No
ano da graça de 1758 saía à luz benigna de Lisboa, ainda fendida, ensanguentada e turvada pelo terramoto do 1º de Novembro de 1755, um opúsculo poético
de quatro folhas, da Oficina de Pedro Ferreira, impressor real, intitulado Despertador Quotidiano.
Constava de um poema proémio e de um
soneto, este glosado quatorze vezes em oito versos, tendo ainda no fim
um soneto de António Correia Viana, "em aplauso da discretíssima autora,
a reverendissima Madre Soror Thomazia Caetana de Santa Maria", natural
de Lisboa mas religiosa no Real Convento de Santa Cruz de Vila Viçosa.
O
folheto fora custeada pelo seu pai, o médico cirurgião Manuel de Mira
Valadão, e levava tal aviso no frontispício, quem sabe afastando
importunos pensamentos ou censuras contra a jovem sóror que das profundidades do
Alentejo deplorava a decadência e vaidades de Portugal considerando um
castigo da Providência divina e elemental o terramoto que abatera a
capital do reino.
O Despertador Quotidiano, como seu nome indica, visa despertar as pessoas para o Amor divino e para uma vida mais luminosa, ou seja, humilde, pura e contemplativa, e funciona quase como um exorcismo ou uma litania de poesias mantricas estruturadas a partir de um proémio e de um soneto que é glossado quatorze vezes em oito versos, em todas se referindo o lastimoso sucesso ocorrido pela braveza dos elementos, a qual é atribuída a um castigo divino.
A obrazinha é hoje rara, com mais de 250 anos e resolvemos lê-la e comentá-la brevemente.
Depois
de tal gravação consultamos a Biblioteca Lusitana, onde Barbosa de Machado informa que ela nascera a 7 de Março de 1719, sendo sua mãe Josefa
Maria. E que «recebeu o hábito eremítico de Santo Agostinho no Convento
de Santa Cruz de Vila Viçosa a 29 de Setembro de 1731, e professou
solenemente a 15 de Outubro do ano seguinte. Por ser dotada de génio
feliz para a Poesia, publicou...», seguindo-se os títulos de algumas das
obras dela....
Imagem de uma religiosa da sua época, também dum Convento do Alentejo
Entrara
na religião muito cedo, com treze anos, e aos vinte e quatro anos começara a dar em letra de imprensa, e certamente antes em manuscritos, e facilmente imaginamos a soror Tomásia a conseguir harmonizar a sua
vocação poética com a consagração religiosa e o tempo disponível na
sua cela.
Como era ela, na face e na alma, como foi o seu noviciado, que forças instintivas nela
lutaram, que devoções germinaram, já é bem mais difícil tanto deduzirmos
como intuirmos mas, pelo conteúdo das suas obras, constatamos que via bem como o
mundo era mutável e que se atrevia tanto a rebelar-se contra as mortes de
pessoas valiosas, como também a considerar as desgraças naturais como
ordenadas pela Providência divina, algo que na época o Marquês de Pombal
e o seu círculo iluminista ou mais esclarecido não gostavam ou
admitiam. Todavia, conseguiu publicar cerca de vinte e três obras, dedicadas a
pessoas importantes da corte e da província, talvez por o seu pai ser
cirurgião e para receber mais protecções e leitores.
Em 1993, a investigadora Isabel Morujão dedicou-lhe uma valiosa comunicação, Entre o convento e a corte: algumas reflexões em torno da obra poética de Soror Tomásia Caetana de Santa Maria,
baseada na leitura das suas vinte e três publicações (constatando ainda como
sinal de aceitação pública a existência de mais de uma versão manuscrita
de algumas das suas obras), onde analisa alguns aspectos do diálogo
entre a corte e o claustro, nomeadamente através do paratexto (os
elementos constantes na frontispício, dedicatórias, poemas, licenças,
censuras, etc.) da publicação e a sua diferença em relação a outros de
religiosas da época, comprovando ou reforçando o que dissemos: em todas
as obras (menos uma) é o pai médico que apresenta a obra à Mesa Censória
e que a custeia. Observa ainda como as dedicatórias escritas por ela e
dedicadas a pessoas importantes estabelecem essa teia de apoios,
elogios, protecções, algo menos visível nos poetas que ela glosa ou que a
poetizam, por serem de pouco reconhecimento posterior.
Isabel Morujão considera ainda como a melhor obra de Tomásia Caetana este Despertador Quotidiano,
que precisamente possuímos, e que lemos e comentamos no vídeo sem saber da
autora mais do que nas oito páginas da obra está escrito. Das três obras
que li posteriormente talvez a que mais apreciei seja contudo as Saudosas expressoens de hum reverente, e obsequioso affecto na sensivel morte do desembargador Luiz Borges de Carvalho,
de 1753, hoje digitalizada na web, e onde, depois de pedir na
dedicatória a protecção de um Mercúrio, para não ser um Ícaro a cair dos
céus, caracteriza muito bem rítmica e psicologicamente o magistrado
justo.
Ora se ouvirmos o Despertador Quotidiano e
entrarmos nele com uma hermenêutica não só religiosa mas também
espiritual talvez se possam acrescentar alguns dados sobre a autora
(certamente bem diáfana para nós no séc. XXI), quase que "acusada" de
fazer entrar o amor profano no sagrado, ou usar a linguagem do sagrado
em domínio profano, numa "contaminação discursiva".
Quer-nos parecer
porém que Tomásia Caetana tinha uma visão mais unificada desses dois
aspectos, ou seja, no amor ao amado ou amada humano, expresso por
exemplo num poema-dedicatória a um casamento, pode estar a amar-se o
amado divino, ou mesmo o Amor em si. Esta unidade omniabrangente do Amor
é importante de se compreender e realizar, em vez de se considerar falta
de respeito, abuso e intromissão do profano no sagrado pela apropriação
da sua linguagem...
Poderiam alguns mais ortodoxos ou até inquisitoriais levantar as sobrancelhas a tal ousadia de uma "pirralha", que só teria em seu abono ter-se sacrificado pela religião desde a tenra idade dos doze anos e ser poeta sensível: o querer aconselhar o Pai a ser mais doce...
O poema todavia passou, quem sabe se graças à dimensão elevada, misteriosa e amorosa do Pai, de Jesus, tão diferente do ciumento e vingativo Javeh do Antigo Testamento (que por isso mesmo foi tão ridicularizado por Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa), e chegou aos nossos dias, onde ainda tem encontrado almas ressoantes, como a Isabel Morujão e eu, que tentam ouvir sua palavra e voz ou sermo de soror poeta portuguesa do século XVIII, que em 1766 era declarada como a escrivã do seu convento, por seu pai, no frontispício das (por ela) compostas Queixas da Saudade na falta do Sereníssimo Senhor D. Manoel Infante de Portugal, aonde escreve «ponderando-se a circunstancia de nascer, e morrer Sua Alteza no mesmo dia; porq[ue] nasceo a 3 de Agosto de 1697; e faleceo a 3 do mesmo mez do corrente anno de 1766», na sua linha de sacralização do ser humano, caracteriza o príncipe D. Manoel «por excesso de amor constante» e compara-o a um «Celeste Serafim na virtude e na candura»...
Com esta leitura e notícia do Despertador Quotidiano, que em si significa intentarmos quotidianamente despertar da mutabilidade e dispersão para a pureza, fineza e vibração divina, desejamos que todos os geradores de tal publicação, e em especial a soror Tomásia Caetana de Santa Maria, se intercomuniquem e alegrem nesta comunhão do corpo místico da Tradição Espiritual Portuguesa que, transcendendo imanentemente fronteiras e limitações do espaço e tempo, na sua muldimensionalidade tão subtil e desafiante, sobretudo para quem medita, quer contribuir para a Paz, a Justiça, a Verdade, a Liberdade e a Divindade nos seres e no mundo...
Segue-se o vídeo do Despertador Quotidiano, como já dissemos, pela 1ª vez lido e gravado em simultâneo sem nada dela ainda sabermos...
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