segunda-feira, 20 de junho de 2022

Apresentação do livro "Timor, anos 30", de Maria da Conceição Valdez e Pedro Teixeira da Mota. Imagens e intervenção do co-autor sobre a espiritualidade timorense.

Na Casa Sommer, da Fundação D. Luís I, em Cascais, realizou-se no dia 18 de Junho a apresentação do livro Timor anos 30, de Maria da Conceição Valdez, e realizado em co-autoria comigo. A autora apresentou também a 3ª edição de um outro sua obra Com Timor no Coração - Livro de Genealogia da Família Valdez Ferreira, a qual foi apresentada pelo historiador João Aníbal Henriques, conforme a fotografia.

                          

Edição original foi então Timor anos 30, baseado nas fotografias que o seu avô Artur dos Santos Ferreira captou durante os quatorze anos em que esteve como 2º sargento e chefe de posto em seis circunscrições administrativas timorenses, tendo-as eu contextualizado em algumas páginas, sendo natural que numa 2ª edição da obra sejam ampliadas.

                         

Coube ao major, historiador e sub-director do Arquivo Militar  Joaquim José da Cunha Roberto (na imagem acima)  traçar a biografia do notável militar, que veio a servir ainda na Metrópole e em Goa, e que era um dinâmico e convivial português, muito dotado artisticamente para trabalhos manuais, ginástica, direcção da juventude, para além de competente autoridade administrativa, sendo assim louvado mais de uma vez pelo seu zelo competente e capacidade de dedicação.

                                  

A minha intervenção, na fotografia perante a selecta assistência, acerca de alguns aspectos da espiritualidade timorense, decorreu sem qualquer tipo de plano e foi gravada na sua parte inicial, tendo merecido calorosos aplausos, como todas as intervenções anteriores e posteriores, já que a Dra. Maria Angela Viegas Carrascalão, antiga ministra da Justiça, e neta de um dos heróis do livro, Manuel Carrascalão (tal como o Liuray ou regente de Alas D. Carlos Borromeu), fechou a sessão com breves palavras de agradecimento ao avô Artur dos Santos Ferreira e à neta Maria da Conceição Valdez por terem conseguido ressuscitar memórias tão valiosas, que certamente lhes trarão bons frutos, reafirmando o forte sentido mágico de Timor.

Do que disse na palestra e do que ficou gravado no vídeo final, e do que não foi dito, que poderei eu agora acrescentar, realçar, estruturar? Que aspectos, que palavras, que conceitos realçarei brevemente agora?
Lulik, sem dúvida é a palavra chave da espiritualidade timorense e significa poder, força, alma, sacralidade ou mesmo energia psíquica. Como se discerne tal qualidade, ou como se investe algum objecto dessa força, quem o faz são questões importantes, mas para descermos ao concreto abordemos algumas palavras compostas com Lulik através das quais poderemos compreender melhor esta designação, este reconhecimento qualitativo, esta investidura.
Os macair lulik, são os que tem na mão, empunham ou guardam o lulik, são os sacerdotes, os guardiões, os que manejam as forças sagradas, o poder. Em muitos casos são eles que reconhecem o carácter lulik, ou os que manejam os objectos com lulik para se solucionarem questões, dúvidas. Estão presentes em todos os acontecimentos importantes, pois são  quem oficiam nos ritos denominados lulik nain.
Outra palavra composta importantíssima, e razoavelmente desenvolvida no breve improviso, é Uma lulik, a casa sagrada, a casa de poder, a casa mágica, a casa espiritual, a casa dos objectos sagrados ou de poder, a casa dos espíritos, a casa dos ancestrais, o templo, a habitação iniciática. Todas estas traduções são possíveis dada a riqueza tanto da palavra, como das ideias ou conceitos e sobretudo funções que ela desempenha, materiais e imateriais, físicas, sociais, psíquicas e espirituais.
O que acontece nesta casa sagrada ou diante dela, onde pontificam em geral três postes, eixos da polaridade e da unidade, cuja edificação é bastante solene e que tanto alberga objectos sasaan lulik, de poder e de culto, são sobretudo diálogos, instruções e aconselhamentos que se realizam numa família e entre gerações, e o mais importante ainda é ser o centro que preside às cerimónias, rituais e festividades associadas às colheitas e sementeiras, ao nascimento, vida, casamento e morte.
Edificadas com formas especiais, muito ornamentadas com símbolos auspiciosos femininos e masculinos, e telhados e traves especiais, consideradas hoje património
protegido, foram ao longo dos séculos a alma mater de famílias e povoados, quais templos de aldeias nos quais ou diante dos quais se realizam as principais cerimonias e festividades da vida .
Talvez possamos introduzir brevemente em seguida a visão
cosmológica espiritual da generalidade dos timorenses, ainda que hoje a população seja quase 96% católica (numa religiosidade bem sentida e que foi essencial para a resistência à Indonésia islâmica), e ainda que as designações variem conforme as línguas: no nível mais elevado está a Divindade ou Ser Supremo denominado Naromak, cuja raiz poderá ser "esplendor", ou Akai, Dato Geme, Uru Uatu, Usi Nena. Um segundo nível com os espíritos celestiais ou terrestres, que podem ser apenas espíritos da natureza, e o 3º nível por fim os ancestrais e os mortos. Ora a grande maioria das preces e orações, parecem dirigir-se a estes espíritos ancestrais, que se admitem estar ou em planos subtis do Universo ou habitarem mesmo as Uma lulik que são então casas de espíritos. Faltam-me o contacto in loco, com as casas sagradas e os timorenses para sabermos se, por exemplo, eles vão meditar ou orar, para serem inspirados por tais antepassados ou guardiões da aldeia ou grupo familiar.
Vivendo numa ilha, e logo rodeados pelo imenso oceano, e com
vegetação e fauna grande e próxima, podemos pensar que os timorenses adoptaram comportamentos de adaptação sensata com alguns animais, os quais foram então investidos de qualidades como seres ancestrais ou tabus, e estão no caso o tubarão, o crocodilo, a cobra, o lagartixo e através de  tal parentesco procurarem criar uma relação amistosa e suplantadora dos perigos que tais animais causariam, dando-lhes essa capacidade de terem arquétipos, guardiões ou ancestrais que apaziguariam os animais e que dialogam com o ser humano, remetendo-nos para a longínqua ou para uns mítica época em que os animais falavam, ou melhor dito, em que os homens conseguiam comunicar com os animais, entender a famosa linguagem das aves.

Acrescentemos ainda a concepção muito significativa relatada por Jorge Barros Duarte, no seu valioso livro Timor, Mitos e Ritos Atauros, de se admitir ou crer que as almas humanas ao morrer e deixarem o corpo passam por breves reincarnações animais, antes de passarem a um estado aéreo e subtil estilo nuvens e só depois entrando ora no mundos celestiais ora nas uma lulik para inspirarem as suas famílias e aldeias. Em analogia oriental, embora num nível não tão sublimado, quase como que um destino de Buddhas que se libertam da Terra, e dos Bodhisatvas que permanecem na aura subtil da Terra para inspirarem as pessoas.
Durante a palestra referi outros aspectos valiosos da sensibilidade e da espiritualidade timorense e, embora a não tenha sido toda gravada, alguns poderão ser ouvidos, ficando este pequeno texto como uma apresentação à palestra e ao livro Timor, anos 30, que recomendo, com cerca de uma centena de valiosas fotografias, algumas delas com os macair lulik, os que manejam o sagrado e os liana in, os que sabem falar, os donos ou guardiões das palavras, já que são eles os bardos dos mitos, diálogos, cantos e orações que com tanta riqueza etnográfica enriquecem ou epifanizam as cerimónias dos ciclos naturais de vida, morte e renascimento da natureza e dos seres humanos.
Destacam-se assim fotografias de alguns sasans lulik, objectos de poder, seja os bordões, seja o belak e o kaibauk, os sóis, luas e meias luas em metal, envergados por alguns macair lulik, dos quais infelizmente não temos os nomes mas que eventualmente alguns timorenses chegando-lhes (dificilmente...), o livro às mãos poderão reconhecer.
Alguns aspectos ecológicos ou de re-sacralização da Natureza foram apresentados na palestra, seja por exemplo Tara Banda, um nome com ressonâncias indianas e que designa um ritual anual de preces, sacrifícios e oferendas para a harmonia benfazeja da Natureza em geral, seja a crença de que os mortos ou espíritos ancestrais têm nas montanhas o local de residência mais natural, consentâneo ou apreciado. E foi por isso talvez que os heróicos combatentes pela independência contra a tentativa de aglutinação opressiva indonésia se agruparam e resistiram na montanha mais elevada de Timor, o Foho Ramelau, com 2.963 metros, para conseguirem depois vencer, liderados entre outros por Xanana Gusmão. Uma estátua de Nossa Senhora coroa a eminência, onde outrora e hoje realizam também cerimónias da espiritualidade timorense, seja mais católicas seja mais gentílicas, mas no fundo de adoração e invocação da mesma Divindade Primordial ou das suas tantas Faces e Nomes, masculinos e femininos, orada, ritualizada, invocada e comungada.

Terminemos com o tais, esse pano ou faixa de algodão entretecido, nas suas belas cores naturais, pelas mulheres timorenses em teares de madeira, tendo neles desenhados símbolos antropomórficos e naturalistas auspiciosos, e que desde há muito é talvez o principal símbolo (a para da Uma lulik) da habilidade manual, do amor, da estética, da convivialidade e da sacralidade da cultura timorense, tão presente em tantos momentos de celebração, e que vai na capa do livro Timor anos 30, invocando-o sobre os nossos ombros e sobre Timor, qual manto, xaile e veste de harmonias e psico-morfismos benfazejos.

                      

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