor como estaria Fernando Pessoa à hora da morte?
Estaria ele em risco de se "converter", tal como sucedera a Gomes Leal, a Guerra Junqueiro, a Leonardo Coimbra, e tal seria um sacrilégio para muitos pessoanos dos nossos dias, em que tal já muito raramente acontece, ou pelo contrário estava bem firme no seu anti-catolicismo, ou mais na sua adesão às sociedades secretas e mágicas, seja à tradição espiritual Templária que afirma ter escolhido, nessa famosa carta autobiográfica de 30-III-1935, certamente em rescaldo e desagravo das críticas e ataques que sofrera dos meios mais conservadores e católicos?
Admitamos que estaria face ao umbral iniciático da morte apenas como génio literário e peregrino espiritualista no Caminho, com as forças que experienciara e conseguira unificar a si...
Consubstanciar-se-iam elas em mantras que pronunciava interiormente (ou que até ouvia...), não confessando apenas, como astrólogo realista ou sincero, que "não sabe o que o amanhã lhe trará", mas também essas orações (ou mesmo poema, quadras) de aspiração à Luz, aos Mestres, ao Anjo, à Divindade?
                                 
O santinho de S. António que andava sempre na sua carteira teria algum sortilégio infantil de o fazer orar e sintonizar com um mestre-santo, já não no modo irónico com que o retratou pular num poema e se afirmou mais devoto de S. João Baptista, patrono dos Templários?

Os mantras templários e da Ordem Cristo ciciou-os em momentos dessa agónica transição quando o esvaímento mental, intensificado pela posição alongada, não fosse tão grande que o reduzisse a uma passividade não pensante?
 O Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini Tuo da gloriam?
O In nobis regnat Ignem, ou In nobis regnat Jesus?
O "De Deus nascemos, em Jesus morremos, pelo Espírito Santo ressurgimos"?
Ou, graças àquele que adoptara do infante D. Henrique, para a sua recriação de uma ordem Templária, Talent de Bien faire, tentava entrar sem medo, e em aspiração luminosa, no além do seu corpo e cérebro?
Iremos partilhar mais três contributos para a morte e ressurreição de Fernando Pessoa, escritos seus, e um deles provavelmente desconhecido, algo bombástico até, e que farão mais alguma luz sobre o seu estado de realização interior, tanto sobre as luzes como sobre as sombras que assumiu e o seguiram muito provavelmente também no além:
1º, um poema intitulado Sup. Incognitos, escrito em 9/5/34 e publicado por mim pela primeira vez em 1989, na Poesia Profética, Mágica e Espiritual, e transcrevendo agora a parte final:
«Mãos do meu Anjo da Guarda,
Que bem guiais, como dois,
O meu ser que teme e tarda,
Postas firmes nos meus ombros
Sem de que eu saiba de quem sois!

Vou pela noite infiel
Sentindo a aurora raiar
Por traz de algum que me impele;
Mas já adiante de mim
Vejo a Luz a se espelhar.»

 Conseguiu Fernando Pessoa, na preparação ou no encaminhar para a morte, relembrar-se ou mesmo ler-dizer-sentir-ver interiormente este poema, ou outro dos seus mais iniciáticos ou espirituais?
O 2º contributo é um pensamento não datado mas que tem o sabor de conclusão de uma vida toda de demanda oculta e espiritual, certamente a par do querer ser o supra-Camões modernista:
«O conhecimento de Deus não depende do hebreu, nem de anagramas, nem de símbolos, nem de língua alguma, falada ou pensada [variante: figurada]; faz-se pela ascensão univocal da alma, pelo encontro final da alma consigo mesmo, do Deus em nós consigo mesmo».
É um ensinamento muito elevado e bem importante de se reflectir e meditar, quando há tantas formas actuais de esoterices e cabalices, canalizações e conversas com Deus...
O 3º, desconhecido ou pouco conhecido até hoje, diz-nos assim, numa glosa de desilusão às grandes realizações ou iniciações de altos graus de ordens secretas, mágicas ou maçónicas, e sugerindo algo do que poderá ter sentido na hora da morte:
«Estou sozinho no Vale de Kilwinning. Faz frio na Montanha de Heredon. Não temos mãe nem pai no Monte Abiegno.
A força da Igreja de Roma é grande (pai), com todos os seus vícios, é mãe que, com todos os seus erros, tem (o) regaço. (...)»
Eis um texto que certamente surpreenderá alguma gente...
 
Graças à Ordem do Universo, à hora da desencarnação, Fernando Pessoa tinha um religioso, um médico e uma mulher e curadora ao seu lado, à sua mão ou, parafraseando Antero de Quental, "na mão de Deus", na comunhão das almas, no corpo místico da Humanidade, ou Campo Unificado de Consciência Informação Energia...
 Muita Luz e Amor Divinos neles... Aummmm... 
Lisboa, 19:52 de 30 de Novembro de 2018.

domingo, 25 de novembro de 2018

Cartões de felicitações, de boas festas, de auspicioso ano, transmissores da Beleza e do Amor Divino na Humanidade

                                                      
Há cartões de felicitações, de boas festas natalícias, de feliz novo ano e de aniversário que sendo tão belos proporcionam na alma de quem os contempla algo do que foi desenhado e se desejava transmitir: felicidade, amor e alegria e, logo, esperança que o mundo há-de melhorar...
                                     
Contêm tanta arte e delicadeza, harmonia e beleza que naturalmente nos propulsionam para uma osmose com o que temos diante de nós ou nas nossas mãos, e pelo seu ponteado e relevos despertam nos nossos dedos uma capacidade de ler e de sentir essa subtil substancialidade do Bem incarnado no papel ou cartão o qual, provindo de um árvore e eco-sistema, atravessa anonimamente séculos e desagua a sua mensagem no seio do nosso oceano anímico, provocando ondas psíquicas nos que acolhem com sensibilidade tais energias, as quais por vezes querem irradiar numa nova comunicação e contextualização, não ficando cartões limitados ao que neles se escreveu originalmente, embora por vezes com subtis eflúvios amorosos bem duradouros, e desejando despertar em nós mais adesões à Beleza e ao Amor, mais criações e comunhões com eles, tal como agora realizamos.
A beleza das flores desenhadas e tão esbeltamente desabrochadas sobre fundos em relevos e em cores tão suaves, as sugestões de harmonia e amor que deles germinam, tornam a contemplação de tais cartões ou postais uma verdadeira oração e a nossa alma eleva-se em gratidão, irradiando serenidade e harmonia para um planeta tão dilacerado pelo imperialismo do eixo oligárquico e norte-americano e o industrialismo e corporativismo capitalista tão egoisticamente poluidor ou perturbador das harmonias de Gaia..
                     
Além das flores, os principais acompanhantes de tais cartões de amor e felicitações são as paisagens, as águas, a lua, as estrelas, as árvores e as aves, em especial a pomba, o rouxinol e a andorinha, verdadeiras mensageiras, ou pelo menos inspiradoras, de voos do pensamento e alma que levam desejos, dedicações e amor entre os que se amam, como em tanta poesia e literatura imortal ouvimos cantar.
Por exemplo, desde o persa Hafiz (1325-1390): «“A noite contém [em si uma] criança”, não ouviste dizer às pessoas?/“A noite contém criança"! O que dará ela à luz?,”/Pergunto sentado às estrelas quando estás longe./ Oh, vem! E quando o rouxinol da alegria/ Sibilar no chão do jardim desperto pela Primavera/ No coração de Hafiz ecoará um som doce,/Os rouxinóis divinos ensaiam o seu canto», até, entre nós, Augusto de Santa Rita (1888-1956, e cujo lema foi Ab Imo Pectore/Aequo Animo, Do íntimo do meu peito/De ânimo equitativo), que na magistral justificação da revista Exílio, realizada com Fernando Pessoa e os poetas da Orpheu, chama aos elos da Tradição poética e espiritual Portuguesa, de D. Dinis a Antero de Quental, passando por Camões e Bocage, "rouxinóis" cantando suas toadas que as mães e educadoras transmitirão às gerações futuras. E fazemos votos que se pratique ainda nas casas e nas escolas esta iniciação poético-espiritual...
Assim cada  cartão destes foi uma germinação florida de boas energias que cavalgou no vento até tocar alguém e por aí ficar, ou que então, ainda hoje, subitamente, como as frágeis asas do malmequer-bem-me-quer, é soprado por alguém e de novo ressuscita e voa no seu esplendor de perfeição e beleza fecundante, despertante...

                                          
O céu azul, as cores suaves, o ramo de flores tão coloridas como perfumadas, o desfocado do plano mais longínquo, tudo converge para vivermos integradamente ou holisticamente o cada momento com auto-consciência, confiança, intensidade e gratidão, pois o Amor Inteligência subjaz e circula no Universo multidimensional, e devemos sempre manter viva a esperança no que de melhor sentimos e desejamos, aspiramos e queremos, em sintonia com o Bem e o Amor Divinos. Mesmo quando, agora em 2023, assistimos a quase um novo Holocausto...
Qual pomba que desce, a imagem simbólica imaginada para a consciencialização espiritual ocorrida a Jesus e que foi denominada de descida do Espírito Santo, uma forma de se representar a inspiração, a intuição, a comunhão com o espírito, o mundo espiritual e o Ser Divino. Para tal nos desafia a Beleza, pois na criatividade  seremos inspirados e sentiremos a Beleza, em especial no sensibilidade interior e profunda, grata...
                             
Possamos nós nestes tempos tão conturbados permanecerverdadeiramente serenos, criativos, sábios e irradiantes da Luz do Amor Primordial, para que a Paz e a Justiça, a Beleza e o Amor floresçam um pouco mais no mundo...

O barão napolitano Roberto Winspeare apresenta o ensinamento de Bô Yin Râ, em 1929, em França.

                                            
Pouco se sabe do barão Roberto Winspeare, para além de ser siciliano, nascido em Nápoles em 11 de Outubro de 1887 e ter-se casado com Eugenia Davidovich, tendo três filhos, e sobretudo ter sido o primeiro tradutor em francês de livros do pintor e mestre espiritual Bô Yin Râ (1876-1943), em 1929 
pronunciando duas conferências sobre Bô Yin Râ, na Sorbonne, a famosa universidade parisiense, no IV Congrès Psicosociologique, e no Institut Pranotherapique de Paris, em 10 de Julho de 1929. Deixará a Terra em 1 de Junho de 1954. A última conferência sobreviveu à volatilidade do verbo graças à sua publicação por escrito, que acolhemos com gratidão neste texto. Intitula-se Esquisse sommaire de l'Enseignement de Bô Yin Râ, e foi editado pela prestigiada Librairie Orientale et Americaine Maisonneuve Frères.
Nela se pode sentir a boa compreensão dos ensinamentos de Bô Yin Râ, com bastantes citações mas mesmo assim realçando os aspectos segundo a sua sensibilidade e vivência, e caracterizando-se humildemente como um dos discípulos comentadores, menos qualificado. E não diz ter conhecido pessoalmente Bô Yin Râ, pelo menos na época, embora
tenha lido que se conheceram...
De mais importante o que diz, auxiliando-nos no caminho espiritual, pois é tal o mais essencial desta nossa vida efémera e frágil e simultaneamente tão rica e poderosa?
Considerando-se um indigno intérprete em francês da sua obra, realça tratar-se duma doutrina de sabedoria fecunda e de amor activo, baseado no conhecimento interior das leis da manifestação cósmica, desde a Arqui-Causa, a Primordialidade, até aos aspectos mais palpáveis e concretos.
Em contacto com tal sabedoria, diz, foi-se transformando até sentir que a sua consciência individual era de certo modo o suporte e o centro de acção dinâmica da Consciência Universal.
Com grande serenidade, paz, alegria e confiança face a tudo, começou a traduzir a obra de Bô Yin Râ e recebeu em 1929 o primeiro convite para conferenciar sobre o ensinamento, o qual impresso na época, como já dissemos, foi reimpresso em 1976 pelo instrutor francês de Kriya Yoga, Rishi Atri, meu primeiro mestre de Kriya Yoga e que me ligou ao ensinamento de Bô Yin Râ, pois publicara no seu centro em Neuvy-en-Champagne, onde peregrinei, esse livrinho que ainda hoje guardo: L'Enseignement de Bô Yin Râ (Vie-Voie-Verité) Exposé du Baron R. Winspeare. Atma Bodha Satsanga-Diffusion, 1976.
Na sua revista Atma Bodha, Rishi Atri apresentou assim a obra do Barão Roberto de Winspeare que editava:«Este pequeno livro expõe o essencial do ensinamento deste mestre ao qual frequentemente nos referimos. Como o próprio Bô Yin Râ sublinha no seu livro A Arte Real: «Se dás ao teu guia o nome de Mestre, sabe que um só e mesmo Mestre exprime-se em cada um de nós." Este livro é uma excelente introdução à obra de Bô Yin Râ, da qual se pode dizer que ela é Vida, Caminho e Verdade, fora e além de toda a doutrina. Ela exprime e manifesta, sem espírito de capela, o que Paramahansa Yogananda desejava: a Igreja de todas as religiões.»
                                          
Tradutor e comentador, mas com as suas insuficiências, dirá Roberto Winspeare, pois apenas lera, desde que o conhecera há cinco,  vinte e cinco das suas obras (as que na altura, das 32 do Hortus Conclusos, mais as oito extra-conjunto, estavam publicadas) e teria que ter  assimilado o ensinamento, tal como recomendava Bô Yin Râ, pois ele não é um sistema filosófico ou ciência «mas verdade, caminho e vida!... 
Ora tal exige uma vontade inquebrável de luz, uma tensão de todo o ser para o objectivo a ser atingido, que é o despertar da centelha divina que dorme no fundo do nosso eu, a fim de que ela retome a consciência da sua identidade espiritual, da sua potência ilimitada, da sua missão de amor e da sua unidade com o Espírito criador universal.»
                                        
Eis um belo resumo, quase mântrico, da parte mais subtil, íntima e  difícil do Caminho...
Eis em poucas palavras, quase no início da conferência, mostrando a espontaneidade de Roberto Winspeare, a essência do caminho real do ensinamento de Bô Yin Râ. Todavia, acerca da dificuldade de escrever, partilhar ou mesmo traduzir e comentar, Robert de Winspeare lembra que Bô Yin Râ refizera sete vezes um livro porque tocava em aspectos dogmáticos religiosos que poderiam levar o seu ensinamento a ser sentido como herético, mostrando a cautela e cuidado com que Bô Yin Râ se movia na transmissão do ensinamento de acordo com o meio e a época, nos princípios do século XX e já não muito longe do nascimento do trágico Nacional-Socialismo e consequente nazismo.
Será algo que deveremos provavelmente ter em conta: certos aspectos do seu ensinamento assumiram formas com alguns compromissos, seja de apreciações em relação ao antigo e ao que se acreditava, seja de enunciações ousadas de verdades ou realidades, mas que foram de algum modo mitigadas ou adaptadas para não ferirem demasiadas susceptibilidades, embora em geral Bô Yin Râ não se coíba de se afirmar como um dos raros e verdadeiros mestres, criticando certas noções muito aceites...
Quanto aos que se queixam de haver uma doutrina de Bô Yin Râ, Roberto Winspeare contrapõe que o «seu Conhecimento extrai de todas as doutrinas os conceitos e símbolos que correspondam ao que ele sabe por uma ciência certa ser a Verdade e, com esses materiais ele constrói o seu Ensinamento da Realidade Cósmica integral.» E que ele não é intolerante prova-se pela sua afirmação de que mesmo as doutrinas mais perniciosas não foram inúteis quando delas nos libertamos...
Uma nota ou cena histórica é acrescentada por Roberto Winspeare, ao dizer que participara num Congresso recente na Universidade parisiense da Sorbonne onde falara de Bô Yin Râ e aí o apresentara não como um filósofo ou ocultista mas como «um verdadeiro mestre predestinado da Realidade Cósmica interior», procurando ajudar os humanos a religarem-se com a Divindade.
Conta também que Bô Yin Râ teria sido guiado ou inspirado pelos Mestres desde criança e que o nome que lhe foi dado aquando da sua iniciação, Bô Yin Râ, «não é um pseudónimo arbitrariamente escolhido, mas aquele que os seus augustos irmãos lhe revelaram como sendo o seu verdadeiro nome na Eternidade, como sendo a expressão verbal da sua individualidade espiritual, pela qual é ele uma «Palavra na Arqui-Palavra»....
                                        .
O seu contacto com Bô Yin Râ fora obtido graças a um amigo que lhe pusera na mesinha de cabeceira o Das Buch vom Glück, O Livro da Felicidade, no ano de 1924 e, lendo-o. logo sentira a força interior e claridade que dele emanavam.
                                            
Ora desenvolver esta sensibilidade e discernimento interior é muito necessário quando é tão grande a feira do ocultismo, esoterismo e nova era, com tantos mistagogos de segredos e rituais, cabalas e templários, canalizações e curas,  tantas vezes a explorarem as pessoas... E isto diziam ambos eles apenas nos anos 20 do século passado... Como não se admirariam hoje....
O ensinamento de Bô Yin Râ nada disto contém na sua simplicidade, diz Roberto Winspeare, e pede sobretudo corações abertos que consigam «ler em paz, com grande atenção e o mais completo abandono de todo o seu ser, afim de que o sentido, tornando-se vivo no coração e no seu espírito, ajude o pensamento a seguir na mesma direcção.»
Em verdade, quem o estuda ou lê deve evitar constantes comparações com outros ensinamentos, pois o principal é sentir e viver interiormente e não, como muitos outros ensinamentos, constituir uma mera documentação externa, uma acumulação de informações, por vezes até tão manipuladas em vários aspectos como sabemos acontecer frequentemente...
Cita Rudolf Schott, como um dos discípulos de certo modo autorizados do mestre, autor de alguns livros sobre a vida e obra de Bô Yin Râ, e que realçava o facto do ensinamento não estar ainda submerso ou distorcido pelos comentários. E para quem considerava que havia poucas novidades nele, pois tudo estaria já nas diversas religiões e doutrinas, Roberto Winspeare realça que o «ensinamento sabe tornar magicamente perceptíveis ao coração humano as verdades que ele já talvez conhecesse o enunciado, mas que não sabia já sentir. E é graças a uma tal restauração da vitalidade dos símbolos e dos dogmas essenciais no coração do ser humano que este pode chegar a transformar todo o seu ser, assimilando os preceitos do ensinamento, que então se torna efectivamente Vida, Caminho e Verdade».
Assim verdades antigas «adquirem um sentido vital interior, uma vida intrínseca, que invade o nosso ser como uma torrente de água viva».
                                          
Os princípios de todas as Religiões, puros, deformados ou fantasistas, provém da mesma fonte, a Alta Comunidade dos Radiantes da Claridade Primordial, da qual ele é um membro adequadamente eleito, denominando-os também como os «Sábios do Oriente, os Auxiliares Espirituais, os Irmãos sobre a Terra, ou os Sacerdotes do Templo da Eternidade», os quais «vivem espiritualmente no coração do Oriente, rodeados de contrafortes do silêncio», como vemos na pintura seguinte, intitulada precisamente Himavat!
                                      
Roberto Winspeare explica então que vai esforçar-se em seguida por delinear a estrutura essencial do «tema fundamental e o objectivo deste ensinamento: o nascimento do Deus vivo no “Eu”», sem dúvida o coração ou essência e mais elevado objectivo deste
valioso ensinamento.
Será num segundo texto, a publicar, que findaremos o resumo, com leves contextualizações, da conferência pronunciada em Paris a 10 de Julho de 1929, por Roberto Winspeare, no IV Congrès Psycosociologique, a convite do professor Varma.
                                       

     Aum Jivatman... Saudações ao espírito individual divino, em ti, em nós, em Roberto Winspeare, em Bô Yin Râ e em todos...

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A carta de 1886 de Antero de Quental a Maria Amália Vaz de Carvalho, acerca da sua recensão dos "Sonetos" e o comentário dela, já após a morte de Antero, contextualizados.

 Transcrição comentada e sublinhada do 2ª e último capítulo do pequeno ensaio acerca de Antero de Quental por Maria Amália Vaz de Carvalho, escrito em 1896, e comemorando a sua morte e  incluído no livro Pelo Mundo Fora.  
Maria Amália transcreveu nele a carta que Antero de Quental lhe dirigira em 24-XII-1886, agradecendo um conjunto de seis artigos publicados no Jornal do Comércio de Lisboa a propósito dos Sonetos completos, então dados à luz.   

 Esses  seis artigos foram publicados num livro em 1889, Alguns Homens do meu Tempo, merecendo então de novo uma carta de Antero de Quental a agradecer o livro enviado, a qual carta Maria Amália não partilha nesta espécie de texto de homenagem (pois Antero morrera em 1891) crítico de 1896, mas que já reproduzimos e interpretamos no blogue, no texto anterior a este, intitulado: Maria Amália Vaz de Carvalho e a crítica aos "Sonetos" de Antero de Quental, e à sua demanda da Verdade, excesso de pensamento, inacção e Budismo. As réplicas. 
 Passemos então a ouvir Maria Amália Vaz de Carvalho, na segunda parte do seu artigo jornalístico em memória de Antero de Quental, incluído no seu livro Pelo Mundo Fora. Os sublinhados estão apenas nas partes mais importantes da carta de Antero. O texto escrito dentro dos sinais [[   ]] é o meu comentário...                                                
                                                      
«Quando o livro dos Sonetos apareceu escrevi eu um estudo sobre eles, que não tinha, já se vê, outro merecimento além de uma sinceridade absoluta e de uma imensa simpatia. 
Lembra-me de que lamentava do fundo da alma que o autor dessas belas poesias tão raras na nossa literatura, ― a qual como todas as literaturas meridionais não peca pelo excesso de pensamento ― tivesse consumido a vida, que tão belas coisas podia dar-lhe, metido em si mesmo, naquela espécie de meditação alucinada que se traduzia, é verdade, em versos magníficos, mas versos que eram, como as pérolas, produtos de uma dor mortal. 
E revoltava-me contra a solidão mental em que Antero se concentrara, contra as hesitações do seu querer, contra as flutuações do seu pensamento, contra o pessimismo búdico da sua doutrina, contra tudo que fizera dele um filósofo germânico, ou um sonhador nebuloso e doente, e o separava da vida, da vida que tem tantos risos no meio das suas charnecas desoladas, ou dos seus sarçais cheios de espinhos e de répteis...
Mesmo com o risco de parecer vaidosa, não quero deixar de oferecer aos meus leitores, a carta, até hoje absolutamente inédita, que Antero de Quental me escreveu então, depois de ter lido os meus artigos que se publicaram primitivamente no Jornal do Comércio de Lisboa, e que hoje estão incluídos no volume intitulado Alguns homens do meu tempo
Aí vai a formosa e eloquente carta: 
Porto, 24 de Dezembro [1886]
Minha Senhora
Agradeço-lhe muito os seus artigos no Jornal do Comércio, e creia V. que o não faço só por civilidade, ainda que não é cousa que se deva desdenhar par le temps qui court. Não lhe direi que me agradaram os seus artigos, porque isso é o menos; dir-lhe-ei que me comoveram. Há neles uma sinceridade, que me encantou, e um tom fraternal que me foi direito ao coração, onde quero que não morra nunca a vibração dessas palavras amigas. 
 Creio que V. se engana na apreciação que fez das doutrinas chamadas (quanto a mim impropriamente) pessimistas e nos receios que lhe inspiram as tendências búdicas que começam a manifestar-se por todos os lados, em sociedades que atingiram o nec plus ultra da civilização, ou em indivíduos que atingiram o nec plus ultra do pensamento. 
Tudo isso, é verdade, está ainda bastante obscuro e confundido com elementos estranhos e até contraditórios, e por isso me não admira que não possa ainda ser apreciado sem grandes apreensões. O meu livrinho, apenas aqui ou ali em meia dúzia dos últimos sonetos, fere a nota exacta e sã, porque infelizmente morreu-me o dom dos versos, precisamente quando começava a pensar e a sentir alguma cousa que realmente merecesse ser posta em verso.
Não podia ele, tão incompleto e obscuro, justamente onde mais cumpria que fosse claro e amplo, dissipar aquelas apreensões, antes era natural que contribuísse para as radicar. Mas a minha convicção é que tais apreensões não são fundadas e que entre os
sentimentos naturais e espontâneos do coração humano, entre o seu ideal de justiça, de harmonia e de beleza, e o ponto de vista ascético do Budismo, não só não há contradição verdadeira, mas que, pelo contrário, é só nessa esfera que eles encontram a sua mais perfeita expressão, libertos de muitas ilusões e de muitas imperfeições que lhe andam forçosamente misturadas, e atingem a plena consciência do que são e para que são. E seria singular com efeito que a doutrina, que entre todas, faz consistir no Bem a verdade suprema da existência humana, pudesse colidir com aqueles espontâneos impulsos da nossa natureza, que não são, no fundo, senão formas e momentos, mais ou menos obscuros, mais ou menos incompletos da nossa fundamental aspiração a esse mesmo Bem! 
A verdade é que a civilização moderna chegou, no século actual, como a civilização antiga, no período do Império Romano, a um ponto em que, sob pena de completa ruína, o problema metafísico-psicológico tem de ser sondado a uma profundidade desusada e proporcional ao grau superior da mesma civilização.
Hoje, como então, as questões metafísico-psicológicas são a chave de todas as outras questões porque, tendo o próprio progresso das instituições e das ideias arruinado os antigos alicerces morais da sociedade, a grande questão, a questão vital e inadiável não é já a do aperfeiçoamento das instituições nem do aumento dos conhecimentos, mas a da organização teórica e prática da vida moral, a criação da ordem nas consciências, em uma palavra a remodelação do homem interior, sem o qual o outro homem, da sociedade e da vida prática, por forte e sábio que pareça é mais miserável que o escravo mais embrutecido. 
O progresso gigantesco do naturalismo, filho de uma civilização poderosa e complexa como nenhuma, só poderá ser equilibrado por um progresso equivalente do ascetismo. Sem esse equilíbrio a sociedade moderna, que já hoje nos causa mais terror do que admiração, poderá continuar ainda por algum tempo de poderosa, tornada formidável, e, de formidável, bestial: mas o homem, o verdadeiro homem, isto é, o homem moral, terá morrido: e morto ele, tudo cairá, por que só ele sustenta a grande mole social. A sociedade é, antes de tudo, um facto de ordem moral.
Mas não continuo com estas reflexões, porque desejo fazer delas o assunto de um escrito, até a certo ponto em resposta aos artigos de V. e que publicarei em forma de carta, se V. levar isso a bem. 
E termino, minha senhora, pedindo a V, que me consinta assinar-me daqui em diante, como realmente sou, seu muito amigo. ― Antero de Quental” 
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Destacarei apenas na carta de Antero de Quental, para além dos sublinhados, a sua valorização da libertação das ilusões e desejos, bem como da compaixão, o Bem supremo búdico, ou iluminado, e o considerar que estamos na altura de aprofundar as questões metafísico-psicológicas, o que em outros momentos denominou Transcendentalismo, Panteísmo espiritualista e ainda Panpsiquismo, e que são conducentes ao renascer do ser moral, ético, o "homem interior", fundamental para a evolução das sociedades.
Prosseguem agora as reflexões, sobre o teor da carta, escritas por Maria Amália Vaz de Carvalho, seguidas pelos meus comentários entre [[...]]

«Esta carta tão bela na forma, e tão profunda no pensamento, apresenta porém a contradição fundamental a que Antero sucumbiu.
[[Não foi por contradições filosóficas que Antero sucumbiu seja em vida seja na morte, pois quando foi preciso entrou em acção e quando se suicidou fê-lo pelo estado dos seus nervos e pela desilusão emotiva e social que o afectou muito nos Açores, nos últimos dias da sua vida]])
O ascetismo é a contemplação mais inerte: o Bem demanda a actividade mais incansável, o esforço mais tenaz.
[[Certa pequenez de afirmação, pois o ascetismo é recomendado em todas as religiões, de algum modo. E hoje, com o excesso de consumismo, agitação e informação, mais ainda é útil nem que seja para estarmos mais calmos, lúcidos, não manipulados e alienados. E a contemplação, difícil, só é possível havendo certa imobilidade das vagas de pensamentos, desejos e acções, dando-se então a experiência da unificação ou mesmo da Unidade, mas daí resultando frequentemente inspirações para a acção.]]
Como conciliar estes dois termos opostos? Se para o extático e contemplativo pensador a quem o nirvana sorri como o supremo fim da sua ascensão ideal, cada homem não é mais do que um momento que toma consciência de si e logo passa, aquele que na terra procura o Bem e tenta pelo seu esforço criá-lo, sabe que se dissolvem as formas em que a consciência se encarna, mas que ela, a sublime chama não se apaga jamais... Nós os passageiros de um dia que conseguimos por instantes guardá-la no nosso seio mortal, passamos rápidos sim, mas não antes de a transmitirmos àqueles que nos sucedem sempre mais pura, e sempre mais intensa...
[[O nirvana não tem de ser o supremo fim dos contempladores que atingem em geral apenas estados mais claros, serenos e ampliados de consciência. Algumas outras compreensões e visões do fim supremo podem ser demandadas ou encontradas. Tanto Antero de Quental como Maria Amália Vaz de Carvalho falham ou erram quando não conseguem descobrir, intuir, sentir, vivenciar conscientemente a individualidade espiritual e perene no ser humano, ambos soçobrando, ainda que transmitindo o bem às próximas gerações, no que eles pensavam ser a mortalidade da alma-espírito... Para uma católica, como pensaríamos ser Maria Amália, até parece algo contraditório, o não afimar a imortalidade espiritual individualizada...]]
O património real da humanidade é este: por este lhe vale a pena padecer e lutar. Este não morre com as pobres gerações que se sucedem como as folhas das árvores, como as ondas do mar...
Não é pelo Budismo antigo, ou pela ascética renúncia aos bens reais da vida que a sociedade tem de salvar-se. É pelo exercício activo das suas energias espontâneas, é pela fé na sua missão do bem, na sua ascensão a qualquer eminência moral, que ela ainda não antevê de longe, mas que existe decerto, mas que deve existir, ou este instinto de progresso a que obedecemos, seria mais uma ironia atroz entre outras tantas!...
[[Maria Amália Vaz de Carvalho, depois de mais uma vez atacar o ascetismo e renúncia aos bens ilusórios da vida, como se no ascetismo fosse necessário renunciar a tudo, repete o que Antero escreveu e recomendou sobre o Bem em dezenas de cartas, embora provavelmente não o soubesse senão pela leitura das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX. ]]
A prova de que esse ascetismo a que Antero recorre na sua bela carta é estéril, é que ele, querendo salvar por este modo a sua clara consciência e o seu espírito genial, veio acabar na morte voluntária, no suicídio banal dos vencidos e dos fracos!
[[Que maluquice, pois Antero no fim da sua vida estava a perder ou a obscurecer a sua clara consciência, esfrangalhada pelos nervos, apreensões e sofrimentos. O ascetismo de Antero, ou seja a sua vida frugal e o seu desprendimento da vida social e das ilusões da vida só o ajudou a viver mais tempo. Embora certamente a morte voluntária assinale um excesso de desprendimento em relação ao corpo físico e ao seu normal ou natural morrer. Sofrimento afectivo pela separação das crianças e pela dificuldade de se ambientar na ilha açoriana? Orgulho, falta de paciência, consciência das limitações cada vez maiores que impendiam sobre ele? Difícil acertamos plenamente no que mais pesou na sua decisão]]
Infelizmente era eu, tão mesquinha, e não ele, tão grande, que tinha razão, e essa razão, foi o seu acto extremo que ma veio dar.
[[Que exagero, a “mesquinha”, ou pequena, mas bem teimosa , tentando interpretar mal o suicídio do grande ser, culpando o seu ascetismo e budismo de o terem levado a tal]]
Ninguém pensara mais alto e mais justo que esse homem de uma consciência tão delicada, de uma penetração filosófica tão subtil, e cujo entendimento parecia talhado para as mais elevadas especulações da metafísica e da psicologia.
E no entanto ele não achou outra resolução ao problema que está presentemente posto diante dos olhos das sociedades extra-civilizadas e dos indivíduos que pensam intensamente, senão a do suicídio silencioso. 
 [[Como se Antero tivesse pensado que o suicídio fosse a solução para qualquer questionamento metafísico-psicológico, vivenciando-o provavelmente apenas porque se sentia em forte sofrimento físico e psíquico e porque considerou que pouco mais de valioso conseguiria fazer na Terra]]
É profundamente desoladora a fase do espírito humano que, de vez em quando, se manifesta em factos como este.
Como escapar a este estado de descrença absoluta em qualquer destino ulterior da nossa espécie? Retroceder à boa Natureza, à primitiva ignorância dos simples, como manda Tolstoi? Mas em primeiro lugar a natureza não é boa, depois, quem sabe pode porventura, e só por efeito da sua vontade, começar de um dia para o outro a ignorar?...
[[Retroceder à boa natureza não implica retornar à primitiva ignorância, tanto mais que é bem difícil ignorarmos o que se passa, como alude. Todavia, o contacto maior com a natureza e uma vida mais simples, certamente facilitam o desabrochar de forças vitais e espirituais, tão enaltecidas por Tolstoi (alguém que Maria Amália Vaz de Carvalho também estudou) e que impediriam o suicídio. Pouca gente se lembra ou tem em conta quão mal Antero digeria os alimentos ou dormia, dois aspectos essenciais para se estar com a mens sana, algo que certamente foi uma das causas predisponentes à libertação voluntária do corpo, que já tanto o fazia sofrer e do qual estava  desprendido]]
Cada sociedade que chega ao extremo da sua civilização particular, o que, exaltando de um lado o orgulho natural do homem, produz por outro, no espírito dele, uma irritação doentia, uma penosa desesperação resultante dos limites que este acha sempre à sua curiosidade transcendente ― cada sociedade que atinge esta perigosa eminência, está por esse mesmo fato, muito próxima da sua fatal degeneração.
[[O lado algo mesquinho e rasteiro dos seres humanos manifestando-se de novo em Maria Amália, como se os limites encontrados à sua “curiosidade transcendente”, e deveria ter escrito à sua aspiração ao divino imanente e transcendente, levassem à desesperação e irritação, como se a Divindade ou, se quisermos, a Ordem do Universo tivessem originado no ser humano tal aspiração em vão ou mesmo para lhe fazer mal. Maria Amália não é uma mística, nem espiritual, nem metafísica, apesar de ser certamente uma boa psicóloga, escritora, moralista, mas a realidade do espírito, ou da demanda da Verdade, desconheceu-a ou não a quis procurar]]
Nenhuma civilização se elevou mais alto nas abstracções do pensamento, nos arrojos da metafísica do que esse Budismo em que Antero de Quental tentava encontrar a suprema paz da consciência humana. E o que tem ele produzido senão resultados negativos, e alucinações doentias? A civilização antiga, grega e romana, procurou resolver o problema do destino do homem divinizando-lhe as paixões, e fazendo a permanente apoteose da força. E todos sabem em que agonia vasquejante o mundo antigo se diluiu. A Idade Média teve uma compreensão harmónica e grandiosa da vida e do destino humano, mas tanto exigiu do espírito e tão pouco pensou na fatal realidade, que fez de cada organismo de homem um anjo e um animal perpetuamente identificados, e ao cabo do sublime esforço, respondeu-lhe o retrocesso pagão da Renascença.
[[Estas apreciações das civilizações são também fracas, com erros. Porque falou na civilização Budista e não na Indiana? Porque ignora as jóias valiosas do Hinduísmo, do qual o Budismos é uma derivação, especialização ou se quisermos até uma heresia? Como reduzir a imensa sabedoria em textos e em vidas de milhares de obras e seres da Índia e do Budismo a alucinações doentias? Também discordamos de que a Renascença tenha sido um retrocesso pagão, afirmação em que se parece contradizer, pois se a Idade Média tinha separado tanto o anjo e o animal no ser humano, a Renascença e o Humanismo foram de facto uma movimentação forte para unir o ser humano e as civilizações clássicas e até orientais com o catolicismo, tal como Pico della Mirandola, Marsilio Ficino, Eugubinus Steuco, Giordano Bruno e  outros fizeram com pioneirismo.]]
O mundo moderno quer achar na ciência a chave do todo o eterno enigma que até hoje se conserva inviolado, a explicação do universal mistério que o envolve e penetra, a resolução de todos os problemas complexos que se têm acumulado diante do seu espírito em dois ou três mil anos de pensamento ― e a ciência impotente, incompleta, desconsoladora não tem água que sacie a nossa sede, não tem piedade que unja a nossa lenta agonia!
[[Certa actualidade no século XXI, pois há muita gente que faz da ciência a sua religião, o seu critério de justo e verdadeiro, e infelizmente sabemos quão manipulada ela está e como tantos estudos são falsos. Todavia, há já muitos cientistas que conseguem explicar e manifestar o Campo Unificado de Energia Consciência Informação, ao qual subjaza Unidade da Ordem e Amor, sendo esta uma zona de investigação contemporânea que Antero bem gostaria de conhecer e sobre ela filosofar, criar explicações abrangentes e clarificadoras, capazes até de se tornarem dinamismos psico-metafísicos, psico-mórficos.]]
Os melhores abdicam ou pelo indiferentismo inerte, ou pelo suicídio; que é ainda uma vitória do espírito ultrajado sobre si mesmo!
[[Eis uma frase e ideia complexa pois ela nºao nos explica o que entende por espirito, se a mera mente, como parece, se a centelha espiritual e divina, eterna. Quererá Maria Amália dizer que o Espírito ultrajado e enganado  vence em batalha  quem estava ultrajando-o, matando-o, pondo fim à existência terrena do ego e da persona? Mas quem sobreviveria à morte física? Apenas o espírito, ou um todo unificado no qual algo do ego e da persona ainda passam para o post-mortem, amalgamados ao espírito e seu corpo espiritual?]]
E um véu de tristeza densa e plúmbea envolve este mundo enorme, agitado, convulso, atravessado de fios eléctricos que em minutos transmitem de um ao outro dos seus extremos o pensamento e a palavra; cortado de locomotivas vertiginosas; abarrotado de riquezas brutas; ébrio de orgulho material, de luxo e de vaidade; persuadido de que é a realização mais completa da felicidade e do triunfo moral do homem; mas tremendo a cada abalo subterrâneo que revele quão minados estão os seus alicerces e em que movediça areia assentam os seus edifícios de Babel!
Contudo há uma afirmação, no meio de tantas dúvidas e de tanta desordem mental, que pode ser feita sem medo!
O Bem existe! A consciência humana conhece-o mesmo quando o atraiçoa ou o desdenha. É ela que o tem criado em séculos de luta sublime! Os humildes de coração são talvez os que estão mais perto das fontes vivas de onde ele promana, e é pela humildade e pela aceitação resignada do seu destino incompleto e triste e eternamente obscuro, que a pobre humanidade definitivamente se salvará!
[[De novo, ainda que com crença e optimismo no bem, uma certa linha positivista e materialista a sobressair em Maria Amália, anti-platónica, poderemos dizer, pois não há o mundo das ideias ou o mundo espiritual, anterior e acima do mundo físico, humano e histórico, e onde em seres ou em qualidades divinas o Bem preexiste, e para o qual o ser humano se vai abrindo e manifestando. Não, para Maria Amália o Bem existe apenas porque é criado pelo homem, e o Bem existe, ou salva os seres humanos, se eles tiverem uma "humilde aceitação resignada do seu triste destino eternamente obscuro”.
Que visão lúgubre do Universo nos dá para terminar, Maria Amália Vaz de Carvalho, incapaz mesmo de referir o seu Logos ou Inteligência e Palavra, seja apenas como Anima Mundi, dos antigos gregos e romanos, seja já cristãmente incarnado em Jesus, como reza o prólogo do Evangelho de S. João. Acabamos assim por ver algo surpreendentemente que nem verdadeiramente cristã, é, mesmo nas suas faces postergadoras, tal a de S. Paulo, que remetem a visão da Verdade ou de Deus apenas para quando estivermos libertos do corpo físico e no mundo espiritual, aqui terrenamente restando-nos então a fé, algo que Maria Amália nem sequer refere bem, condenando-nos antes para a “aceitação resignada e humilde da obscuridade do seu destino incompleto e triste”]]
Por mais que amenos e veneremos a memória de Antero, não podemos pois achar justo o seu suicídio.
Contentamo-nos em achá-lo explicável. »
 Assim termina a sua apreciação da vida, obra, ideias e suicídio de Antero de Quental, a Maria Amália Vaz de Carvalho. Como vimos, com erros justificados pela sua discutível cultura filosófica, religiosa e espiritual e no seu empenho voluntarista em lutar contra o ascetismo, a contemplação, o desprendimento, a inacção, o pessimismo, o budismo, que considerava erróneas escolhas do poeta e perigosas para a sociedade.
A afirmação final "Não acha justo o seu suicídio", pode ter alguns sentidos; em quais terá ela pensado e valorizado mais não poderemos adivinhar, mas provavelmente queria dizer que não foi justo que um homem tão bom e tão sensível se tivesse deixado matar pelo excesso de pensamentos contraditórios e filosofias erróneas e pessimistas.
O que lança alguma perturbação neste final da sua explicação do suicídio de Antero de Quental é a oposição enorme que para ela existe entre o máximo de amor que possa haver a Antero de Quental e a aceitação do seu suicídio como justo. O máximo que se lhe poderá fazer é achá-lo explicável, pelas diversas causas ascéticas, pessimistas e budistas que o enlearam, enfraqueceram e levaram à morte. Como já vimos, não creio que tenham sido essas as determinantes
E se o levaram à morte física também o levaram à imortalidade, acrescentaremos nós, embora por vias ascensionais subtis e misteriosas, em grande parte ainda desconhecidas pelo comum da Humanidade, já que o melhor dos seus recursos humanos e naturais é gasto e destruído em armamentos, opressões e guerras, para não falar dos consumismos e poluições, impedindo-se o desenvolvimento psíquico, cultural e espiritual.
                         
Enviemos-lhe esperançada e optimisticamente os nossos maiores ou melhores raios de simpatia grata, amor e de força no seu caminho ascensional rumo à Divindade, que é a Realidade, o Bem, a Fonte Primordial...