domingo, 15 de novembro de 2020

Dalila Pereira da Costa, uma grande alma portuguesa. Comunicação de Pedro Teixeira da Mota para as Actas do colóquio do centenário do nascimento de Dalila Pereira da Costa, 2018

Acabam de ser dadas à luz as actas do colóquio realizado no Porto, entre 4 e 6 de Março de 2018, de homenagem a - Dalila Pereira da Costa no centenário do nascimento 1918-2018, na Biblioteca Humanística e Teológica, da Universidade Católica Editora, Porto. São trinta e seis comunicações, várias valiosas. Transcreverei o meu contributo, agora com uma  dúzia de correcções ou pequenas ampliações. No fim está o vídeo que regista o meu contributo de discurso pessoal no momento e sem apoio de texto, apenas lendo uns fragmentos de cartas enviadas por Dalila.
                                                       
«Escrever para um In-Memoriam, e neste caso o da querida amiga Dalila Pereira
da Costa (1918-2012), após ter participado no Porto no Congresso em sua homenagem com um testemunho improvisado mas que ficou gravado [ver no fim], é sempre uma responsabilidade pois tenta-se perenizar um ser, e sua vida e obra, através de contributos ou testemunhos que sirvam tal desiderato para os vindouros.
Aproximemo-nos dela primeiro como pessoa e amiga: Dalila tinha em si muita
afabilidade e discrição, silêncio e hospitalidade, carinho e amor, que manifestava de vários modos: na sua vida recolhida de escritora e mística, no cuidado com a sua casa, jardim e estufa de plantas no Porto e com a administração da sua quinta no Douro, na aparência sempre discreta mas impecável, nos sucessivos cãezinhos que a acompanharam e que amava, no modo acolhedor com que nos recebia (e muitas pessoas passaram pelo seu verbo e lar), sempre pronta a preparar uma lanche ou uma refeição, na qual se alimentava parcamente, no culto da amizade mantido com muita fidelidade e manifestado na correspondência numerosa que mantinha, sabendo-se hoje que foi quase toda preservada, fazendo cópias mesmo das cartas mais importantes enviadas, amizade que gerava fotografias emolduradas na sua sala biblioteca, no andar térreo, ampla mas atulhada de mesinhas, objectos, livros, gravuras, e a qual a impelia a interrogar-nos acerca dos amigos comuns de Lisboa, no caso principalmente Agostinho da Silva, mas também o P. Mário Martins, António Quadros, Afonso Botelho, Lima de Freitas e, do Porto, Sant'Anna Dionísio, e de Évora, a Aldegice Machado de Rosa.
Se referimos estes nomes é porque na realidade Dalila, ainda que bastante distanciada e não aceite ou valorizada no meio académico ou universitário (embora se tivesse
licenciado em Ciências Históricas Filosóficas, em Coimbra, em 1944, mas nunca exercendo tal profissionalmente),  ou até apenas literário, estava bem inserida na tradição cultural e espiritual portuguesa, não só pela sua formação, leituras e amizades dialogantes, mas porque se sentia no fundo discípula de Teixeira de Pascoaes, de Leonardo Coimbra, do movimento da Renascença Portuguesa, e ainda de Joaquim de Carvalho, Virgílio Correia, Damião Peres, Torquato Sousa Soares e Amorim Girão, seus professores de Coimbra, com eles partilhando um grande amor da pátria, da literatura e da religiosidade portuguesa pagã e cristã e das suas realizações, tradições e locais sagrados.                                 

 Era no 1º andar da sua casa na Av. 5 de Outubro, nº 444, Porto, numa pequena salinha, no canto entre duas altas janelas com belas cortinas, que Dalila de Pereira da Costa cumpria com amor a sua missão principal na vida: a de ir escrevendo, lendo, investigando, meditando, orando e intuindo os principais aspectos da religiosidade e espiritualidade portuguesa, o que fez em cerca de trinta livros, escritos ao longo de 40 anos, na sua peculiar linguagem e nos quais faz uma hermenêutica espiritual das suas experiências energético-espirituais e, como ela disse em relação a Portugal, «uma exegese simbólica da sua cultura», não só através das obras dos nossos principais escritores, de Gil Vicente a Fernando Pessoa, como sobretudo de muitas raízes pré-históricas, tradições populares, superstições, mitos, locais sagrados, festividades, momentos históricos, e num modo muito orgânico, estudado, sentido, intuído e nada enciclopédico e de pseudo-esoterismo, dos quais se distanciava.                                                                          

Quando contemplamos as obras dos séculos XX e XXI sobre a espiritualidade e de algum modo de esoterismo português, sem dúvida que inesperadamente Dalila se avantaja em relação a todos, mesmo a Agostinho da Silva e Lima de Freitas e, apesar de alguma  crítica de resultados do 25 de Abril, de um excessivo amor da Pátria ou de uma referenciação maior do Cristianismo, seu é um valioso espiritualismo universalista assente na tradições vivenciadas no território português mas dialogante com as outras, nada tendo a ver com esoterismos e ocultismos incomprováveis  ou interpretações facciosas, tais como vemos tanto na contemporaneidade. Ressalve-se contudo nas últimas décadas a existência de cada vez mais interesse pelo simbolismo e esoterismo  nos meios universitários e, consequentemente, surgirem bons trabalhos, ainda que em geral apenas intelectuais, publicados em actas de colóquios e congressos ou em revistas, a própria Dalila tendo recebido um ou dois no fim da sua vida.                                      

Na verdade, Dalila Pereira da Costa fez uma revisitação pioneira muito completa da história cultural, religiosa e espiritual de Portugal, e aprofunda com grande sensibilidade e boa erudição os aspectos mais valiosos, dando nos seus diversos livros sucessivas aproximações, sem que, com esses trabalhos de alguma erudição (dos quais se queixava um pouco pelo trabalho que davam), não deixasse de ir realizando as suas vivências e investigações oníricas, poéticas, visionárias e espirituais, que resultaram depois também em livros, uns certamente mais pessoais, do seu inconsciente, e outros mais universais, válidos e operativos, frequentemente combinando até as duas vias nas mesmas obras.                          

Grande parte da sua poética é fruto de incursões no inconsciente ou então de subtis erupções ou visitações supra-discursivas, das quais ela admitia ser o seu anjo ou o ser Divino. Já as obras em prosa são claras tentativas de aprofundar o conhecimento subtil e espiritual, ou de compreender melhor o corpo espiritual e o Ser e Força Divina, dos quais Dalila desde muito cedo (num jardim em Coimbra, 1938, e doente em 1946, no Porto e em 1960, na Bélgica) tivera três experiências muito fortes, aproximadas, descritas e interpretadas nas suas obras A Força do Mundo, 1973, e Os Instantes, 1999.                                                      

Dalila Pereira da Costa, Sant'Anna Dionísio e Pedro Teixeira da Mota, em Rio Mau.

Na nossa convivência, durante alguns anos mais frequente por eu estar a dar aulas de Yoga e meditação no Porto, o seu amor ao conhecimento vivo  levou-nos, e até com Sant'Anna Dionísio,  a peregrinarmos  a locais sagrados, tais como Cárquere, Panóias, Rezende, Igreja de S. Cristóvão de Rio Mau, e de tais incursões e meditações escreveu ela em jornais e livros. Também a sua abertura ao conhecimento que os outros lhe podiam partilhar me fez dar, emprestar ou comprar para ela alguns livros, havendo ainda uma correspondência razoável e telefonemas, pois estava sempre interessada no que eu ia realizando espiritualmente e fazendo, animando-me na missão que segundo ela me competiria.
Nos meus diários ficaram registados algumas pétalas ou sementes dos nossos encontros e diálogos, tal como nas cartas enviadas estão ensinamentos valiosos pela sabedoria pessoal e inédita que partilham e que provavelmente um dia divulgaremos. A sua gentil e grave, silenciosa e sibilina alma transparece nos livros recheados de pérolas e escritos na sua linguagem feminina profunda,
subterrânea, mística e misteriosa, banhada ou alimentada pelo seu jardim, estufa ou viveiro de subtis gerações da natureza, e a urbe portuense e pelos vinhedos e quinta do Douro ou, mais ainda, inspirada pelos seus remotos ascendentes e genes celtas e irlandeses, revelando-se como porta voz de estados ou níveis superiores que a habitavam, ou que frequentemente se deixavam tocar, ou a tocavam, seja quando escrevia, seja quando de noite ouvia, sonhava ou visionava e que numa cognição matutina ou auroral anotava. Dalila Pereira da Costa era certamente uma descendente (ou continuadora) das Sibilas e Sacerdotisas antigas, e gostava de me apontar ou relembrar na sua quinta duriense do Salgueiro a existência de um pequeno bosque de aveleiras, um temenos ou hortus conclusus, a elas e ao Divino consagrado, e por lá meditava e escrevia eu nas horas mais quentes ou nos regressos das subidas ao poderoso Marão, que nas costas da sua quinta se erguia e me desafiava a descrever as subidas, a meditar e a poetizar nos seus cimos e a recolher cristais de quartzo, tanto mais que por vários anos seguidos passei uma, duas ou mais semanas à volta do meu aniversário no Verão, retirado nas suas casotas ou casa, em práticas de recolhimento, ascese, peregrinação, oração, escrita e meditação.                                                                                                                        Entrando agora numa apreciação muito sintética da sua obra, do seu hortus conclusus ou jardim fechado, diremos que as suas primeiras obras são muito pessoais, íntimas, místicas e, embora a primeira seja O Esoterismo de Fernando Pessoa, 1977, na Lello (que será a sua livraria editora, pois era até de seu primo Edgar), de facto é mais o seu Fernando Pessoa, pois então ainda muito do esoterismo dele não tinha sido publicado, à parte a Mensagem e alguns poemas, tratando-se de um trabalho exegético resultante de conjunção da projecção da sua própria religiosidade e espiritualidade com a que ela sentia e pressentia em Fernando Pessoa. Bastantes anos mais tarde voltará a Fernando Pessoa, e bem mais conhecedora do seu esoterismo publicado (e para o qual eu contribuíra com quatro livros de inéditos), em edições conjuntas com António Quadros e José Augusto Seabra, esta de 1993.
                                                                    

A sua 1ª obra, A Força do Mundo, de 1972, com três capítulos, no 1º capitulo, "Três meditações sobre o êxtase", relata, interroga ou especula as suas precoces experiências espirituais, através de reflexões escritas entre 1952 e 1971, e que tinham sido já publicadas em francês na revista Esprit, em Novembro de 1970.
De tais experiências dará, como já aludimos, uma última interpretação, em 1999, Os Instantes nas Estações da Vida, a instâncias do Padre Ângelo Alves, onde apresenta talvez mais catolicamente as suas experiências, terminando com a valorização, talvez algo excessiva, da mística "como ciência experimental de Deus" «indispensável neste período de treva actual, onde as mistificações imperam no campo gnoseológico do transcendente, em tantos pseudo-conhecimentos, de ocultismo, variadas teosofias, variadas seitas, como movimentos sempre acompanhando a degradação dum período civilizacional», denunciando ainda o contraste entre o silêncio ou música calada que são a essência divina, e o barulho, «como reino do Demónio. Polo oposto em que, na sua demonização, caiu o mundo actual».
Na ordem cronológica do seu percurso o livro seguinte é o Encontro na Noite, de 1973, dividido em três partes, o Anjo, a Cidade Perdida e a Potência e o Verbo, com textos de 1962 a 1972, poéticos, sibilinos, basicamente descrições de sonhos e visões, imaginações e intuições, os da 1ª parte mais ligadas com os Anjos, na 2ª parte acerca da realidade subtil invisível das cidades, fruto de um dos seus dotes de certa clarividência e manifestado noutros livros, e na 3ª de reflexões e intuições sobre o processo de escrita e da palavra, em especial poética, com grande beleza e originalidade.
                                                             
Se na obra seguinte, Duas epopeias das Américas. Moby Dick e Grande
Sertão: Veredas (Ou o problema do Mal) 1974, analisa estes livros de Herman Melville e de João Guimarães Rosa, tecendo considerações e analogias metafísicas e afirmando a sua esperança no Homem cordial do Brasil (onde vivera alguns anos),  já com a Nova Atlântida (1977) e A Nau e o Graal (1978) entra no seu ciclo e estilo que se tornará habitual, o da revisitação do sagrado na literatura, pré-história e história, arte, religião e espiritualidade portuguesa, combinando o estudo racional e erudito e a sua sensibilidade e intuição, entrando em constante diálogo com outras tradições, sobretudo celtas e orientais, estas em especial da Índia e do Budismo (que em geral criticava pela sua negação do espírito individual imortal), já que por exemplo, desde 1976, na Introdução à Saudade, considerava a saudade como conhecimento-vivência de forma directa, um meio de libertação tal «como o taoísmo, budismo zen, vedanta ou yoga», ousando mesmo opor a saudade doce ao budismo amargo e escrever: «O Eu, que o budismo estabelecera como inapreensível como experiência directa, será apreendido como realidade central, própria  e concreta. E, ao contrário do budismo, afirmada em toda a positividade, como entidade permanente substracto de nossas experiências sucessivas (...)  A um meio de libertação como negação da vida, acto de extinção duma chama soprando (esse será o significado da palavra Nirvana, segundo as raízes sânscritas) como filosofia de aniquilamento proposta para seres além de todo o humano, se contraporá aqui junto do Atlântico, na saudade, um outro, realizado e proposto na realidade do humano totalmente aceite, mas ultrapassado na exigência cristã: por sua assunção; e que ainda nela, por ela, levará consigo a Natureza todo».

Em 1981 publicará de novo na sua linha mística de amor  muito íntimo, subtil e original, Os Jardins da Alvorada, onde narra as suas vivências de amor ao Divino e especula sobre tais visitações, sensações ou intuições dos Anjos e das faces ou qualidades do Divino, e prosseguirá em tal via em 1982 e 1983, nas Edições Nova Renascença, com Elegias da Terra-Mãe, poesias de diálogos com anjos e entidades de várias tradições, e A Cidade e o Rio, nesta se mesclando reminiscências do que ela pensava serem vidas passadas ou então do inconsciente colectivo, com a sua capacidade de intuir visionariamente a memória dos lugares. 

 E em 1993 gerará dentro dessa linha de poesia visionária e supra-história e supra-racional, publicando na Fundação Lusíada,  a Hora de Prima, e em 2001, o Portugal Renascido, duas obras nas quais parece destilar as suas leituras histórico-míticas, reminiscências ancestrais e vivências místicas em poemas ou textos ora de sonhos, ora de escrita automática surrealista, ora de aparência (ou até essência) oracular, sibilina e de difícil exegese futura.                                                                     Em obras sucessivas continuará a sua exegética da simbólica e espiritualidade portuguesa, arrancando-a das entranhas  de sua história, literatura e mitologia e expondo-a a uma luz favorável. É o caso das importantes obras Da Serpente à Imaculada (1984), Místicos Portugueses do século XVI (1986), A Ladainha de Setúbal (prefaciada por Agostinho da Silva, de 1990, e onde se destacam a serpente e a montanha, a Rainha S. Isabel e D, Diniz, a Ordem de Cristo e Tomar ), as Raízes Arcaicas da Epopeia portuguesa e camoniana (1991) onde trabalha as tradições celtas, gnósticas e avicénicas, nomeadamente quanto ao Anjo e ao Espírito,  a Corografia Sagrada (1993), iniciada por um capítulo intitulado «Portugal, terra da "Nostalgia do Paraíso"», onde rastreia, desde o shaman representado na gruta do Escoural até aos pensadoras da Renascença Portuguesa, a tendência de se vencer a queda e a cisão e se recuperar o estado paradisíaco de união a Deus, com capítulos consagrados ainda a Antero de Quental, Gil Vicente e Hieronymus Bosch, Fernão Mendes Pinto, Raul Brandão, Camilo Pessanha.
                                                      
Na obra deste último, ainda que comparando a sua linguagem a referências budistas de Luz e de Nirvana e questionando o seu estado anímico final, valoriza talvez demais os significados e hipotéticas realizações da " Luz Incriada" no poema Branco e Vermelho, ao entroncá-lo na mística da Luz vinda dos Padres do Deserto e sobretudo no Pseudo-Macário e Evagro do Ponto e ao considerar algo exageradamente «a veracidade do poema Branco e Vermelho como transmissão directa duma experiência pessoal e vivida da Luz arquetipal» (p. 49), «com valor tanto nacional como internacional dentro da fenomenologia mística» (p. 47). De qualquer modo é um dos capítulos da sua obra, escrito em 1989, onde mais especula sobre as realizações da espiritualidade oriental, tanto budista como indiana, relacionando-a com o poema e a possível vivência de Camilo Pessanha e ainda com a da tradição cristã, tal como sempre foi seu hábito.

                                                              
Seguem-se o Entre Desengano e Esperança. Ensaios portugueses (1996), onde fala de novo do Anjo de Portugal, da Renascença Portuguesa, do Culto do Espírito Santo e de Antero de Quental, este no capítulo O Eschaton da Santidade nos Vencidos da Vida e, finalmente, em 1999, Dos Mundos contíguos, onde revisita algumas das linhas de força que mais trabalhou, em especial a celta e, na plenitude de um conhecimento já bastante maduro, valorizando a união da ciência e da espiritualidade como novas Descobertas que nos desafiam, e a demanda do que é o corpo espiritual ou de glória, estando todavia algo dependente, como é recorrente na sua obra, da Bíblia e do Cristianismo, ainda que nesse valioso livro refira até bastante os Celtas, Irlandeses, Pérsia e a Índia, escrevendo ainda acerca dos processos criativos e energéticos no corpo e ser humano e, finalmente, sobre a "memória do lugar", em especial do seu amado Porto, por ela muito bem realizada ou intuída em visões.
Em dois livros finais, em formato grande, deixou Dalila Pereira da Costa as suas últimas compreensões sobre o sagrado em Portugal: A Contemplação dos Painéis, de 2004, onde tenta descer ao fundo ignoto de Portugal, implícito na pintura de Nuno Gonçalves, e clarificar os Descobrimentos como demanda, iniciação, e missão universalista de Portugal, bem como os mistérios do Anjo, do Eu espiritual e do Espírito Santo (citando bastante Henry Corbin), inclinando-se para, na esteira de José Saraiva e de Afonso Botelho, considerar que o enigmático santo central é o Infante D. Fernando: «Então, dois arcanos matriciais da religião história de Portugal, se unirão coerentemente na figura deste Infante: o Sacrifício e o Paráclito» (p.43).
E dá à luz já nos seus 88 anos de graça, em 2006, As margens sacralizadas do Douro através de vários cultos, desde o Paleolítico e realçando deusas, shamans, eremitas, sibilas, o Porto e a Galiza, e do qual, como de costume, me deu um exemplar autografado: "Ao amigo Pedro, esta lembrança do Douro, tão seu conhecido e percorrido - com o abraço de sua amiga dedicada, Dalila. Porto 13-XII-2006."
                                                                  
Neste seu livro último Dalila, logo no início, de novo interroga, ou mesmo afirma, um dom: «Acaso, só pela força recriadora da anamnese, poderemos ainda vislumbrar milénios passados, muitos desses rituais, sua música, danças e celebrantes, persistindo nos tempos actuais? E pela "memória do lugar", a que guarda, indelével, tal chapa fotográfica, fielmente tudo o que um dia em passado longínquo aí aconteceu. Para algum humano, tal dom de sobrevivência será um dia 
concedido eleitamente, em hora e data ignota?»
E na última página, segue tal repto sibílico, valorizando a galaico-portuguesa «alma matricial, desde seu princípio trazendo no seu seio, indiscernivelmente e sibilinamente, a profecia, como poder de ultrapassar o devir e ver o tempo na sua origem e essência vera, como eternidade./ Então perguntemo-nos: que outra sabedoria duma quinta sibila, desconhecida das quatro romanas se escondeu neste Noroeste ibérico?/ Houve remota memória duma "fatidica puella" entre os Arevacos (cf. Plutarco) e entre os Galaico-Lusitanos? E que mistérios ainda não ditos nem revelados guardou em si esta sibila?»

Depois desta revisitação breve dos seus principais livros, destacaremos sucintamente o que me parecem ser os principais núcleos de força valorativa na sua obra e ensinamentos:
- A religação ao Divino, recorrente em todas as suas obras, ora como experiência
directa e gnose, ora como aspiração, oração, intenção, objectivo, transmitindo inúmeras facetas ou descrições dela, com conselhos valiosos como: "velar para que essa ligação com ele não seja interrompida", "subida dentro de nós do sol-nascente, ou Salvador" (Ladainha de Setúbal. p.25), «abandono do seu eu inferior e atingimento do seu eu superior unido ao divino, aquele que residia secreto mas vigilante no seu fundo mais fundo» (As margens sacralizadas do Douro através de vários cultos, p. 94)

- A intermediarização nesta ligação ao Divino, cumprida por Jesus e Nossa Senhora mas também por outros mestres e grandes seres, embora predomine a influência do Cristianismo em que nascera e a que se afeiçoara.

- A Deusa Mãe, cultuada na Pré-História e Antiguidade, com as suas avatarizações sucessivas em deusas, ninfas e finalmente em Maria, «mediadora, a que ergue da terra ao céu com ela, a Natureza e o homem, como a Mãe completando a obra do Filho» (Ladainha de Setúbal. p 144), Dalila crendo, no dogma da Assunção de Maria aos céus no corpo físico, tal como no da ressurreição e ascensão de Jesus.

- Estudo e especulação sobre as diversas deusas e deuses cultuados ao longo dos séculos na Península Ibérica, destacando-se Crono, Apolo, Atégina, Endovélico, Esculápio, Lug, Bormânicos, Bande, Trebaruna, Nabia e as Mães Galaicas (Matres Gallaece).

- Valorização de um sacerdócio feminino primitivo e de práticas oraculares, proféticas e iniciáticas, ao longo dos séculos no mundo e em Portugal, manifestadas por sacerdotisas e sibilas, matriarcas, diaconisas e sorores, videntes e poetisas.

- Valorização da iniciação, desde os mistérios greco-romanos, enquanto «ritos de purificação e iniciação mística secreta», nomeando desde a Grécia do orfismo e o pitagorismo até a Portugal, pois neste «até à Idade Média e Renascimento se perseverou, cresceu e actuou, um conhecimento tradicional esotérico, detido e usado sobretudo por duas ordens, os Cistercienses e os Templários. Iniciação que constava de uma intensificação da religação entre o humano e o divino, união da imanência e da transcendência, conhecimento este que se fará, não pelos olhos sensíveis, mas pelos supra-sensíveis, como terceiro olho, o da sabedoria, o da visão arcaica», de antigos e perdidos poderes humanos, supra-humanos» Ladainha de Setúbal. p. 16, esta afirmação bem importante...

 - Valorização das seguintes vias de acesso ao conhecimento do Eu e da ligação ao Divino, assim expressa já em 1986: « Uma realização do eu transcendente, ou procura do anjo, através dos séculos, como integração suprema. Usando a santidade, via heróica, a mística, a poesia, a profecia, a alquimia, o sebastianismo, a saudade...» (Místicos Portugueses do século XVI), a que acrescentaremos a via onírica, bastante vivenciada e trabalhada por ela, tendo até escrito um livro Os Sonhos (Porta do Conhecimento, em 1991, e do qual me enviou uma cópia policopiada em Outubro de 1988 para eu eventualmente editar nas Edições Manuel Lencastre) e a música, não só humana, da qual recomenda as peças mais sublimes de Mozart (Sinfonia 9 e Concerto nº 21), Beethoven (Quarteto nº 132), Bach (Concertos Brandeburgueses), Schubert (Nocturno em mi bemol, e nas obras póstumas, tal como o Adágio em mi maior), e ainda Gluck e Vivaldi, mas também a subtil e tão difícil de ser ouvida música celestial ou música das esferas (como lhe chamou Pitágoras e que de certo modo corresponde ao Sat Naam indiano), que ela própria vivenciou em 1999 numa viagem de carro, por mais de meia hora, tal como narra nos Instantes.  

- Preferências pelas vias ou concepções filosóficas platónicas, neo-platónicas, gnósticas, agostiniana, desvalorizando as vias aristótelicas, escolásticas, kantianas, positivistas, materialistas e no fundo privilegiando o órgão gnoseológico da intuição-sentimento, referindo também nesse sentido mais de uma vez o olho e o coração espiritual.

- «A teoria da metempsicose, as reencarnações sucessivas sofridas», um tema ou uma linha de força tanto estudada e referida erudita e comparativamente, como também intuída pela Dalila vivencialmente em sonhos e visões, sem que contudo caísse na provável ilusão de afirmar ter sido alguém muito importante, frequentemente parecendo mais tais sensações, mencionadas sobretudo em poemas, como que mergulhos ou arpoagens no que se denominará inconsciente colectivo ou na «Memória do lugar», algo que ela tinha, talvez por atavismo familiar dos seus ascendentes durienses e celto-irlandeses, e que cultivou, especulou e partilha...

- Aceitação do esquema das tripartição funcional das sociedades indo-europeias, a religiosa ou sacerdotal, a guerreira e política, e a trabalhadora ou da fecundidade, rasteando tal na Índia, em Roma, nos celtas e em Portugal, nomeadamente manifestada nos Painéis de Nuno Gonçalves. 

- Valorização, ou mesmo sobrevalorização, da realidade e missão de Portugal, baseando-se muito em lendas, histórias e mitos, amplificando-os (por vezes exageradamente) ou universalizando-os, considerando Portugal como país eleito, aceitando a intervenção divina, ou teofania, em Ourique a D. Afonso Henriques, mitificando e talvez exagerando os Descobrimentos como busca do centro e do progresso espiritual, considerando ainda que seria com o Marquês de Pombal que começara a materialização e desintegração, quando de facto desde cedo tal aconteceu, nestes aspectos demarcando-se do diagnóstico de Antero de Quental nas suas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos três últimos séculos, embora em outros passos da sua obra Dalila reconhecesse tal desiludida até, chegando mesmo a interpretar o marinheiro sob a janela de Tomar «como mestre e alquimista falhado». (Contemplação dos Painéis, p. 88.)

- Valorização das ordens religiosas e monástico-militares portuguesas, em especial Cistercienses, Templários e Cavaleiros de Cristo, os quais teriam «o ideal hermético da alquimia e do cristianismo cosmológico», e que lideraram uma iniciação só realizada em certos seres e momentos históricos, dos quais dá o exemplo paradigmatizado nos Lusíadas, por Camões, de Vasco da Gama unindo-se com a Ninfa ou Deusa na ilha dos Amores, "hierogamia do sol e da lua", ou "completude dos contrários", a que os seus companheiros também teriam acedido com as respectivas ninfas. 

- Valorização na espiritualidade portuguesa das raízes celta,  judaica e islâmica, ou ainda da harmonia entre as três religiões do Livro, mas sem dúvida privilegiando muito, embora também haja boas referências ao sufismo e à mística da luz iraniana, as ligações celtas e irlandesas, transmitidas em Portugal pelos monges de Alcobaça nas traduções cristianizadas dos seus livros de viagens fantásticas (Viagem de S. Brandão, Conto do Amaro, Visão de Túndalo) e também pelos trovadores e pelo que ficou visível na arqueologia, etnografia, símbolos, mitos, contos e genes, e que ela tão bem procurou e interpretou...

- Bastante demanda, escuta, valorização dos Anjos e do Anjo ou Arcanjo de Portugal, ainda que este surgindo com atribuições diversas quanto à sua entidade, ora sendo Gabriel ora Miguel, ora admitindo mais a verdade de ser um Arcanjo independente. Serão muitas centenas as referências aos Anjos na sua obra e é certamente uma realidade subtil espiritual a ser aprofundada por quem a merecer e conseguir.

- Aceitação, talvez exagerada (sobretudo face à concepção usual algo passadista), do Sebastianismo, inserindo-o na Saudade, «que é e tem sido a nostalgia da reintegração, para a possessão e uso vivido, dinâmico, do eu absoluto. Ou a nostalgia do Anjo. E o Anjo é D. Sebastião, o Eu do Homem Português», escrevia ela em 1989, numa linha sebastianista e pessoana que cultivou e manterá ao longo dos anos, nomeadamente na visão da dinâmica demanda-descobrimentos e encoberto-desejado, conferindo a este mito tanto a significação de centro como de paraíso e reintegração ou, como já vimos, Eu espiritual e reintegração com o Ser Divino.

- Valorização constante do Amor, do amor-paixão, e logo também da compaixão e sacrifício como meios de purificação, transubstanciação, sacralização e acesso ao conhecimento, à unidade, ao Christos de Glória, ao supra-humano e ao divino, rasteando a sua absolutização nos trovadores, templários, cavaleiros de Cristo, Fiéis do Amor e Cavaleiros do Amor e poetas.

- Valorização então da palavra, da escrita, da poesia, em especial de poetas pois «até muita tarde, aos começos da Idade Moderna, a obra dos poetas portugueses esteve intimamente ligada ao inconsciente colectivo da raça, foi a sua mais funda e vera expressão. E ainda, através desta, ligada à tradição celta do Atlântico Norte... a poesia então seria ciência de iniciados» (A Nau e o Graal, p. 41) destacando neles os trovadores (tais como Aires Nunes de Santiago, João Zorro e João Soares Coelho), D. Dinis, Bernardim Ribeiro, Camões, D. Manuel de Portugal, Frei Agostinho da Cruz, Almeida Garret, Teixeira Pascoaes e Fernando Pessoa.

- Valorização dos escritores e poetas místicos, de todos tempos e povos, em especial cristãos e islâmicos, e entre nós sobretudo dos séculos XVI, XVII, nomeadamente Frei Hilarião Brandão, Mestre André Dias, Tomé de Jesus, Amador Arrais, Diogo Monteiro, Sebastião Toscano e D. Manuel de Portugal e suas contrapartes femininas, as sorores dos séc. XVI e XVII, algumas delas por ela bem estudadas e, claro, S. Teresa de Jesus e S. João da Cruz.

- Valorização e estudo de personagens e autores como Santiago, S. Gonçalo de Amarante, Dinis e Isabel, Pedro e Inês, Nuno Álvares Pereira, Infante Santo, sibilas, sereias, fadas e mouras, Gil Vicente (sobre quem escreve um livro de exegese da sua obra tão preservadora de mitos e ritos antigos), Camões, D. Francisco Manuel de Melo, Frei Agostinho da Cruz, Antero de Quental e Oliveira Martins, Sampaio Bruno, Leite de Vasconcelos, Teixeira Pascoaes, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, José Marinho e sobretudo Fernando Pessoa, embora com reservas quanto a certos aspectos desenvolvidos por ele.

- Valorização e estudo comparativo e espiritual de arquétipos, símbolos ou objectos cultuais, como a espiral, as linhas serpentiformes, a serpente, os ídolos placas (vistos como corpo da Deusa, Ladainha de Setúbal. p. 57), a cruz, o escudo, a espada, o cálice ou graal, a esfera armilar, a nau, a ilha, a árvore, os painéis de Nuno Gonçalves, as casas de capítulo da Batalha e de Tomar....

- Valorização e estudo de locais sacralizados como Alcobaça, Arrábida, Foz Coa (com as suas inscrições desde o Paleolítico Superior até 1953), Lisboa, Panóias, Picote (junto a Miranda do Douro), Porto, Sagres, Setúbal, Sintra, Tomar, Vila do Conde, etc.

- Valorização de seres e autores como Platão, Plutarco, Ibn Arabi, Avicena, Shorawardi, Dante, Pico della Mirandola, Giordano Bruno, Jacob Böhme, Novalis, Nerval, Holderlin, Rimbaud, Rudolf Otto, Rilke, George Russel, Fulcanelli, Albert Béguin, Étienne Gilson, Carl Gustav Jung, Kerényi, Mircea Eliade, Georges Dumézil, Jean Markale, Julius Evola e Henry Corbin.

Saudemos a Dalila, certamente uma vigilante na Terra Lúcida dos persas ou Mundo espiritual que envolve Portugal, e de que nos fala no seu talvez mais iniciático, perene e desafiante livro Dos Mundos Contíguos. Que ela avance na Luz e Amor Divinos. Que nos possa continuar a inspirar. Que saibamos com ela comunicar ou comungar no amor eterno e no espírito!

                                                             

                  

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