segunda-feira, 18 de abril de 2022

In Memoriam de Antero de Quental. O contributo do orientalista Guilherme Vasconcelos d'Abreu: "descansa em nada esperar"

Entre os vinte e sete colaboradores  do In Memoriam de Antero de Quental, o contributo de Guilherme Vasconcelos d'Abreu destaca-se, pois nasceram no mesmo ano de 1842, foram amigos desde a juventude estudantil e eram filhos de combatentes nas guerras liberais, tendo os pais de ambos desembarcado nos exércitos liberais na praia do Mindelo e lutado pela libertação de Portugal do absolutismo. Uniam-nos de certo modo laços sanguíneos, além do idealismo e sobretudo orientalismo, onde Guilherme se veio a destacar como o nosso primeiro sanscritólogo deixando-nos vasta obra publicada. Sinais de encontros, diálogos, livros emprestados surgem-nos na correspondência de Antero, e mesmo neste testemunho último vemos na biblioteca de G. Vasconcelos d'Abreu, tal como ele assinava nos seus livros, Antero a interrogá-lo quanto ao valor do especialista de pali, o dialecto do sul da Índia e do Ceilão do sânscrito, e no qual a maioria dos textos budistas foram escritos, Rhys Davids e, como eles dois, curiosamente, nascido em 1842.
Como o texto intitulado Um Tédio-Doloroso não se encontra na web
e o In Memoriam nunca foi reeditado, e não é muito vulgar, resolvemos transcrevê-lo e partilhá-lo hoje que se celebram 180 anos do nascimento de Antero de Quental e assim homenagear os dois. 


Oiçamos então o testemunho, algo emocionado até no fim, ao ter de desagravar Antero de acusações algo torpes feitas por Teófilo Braga, horrivelmente até ao exará-las num prefácio de poemas de Antero, As Primaveras Românticas, que publicou logo que Antero desincarnara, aproveitando o vazio de direitos de autor. Talvez por isso e porque de facto Antero e Teófilo estavam há muito de relações cortadas, Teófilo não foi convidado a participar no In Memoriam. Ora no diálogo entre Antero e Guilherme vemos desenhar-se o contraste quanto à filosofia, o amor da sabedoria,  ou mesmo o "estudo da evolução psíquica" que os unia, entre a busca inquieta, íntima e vivida de Antero, com vivências mais psico-espirituais e algo apostólicas (e tanto a Sociedade do Raio como a Ordem dos Mateiros sê-lo-ão) da cosmovisão a que chegara, e o posicionamento mais neutro, frio e científico de Vasconcelos d'Abreu, ou mais cauteloso e realista. Aliás no fim, Guilherme aceitará que se diga até que Antero era um doente, doente do ideal replicará, e afirmará de novo quão do Céu, ou da Luz, era a águia e mariposa da alma anteriana. Uma questão ficará a flutuar nesta incursão ou anamnese ao último encontro de dois cavaleiros da Verdade e de certo modo do Amor: até que ponto a visão veiculada pela filosofia e sabedoria algo renunciante indiana e budista, e que Vasconcelos d'Abreu traduz para Antero, no "descansar em nada  esperar" e "nesse tédio-doloroso encontrarmos a força de nos sumirmos", possa ter sido um esteio ou vortex nos atribulados últimos momentos da vida terrena do genial e imortal Antero de Quental... Muita luz divina, paz e amor estejam na sua alma!

«Uns três (?) dias antes de eu e Oliveira Martins o acompanharmos a bordo e lhe darmos o último abraço, Antero de Quental estivera em minha casa desde cerca das 2 horas até depois das 4 da tarde.
Vinha dizer-me «adeus mais demorado do que das outras vezes».
Reclinado, quase em posição horizontal, na camilha da minha biblioteca, olhou em roda atentamente para os livros das estantes e da minha mesa de trabalho e perguntou-me que opinião tinha eu dos livros de Rhys Davids. [1843 – 1922, orientalista e fundador da Pali Text Society]
Antero lia muito acerca do Budismo; e para distração de meditações e de cogitar em problemas religiosos e filosóficos, lia o Panchatantra, os Cinco livros de contos, apólogos e fábulas mais ou menos derivados de contos búdicos.
Servia-se da tradução alemã de Benfey.
O nosso diálogo seguiu este rumo e passamos aquelas duas horas em suave palestra e calma discussão a propósito de teorias cuja investigação me interessou sempre como estudo dum facto social, a evolução psíquica, e a ele cativou como problemas de solução
redentora.
Numa estrofe do Hitopadexa tinhamos nós encontrado em resumo a
crítica e a explicação da obra de Antero Os Sonetos. E na capa deste livro escrevi então eu em devanagarico o passo do livro indiano [Hit. 1. 154 (ou 143, ou 111)]:
tenadhita sruta tena/ tena sarvam anusthitam/ jonasah prsthatah krtva/naerasjam avalambitam
Traduzi-lhe estes versos literalmente, e ele escreveu-os e guardou-os

com redação sua em prosa para depois dá-los em verso.
A tradução é a seguinte:
«Tudo estudou, aprendeu tudo e tudo executou, quem voltou as costas à esperança e se ampara descansado em nada esperar.»
Antero ficou mais sombrio depois de lermos este aforismo
sanscrítico, e por vezes interrompia-me dizendo:
- «É exacto!... Não tinha consciência deste facto!»
Digo interrompia-me porque ele pouco falava, queria-me ouvir
acerca de panteísmo hindu, acerca de pessimismo, de nirvana.
A filosofia nunca foi estudo que me preocupasse nem como meio
nem como fim; considerei-a sempre como um facto para estudo. Com isto não quero definir a filosofia: defino tão somente o ponto de vista em que a tenho encarado. Com justiça e verdade disse Cícero:
«O acutos homines! Quam paucis verbis negotium confectunt putant? Ea sumunt ad concludendum, quorum iis nihil conceditur. Conclusio autem rationis ea probanda est, in qua ex rebus non dubiis id, quod dubitatur, efficitur.» De Divinationem II, 49 in f.). 

«Ó que homens espertos! Com quão poucas palavras põe como despachado o assunto? Levam a conclusão o que de modo algum lhes é concedido. A  razão da conclusão, contudo, tem de ser provada, e a partir de coisas que não são duvidosas do que duvidava.» Cícero, Da Adivinhação. II, 49, no fim.[tradução minha.]

Mas se nisto há advertência que nos deva acautelar, a mesma cautela devemos ter para que a não transformemos em desdém pela filosofia
Por isto mesmo que Antero e eu estudávamos a filosofia em pontos de vista diferentes, ele no ponto de vista especulativo atinente ao fim, solução social do problema até agora insolúvel, eu no ponto de vista histórico, por isso mesmo nos compreendíamos, e por vezes chegávamos à mesma conclusão.
Antero mostrava-se-me de vez em quando animista em matéria religiosa. Todavia depois de eu lhe expor o meu modo de ver acerca do panteísmo, especialmente hindu, e acerca do pessimismo viemos a assentar em que: «O ser, a cousa em si, o númenon, o incognoscível, Deus, todos esses factos íntimos, declarações lógicas da nossa consciência mas intraduzíveis na fenomenalidade material palpável, laços mais ou menos fictícios dos fenómenos, sínteses filhas da nossa ignorância e do nosso arrojo previdente e sublime, as quais alevantamos acima de tudo e nos satisfazem provisoriamente porque preenchem o vácuo das sínteses científicas, - não atestam somente a insuficiência orgânica e a incapacidade original do nosso espírito;[melhor seria dizer mente e cérebro]  atestam mais e é, que - o númenon inferido por indução dos factos reais, palpáveis, observados, reproduzidos ou semelhantemente repetidos, é o motor por excelência de todo o progresso, e na ordem moral o consolador e o laço moral, único bem da Humanidade.»
- «Laço unitivo - disse eu depois de havermos assentado nisto - mais do que nunca necessário neste momento histórico de crise religiosa, moral, social, em que a reflexão, o exame crítico, a análise e a meditação de cada um em si mesmo, são os poderosos dissolventes em que tudo rui.» [Dissolventes do falso, e estimulantes à descoberta do verdadeiro, dir-se-á mais realistica e optimisticamente]
- «É levam à convicção de que nada construímos! - acrescentou Antero - por isso prefiro o descanso do teu apotegma.»
- [G. V. A] «O do Hitopadexa!?... é um descanso doentio, e sugestão metafísica da própria fraqueza de corpo e alma, é o egoísmo da suprema aspiração hindu, sentimento subjectivo da incapacidade moral.»
- [A. Q.] «É a conclusão a que se chega com tantas razões para sofrer e tantos motivos para desesperar, cuja súmula é a serenidade inerte e o tédio doloroso desta vida.»
-
[G. V. A] «Há nisso contradição; não se fica inerte quando nos defendemos nem quando se tem rancor ou tédio: cogita-se.»
-
[A. Q.] «Descansa-se!... Se no tédio doloroso de nós mesmos encontramos a força para nos sumirmos.»

Uns três (?) dias depois eu e Oliveira Martins acompanhávamos Antero de Quental a bordo e dávamos o último abraço no amigo de quem tantos outros se haviam dito amigos e admiradores, de quem nenhum outro se lembrara para lhe dizer adeus! Fomos nós, eu e Oliveira Martins, os únicos a bordo que lhe apertámos a mão! Os únicos que nos despedimos de Antero!!
E eu hoje, depois do suicídio de Antero, lembro-me sempre da asseveração dele: - «Descansa-se!... Se no tédio-doloroso de nós mesmos encontramos a força para nos sumirmos.»
Foi no tédio-doloroso que ele encontrou a força para sumir-se!!...

Alguém [Teófilo Braga] que em tempo se dissera seu amigo, por ínfima ruindade própria se afastara dele, acoimou-o, depois de morto, do vício em que o acusador era useiro, e assim explica o seu suicídio.
Mente esse vil caluniador!
Antero foi sempre alma pura, e em toda a sua vida um idealista!
Era um doente!
Era. Sofria do mal que Stuart Mill diz ser a força dissolvente do universo psicológico, da reflexão e meditação em si e consigo, que dá a acuidade interna mas afunda na tristeza.
Antero era um doente, porque génio de águia, águia subiu ate ao sol e não se aqueceu, transformou-se, consumindo-se, debilitando-se e mariposa queimou-se na luz que procurava.»

Antero, em Ponta Delgada, em 1887, quatro anos antes de partir, na fotografia que mais apreciava, aspirando à Luz, à Verdade, ao Bem...

 Aum... Luz, Amor e presença Divina nas almas de Antero de Quental e Guilherme Vasconcelos d'Abreu!!

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