quarta-feira, 1 de junho de 2022

Luís de Castro Norton de Matos: "O Espiritualismo Oriental de Rabindranath Tagore". Revista Contemporânea, de José Pacheco.1927.

Luís de Castro e Almeida Norton de Matos foi um diplomata e historiador, nascido na Vila de Dona Maria Pia, em Santo Antão, Cabo Verde, a 24 de Janeiro de 1903, vindo a deixar a Terra, em Lisboa, a 6 de Janeiro de 1968. Era filho do Dr. Arnaldo Mendes Norton de Matos e sobrinho do General José Norton de Matos. Em jovem teve uma boa abertura Rabindranath Tagore e à espiritualidade indiana que deu um fruto, hoje ignorado pela maioria das pessoas.
Em 1926 ele conseguiu publicar um texto O Espiritualismo Oriental de Rabindranath Tagore na Revista Contemporânea, e embora ninguém mencione ele pode ter sido amigo de Fernando Pessoa, um dos principais colaboradores da revista, que certamente leu este texto, editado em 1927 numa separata que leva a seguinte dedicatória: «Ao meu querido amigo José Pacheco. Este trabalho foi escrito para ser publicado, em artigos, na Contemporânea. Por amável resolução do director desta revista, o grande artista José Pacheco, publicou-se esta "plaquette". O Autor»
Quando manuseamos a separata vemos que na 1ª parte seleccionou bons ensinamentos da Gitanjali e na 2ª parte do livro Sadhana, ou Realização da Vida, com uma compreensão boa das subtilezas da espiritualidade indiana, embora tenha de certo modo errado uma ou outra vez na tradução ou na conceptualização.
O começo é bastante órfico: «Rabindranath Tagore é o maior poeta e profeta da Renascença Indiana, tendo, como profeta, o duplo interesse de ser um filósofo espiritualista e místico, o ostiário duma nova e oriental redenção bramânica.
Em quase todos os aspectos da sua obra, como dramaturgo, novelista, músico, poeta e filósofo, é um educador religioso, um dos mais estranhos apóstolos da civilização indiana; quase todos os seus escritos, cujo espírito é o de Vaishnava «que idealiza e espiritualiza todas as relação da vida», são de devoção exortatória e mística.»
A sua apreciação da filosofia védica, bramânica e vedântica tem certas limitações, patentes na sua caracterização da Trimurti: Brahma, Vishnu e Shiva, mas são em geral acertados os comentários às transcrições de extractos de Rabindranath...
Quais são são as melhores transcrições feitas por ele, da 1ª parte, da Gitanjali: talvez a sua tradução do I poema, curiosamente o único sublinhado na 1ª linha por Fernando Pessoa no seu exemplar, hoje na casa Museu Fernando Pessoa: «Fizeste-me infinito - meu Deus, como era teu desejo!
Senhor dai-me força para suportar facilmente as muitas alegrias e tristezas; a força precisa para que o meu Amor seja abundante em serviços proveitosos;
Dai-me força para suportar facilmente as muitas alegrias e tristezas;a força precisa para que o meu Amor seja abundante em serviços proveitosos;
Dai-me força para nunca abandonar o pobre; para nunca me curvar a um poder iníquo;
Dai-me, Senhor - força para erguer o meu espírito acima das futilidades quotidianas; a força para, com amor, submeter a minha força à tua vontade».
Tagore protesta contra o falso conceito de alguns filósofos da Europa que sustentam que o Brahman da Índia é uma mera abstração, a negação de tudo o que existe no mundo; numa palavra, que o ser infinito só se encontra nas metafísicas.
Este princípio os índios nunca o aceitaram porque defenderam sempre a ideia da presença do infinito em todas as coisas que têm sido a sua inspiração. «Tudo no mundo é cercado [coberto, velado] por Deus» Içavasyamidan sarvam yat kincha jagatyan jagat. [Isha Upanishad, v.1]
A doutrina do Upanishad é cânon moral de Tagore:« O ser que, na sua essência, é a luz e a vida de tudo, consciência universal - chama-se Brahman. Sentir tudo, ser consciência de tudo, é o seu espírito: estamos imersos na sua consciência, corpo e alma...». 
E conclui com as aproximações bem poéticas e espirituais ao mistério da morte, de Tagore, ainda que sem grandes certezas:«Não me perguntem o que tenho para levar! Parto para a minha viagem com as mãos vazias e a esperança no coração...»

Já na segunda parte Luís Norton de Matos aproxima-se do livro mais espiritual e yoguico de Rabindranath Tagore, a Sadhana, ainda não traduzida entre nós mas à qual já consagrei um artigo neste blogue, e ora transcreve ora comenta, duas ou três vezes com pouco conhecimento, tal como quando considera que na Sadhana «Tagore subordina-se inteiramente ao espiritualismo búdico, construindo, aliás, um novo sistema filosófico» e que «os oito capítulos da obra são os oito aspectos fundamentais da realização da vida no espiritualismo sistemático de Rabindranath Tagore», dedicando uma súmula de duas a três páginas a cada um dos capítulos, e que traduziu assim: - Posição relativa do Indivíduo em face do Universo. O Eu consciente. O Problema do Mal. O Problema do Eu. Realização no Amor. Realização na Acção. A realização da Beleza. A realização do Infinito. 
                                   

A súmula mais curta e incisiva, não sabemos bem porquê, é a do V capítulo, Realização no Amor, poucas linhas. Ei-las: «Um profeta indiano disse que o mundo nasce do amor, pelo amor é mantido, no sentido do amor se move.

No amor, num dos seu polos, encontrareis o pessoal, no outro, o impessoal. 
Se Deus fosse absolutamente livre - escreve Tagore - não teria havido criação. O ser infinito impôs-se o mistério do finito. 
Em Deus - que é Amor - o finito e o infinito se unificaram!», e realça assim discretamente como o verdadeiro amor é sacrificial.
A súmula do VI capítulo, Realização na Acção, é das mais longas com cinco páginas e alguns parágrafos bem valiosos: «O ser infinito invade tudo, é um bem inato em tudo».
«Procurar Deus apenas na contemplação extática é um erro; é diminuir o poder de Deus, limitando-o.
O êxtase e a contemplação são necessários ao espírito, purificam a alma; Deus está connosco na calma e silêncio dum solene confronto místico; mas Deus é activo, desde que o mundo foi criado, saindo Ele do seu profundo e infinito alheamento.
Não basta, pois, contemplá-lo no isolamento - é preciso acompanhá-lo na sua permanente evolução vital.
"Quaisquer obras que produzas, consagra-as a Brahman"
O espírito deve dedicar-se a Brahman através de todas as actividades.»
O capítulo VIII A Realização do Infinito, contém alguns passos valiosos, embora iniciado com um erro pois traduziu "Man becomes true if in his life he can apprehend God; if not, it is the greatest calamity for him", por " O homem torna-se perfeito se na sua vida possuir Deus; a maior calamidade que lhe pode advir é não possuir Deus", quando na realidade o que se trata é mais de compreender, realizar, sentir e não tanto "possuir".
Mais à frente transcreve - «"Nada se poderia mover, nada poderia viver, se a energia do ser infinito não enchesse o Céu" - são palavras duma escritura sagrada.
Nos nossos prazeres materiais o limite depressa se descobre; o contrário sucede em todos prazeres da ordem intelectual e moral em que a margem é mais larga, o limite mais distante.
Numa líricas dos Vaishnavas] [devotos de Vishnu e seus avatares], um amante diz à sua amada: "Eu sinto como se tivesse contemplado a beleza da tua face desde que nasci e os meus olhos ainda estivessem famintos, como se eu te tivesse apertado ao meu coração por milhões de anos e o meu coração ainda não estivesse satisfeito». Eis uma bela afirmação que alguns cavaleiros ou cavaleiras do Amor sentiram, ou tentaram realizar ou desabrochar, ao longo dos séculos...
«O ser humano não é perfeito; naquilo que é, é pequeno, mas no seu seu ser (in his to be) [talvez melhor, "no seu querer ser" ou "vir a ser"]. O polo finito da nossa existência tem o seu lugar no mundo das nossas necessidades, onde nos ocupamos a alargar as nossas posses.
Noutro sentido, a nossa existência marca a direcção do infinito, a alegria da libertação.
Só neste sentido devemos viver, porque a nossa função não é a de possuir materialmente - é a de devir, é a e ser (to be).
Ser o quê? - pergunta Tagore - «Ser um com Brahman, porque a região do infinito é a região da unidade. Por isso os Upanishads disseram: If man apprehends God he becomes true...»
Pela nossa actividade intelectual não poderemos conhecer Brahman, porque, sendo o nosso conhecimento parcial, por ele não podemos obter o conhecimento de Deus que é a perfeição completa. dDa mesma forma e pela mesma razão, as palavras não podem descrevê-lo.
Deus só pode ser conhecido pela nossa alma, pela alegria [ananda], pelo Amor. Noutros termos: estabelecemos a relação com ele pela união - união do nosso ser todo.»
Depois destes apelos da descoberta íntima e do desenvolvimento do Amor à Divindade, à natureza, aos seres, Norton de Matos vai concluir o seu trabalho com uma citação de Buda e no fim o 1º verso de Gitanjali, com que iniciara este seu texto para a revista Contemporânea e que curiosamente fora o único que Fernando Pessoa sublinhara no exemplar que lera e se encontra hoje na sua Casa Museu:
«Buda pregou a necessidade dos homens se libertarem da escravidão de Avidya. Avidya é a ignorância que obscurece a consciência, que nos priva de relações espirituais com o mundo exterior, que provoca o orgulho e nos materializa. Quando o ser humano atinge a verdade e sente a sua alma, desperta em consciência perfeita, torna-se [em certa medida um] Buda.
Rabindranath Tagore sente em si este poder de divinização.» *

* Vid.Gitanjali, poem I: "
Thou hast made me endless, my God. That is thy pleasure" e que traduziremos nós: "Fizeste-me sem fim, meu Deus. Tal é a tua vontade de felicidade." Ou entusiasmo... 
Sem dúvida um verso muito rico de possíveis realizações e leituras...
 
                                Aum Jaya Guru, Aum Jaya Aum

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