Como o texto intitulado Um Tédio-Doloroso não se encontra na web e o In Memoriam nunca foi reeditado, e não é muito vulgar, resolvemos transcrevê-lo e partilhá-lo hoje que se celebram 180 anos do nascimento de Antero de Quental e assim homenagear os dois.
«Uns três (?) dias antes de eu e Oliveira Martins o acompanharmos a bordo e lhe darmos o último abraço, Antero de Quental estivera em minha casa desde cerca das 2 horas até depois das 4 da tarde.
Vinha dizer-me «adeus mais demorado do que das outras vezes».
Reclinado, quase em posição horizontal, na camilha da minha biblioteca, olhou em roda atentamente para os livros das estantes e da minha mesa de trabalho e perguntou-me que opinião tinha eu dos livros de Rhys Davids. [1843 – 1922, orientalista e fundador da Pali Text Society]
Antero lia muito acerca do Budismo; e para distração de meditações e de cogitar em problemas religiosos e filosóficos, lia o Panchatantra, os Cinco livros de contos, apólogos e fábulas mais ou menos derivados de contos búdicos.
Servia-se da tradução alemã de Benfey.
O nosso diálogo seguiu este rumo e passamos aquelas duas horas em suave palestra e calma discussão a propósito de teorias cuja investigação me interessou sempre como estudo dum facto social, a evolução psíquica, e a ele cativou como problemas de solução redentora.
Numa estrofe do Hitopadexa tinhamos nós encontrado em resumo a crítica e a explicação da obra de Antero Os Sonetos. E na capa deste livro escrevi então eu em devanagarico o passo do livro indiano [Hit. 1. 154 (ou 143, ou 111)]:
tenadhita sruta tena/ tena sarvam anusthitam/ jonasah prsthatah krtva/naerasjam avalambitam
Traduzi-lhe estes versos literalmente, e ele escreveu-os e guardou-os
com redação sua em prosa para depois dá-los em verso.
A tradução é a seguinte:
«Tudo estudou, aprendeu tudo e tudo executou, quem voltou as costas à esperança e se ampara descansado em nada esperar.»
Antero ficou mais sombrio depois de lermos este aforismo sanscrítico, e por vezes interrompia-me dizendo:
- «É exacto!... Não tinha consciência deste facto!»
Digo interrompia-me porque ele pouco falava, queria-me ouvir acerca de panteísmo hindu, acerca de pessimismo, de nirvana.
A filosofia nunca foi estudo que me preocupasse nem como meio nem como fim; considerei-a sempre como um facto para estudo. Com isto não quero definir a filosofia: defino tão somente o ponto de vista em que a tenho encarado. Com justiça e verdade disse Cícero:
«O acutos homines! Quam paucis verbis negotium confectunt putant? Ea sumunt ad concludendum, quorum iis nihil conceditur. Conclusio autem rationis ea probanda est, in qua ex rebus non dubiis id, quod dubitatur, efficitur.» De Divinationem II, 49 in f.).
«Ó que homens espertos! Com quão poucas palavras põe como despachado o assunto? Levam a conclusão o que de modo algum lhes é concedido. A razão da conclusão, contudo, tem de ser provada, e a partir de coisas que não são duvidosas do que duvidava.» Cícero, Da Adivinhação. II, 49, no fim.[tradução minha.]
Mas se nisto há advertência que nos deva acautelar, a mesma cautela devemos ter para que a não transformemos em desdém pela filosofia
Por isto mesmo que Antero e eu estudávamos a filosofia em pontos de vista diferentes, ele no ponto de vista especulativo atinente ao fim, solução social do problema até agora insolúvel, eu no ponto de vista histórico, por isso mesmo nos compreendíamos, e por vezes chegávamos à mesma conclusão.
Antero mostrava-se-me de vez em quando animista em matéria religiosa. Todavia depois de eu lhe expor o meu modo de ver acerca do panteísmo, especialmente hindu, e acerca do pessimismo viemos a assentar em que: «O ser, a cousa em si, o númenon, o incognoscível, Deus, todos esses factos íntimos, declarações lógicas da nossa consciência mas intraduzíveis na fenomenalidade material palpável, laços mais ou menos fictícios dos fenómenos, sínteses filhas da nossa ignorância e do nosso arrojo previdente e sublime, as quais alevantamos acima de tudo e nos satisfazem provisoriamente porque preenchem o vácuo das sínteses científicas, - não atestam somente a insuficiência orgânica e a incapacidade original do nosso espírito;[melhor seria dizer mente e cérebro] atestam mais e é, que - o númenon inferido por indução dos factos reais, palpáveis, observados, reproduzidos ou semelhantemente repetidos, é o motor por excelência de todo o progresso, e na ordem moral o consolador e o laço moral, único bem da Humanidade.»
- «Laço unitivo - disse eu depois de havermos assentado nisto - mais do que nunca necessário neste momento histórico de crise religiosa, moral, social, em que a reflexão, o exame crítico, a análise e a meditação de cada um em si mesmo, são os poderosos dissolventes em que tudo rui.» [Dissolventes do falso, e estimulantes à descoberta do verdadeiro, dir-se-á mais realistica e optimisticamente]
- «É levam à convicção de que nada construímos! - acrescentou Antero - por isso prefiro o descanso do teu apotegma.»
- [G. V. A] «O do Hitopadexa!?... é um descanso doentio, e sugestão metafísica da própria fraqueza de corpo e alma, é o egoísmo da suprema aspiração hindu, sentimento subjectivo da incapacidade moral.»
- [A. Q.] «É a conclusão a que se chega com tantas razões para sofrer e tantos motivos para desesperar, cuja súmula é a serenidade inerte e o tédio doloroso desta vida.»
- [G. V. A] «Há nisso contradição; não se fica inerte quando nos defendemos nem quando se tem rancor ou tédio: cogita-se.»
- [A. Q.] «Descansa-se!... Se no tédio doloroso de nós mesmos encontramos a força para nos sumirmos.»
Uns três (?) dias depois eu e Oliveira Martins acompanhávamos Antero de Quental a bordo e dávamos o último abraço no amigo de quem tantos outros se haviam dito amigos e admiradores, de quem nenhum outro se lembrara para lhe dizer adeus! Fomos nós, eu e Oliveira Martins, os únicos a bordo que lhe apertámos a mão! Os únicos que nos despedimos de Antero!!
E eu hoje, depois do suicídio de Antero, lembro-me sempre da asseveração dele: - «Descansa-se!... Se no tédio-doloroso de nós mesmos encontramos a força para nos sumirmos.»
Foi no tédio-doloroso que ele encontrou a força para sumir-se!!...
Alguém [Teófilo Braga] que em tempo se dissera seu amigo, por ínfima ruindade própria se afastara dele, acoimou-o, depois de morto, do vício em que o acusador era useiro, e assim explica o seu suicídio.
Mente esse vil caluniador!
Antero foi sempre alma pura, e em toda a sua vida um idealista!
Era um doente!
Era. Sofria do mal que Stuart Mill diz ser a força dissolvente do universo psicológico, da reflexão e meditação em si e consigo, que dá a acuidade interna mas afunda na tristeza.
Antero era um doente, porque génio de águia, águia subiu ate ao sol e não se aqueceu, transformou-se, consumindo-se, debilitando-se e mariposa queimou-se na luz que procurava.»
Antero, em Ponta Delgada, em 1887, quatro anos antes de partir, na fotografia que mais apreciava, aspirando à Luz, à Verdade, ao Bem... |
Aum... Luz, Amor e presença Divina nas almas de Antero de Quental e Guilherme Vasconcelos d'Abreu!!
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