domingo, 24 de abril de 2022

"Histoire du Christianisme des Indes" de La Croze, 1720, e as primeiras revelações da riqueza espiritual indiana.

A percepção justa da religiosidade dos indianos, das suas crenças e  Deuses, filosofia  e vias espirituais não podia ser facilmente alcançada  pelos missionários ocidentais que contactaram com eles desde o século XVI, embora tivesse havido uma meia dúzia que a compreenderam melhor mas com que limitações face, a partir de meados do séc. XVIII, aos frutos dos estudos linguísticos e históricos que geraram traduções e compreensões bem mais científicas .

Gravura na anteportada da obra, algo ilusória do poder e mérito da religião cristã na Índia.

No entanto em 1720 saía à luz uma Histoire du Christianime des Indes de Mathurin Veyssière de La Croze, bibliotecário do Rei da Prússia, num livrinho, in-8º de (16)-570-(54) páginas, que contém além, da descrição valiosa da cristianização de algumas partes da Índia, bem como da sua história e costumes,  um capítulo ou livro dedicado às religiões indianas, baseado nas relações de padres (mas não viajantes, pois segundo ele não aprofundariam o suficiente), em especial sobretudo os da missão da Dinamarca, estabelecida em Tranquebar (hoje Tharangambadi), na costa do Coromandel. É o capítulo ou livro VI, A Idolatria das Índias, que vamos abordar levemente, tentando transcrever alguns dados valiosos da espiritualidade indiana que La Croze  conseguiu acolher, mesmo que seja só para um olhar mais interior ou espiritual dum seu futuro leitor ou leitora, como somos nós hoje, gratos pelo seu trabalho de há trezentos anos.

Depois de criticar muito a idolatria e superstições, e de valorizar contudo a religião Indiana por ter uma consciência da Divindade suprema, acima das  deidades menores, algo que na Grécia só alguns poucos filósofos possuíam ou discerniam, La Croze, na esteira de alguns historiadores, admite que na Índia primordial haveria uma religião pura e natural, sem superstições, aceitando depois a hipótese de que a religião Indiana poderia provir mesmo do Egipto, conforme o P. Catrou na sua História do Mogol afirmara, e acredita ingenuamente, rotundamente infundado, que se os Vedas já tivessem sido traduzidos, haveria descrições neles de tais contactos históricos antigos.

Acercando-se da Trindade Hindu, a Trimurti, apresenta-nos três belíssimas gravuras, que reproduzimos com gosto para as almas amantes da sabedoria indiana: Brahma, ou como se diz no sul Brimuh, o ser supremo, que não é adorado em si mas apenas nos seus sacerdotes, os brâmanes, uma explicação interessante.

Vishnu, o princípio Preservador e de Amor da Divindade, cujas descidas ou avataras principais são Rama e Krishna, com quatro braços (correspondentes às suas shaktis ou energias) e seus atributos, segundo uma das Puranas (histórias), num mudra (gesto-selo) abençoante ou presenteante.

Já quanto a Isvara (o Senhor) ou Shiva, que apresenta como um émulo ou a correspondência do Baco grego, muito escandalizado, diz-nos «Os Indianos tem o seu Lingam, que acrescenta ainda qualquer coisa ao Phalus dos egípcios e gregos. Adoram este falso deus Isvarem sob esta figura monstruosa e obscena, que expõem nos Templos, e que levam em procissão, insultando de uma forma horrível o pudor e a credulidade da populaça».

Ora esta visão puritana e incapaz de compreender a simbologia pluridimensional do lingam foi comum nos comentadores cristão, durante séculos mentalizados e habituados à visão, frequentemente hipócrita, da sexualidade como algo de pecaminoso. 

O linga como símbolo da força que liga a Terra e o Céu e de Shiva, numa estampa trazida de Badrinath.

Anote-se uma referência contudo a um Zosemo, que teria considerado o phalus no Egipto como um símbolo da vida a vir.  Considera ainda que na adoração dos animais, divisão em castas, purificações, superstições há muito de comum entre o Egipto e Índia, e dá várias provas (a partir do iniciado Plutarco e do bibliotecário da Vaticana, Lucas Holstenius) de como o monaquismo veio do Egipto  para o Ocidente e passou ao Cristianismo, tal como várias práticas e costumes religiosos. É um protestante, dito mais esclarecido que os supersticiosos católicos, a falar e por isso critica tudo o que foi sendo acrescentado e desvirtuado no ensinamento de Jesus: culto das imagens, tonsura, roupas de linho, celibato, flagelações, abstinência da carne, transubstanciação na Eucaristia, criticando ainda as ilusões da Cabala, que seria originária também do Egipto.

Ora os autores que La Croze considerou mais fiáveis para a sua demanda da religiosidade indiana foram Abraham Roger e o seu Teatro da Mitologia, que esteve no Coromandel e aprendeu de um brâmane, as Memórias do holandês Baldeus, que aproveitou manuscritos dos missionários portugueses no Ceilão; as Memórias do religioso Carmelita Vicente Maria de Santa Catarina de Siena, que confessa ter copiado das obras de D. Francisco Garcia, arcebispo de Granganor.  Ora quanto a este D. Francisco Garcia,  de facto leitor e conhecedor dos textos sagrados indianos,  dele escrevi nas Efemérides do Novembro do Encontro do Oriente e Ocidente (que encontra neste blogue) que, natural de Alter do Chão, entrou na Companhia de Jesus em 1589 e andou cinquenta anos na Índia a persuadir hindus e cristãos de S. Tomé dos princípios e doutrinas da Igreja de Roma, para o que estava bem dotado pois sabia grego, hebraico, caldaico, siríaco, canarim, sânscrito e indostânico. E foi já com dezoito anos como arcebispo da Serra e de Cangranor que entrou pelo túnel estreito e simplificador da morte no dia 3 de Novembro de 1659. O Homem das 33 Perfeições, editado em Lisboa em 1958 pelo notável jesuíta José Wicki, é a sua obra que sobreviveu, tecida de contos indianos por ele traduzidos e com pequenas máximas suas.»

Voltando a La Croze, vemo-lo pensar que era a religião malabar, desde o rio Ganges para baixo que constituía a fonte comum de praticamente toda religiosidade do Oriente e Extremo Oriente, admitindo mesmo que as do Japão e China dela derivassem. Exagerava na busca de uma fonte comum, quando múltiplas influências ou simples sincronias se verificaram nos diferentes povos, embora certamente a religiosidade indiana e os seus deuses e práticas meditativas se espalharam muito pelo Oriente.
A sua compreensão da Trimurti (ou Trindade) também não era bem acertada, pois
tendo lido que os adoradores de Isvarem ou Shiva e Vishnu estavam frequentemente em guerra, pensou que deveriam provir de terras diferentes, Isvarem ou Shiva do Egipto e Vishnu da Pérsia, quando eles são fruto de evoluções de deidades da Índia. Refere a Tsiva sameian  e a Vishnu sameian, as comunidades ou confraternidades deles (Shiva & Vishnu sama), escrevendo quanto às marcas com cinza de bosta de vaca e cores na zona do 3º olho feitas pelos shivaístas: «Dão a esta cinza uma grande ideia de santidade porque ela faz-lhes de confissão pública do Zelo e da Constância que têm no seu ídolo.» E é uma boa embora  não consciente aproximação ao despertar do 3º olho, conseguido pelo zelo e constância da vichara, auto-consciencialização e da sadhana, prática espiritual, pela qual a devoção e aspiração não a um ídolo mas a uma Ishta Devata, a Divindade pessoal interior, era cultivada, algo de valor perene e que bem necessitaria de ser mais compreendido no Ocidente tão limitado, traumatizado ou fanatizado pelas concepções judaico-cristãs e até islâmicas.
Referindo a adopção ou aculturização cristã dalguns deste sinais e
práticas pelos missionários jesuítas, La Croze manifesta algum despeito ou inveja por tal bem sucedida actuação, e na qual poderemos mencionar P. Roberto da Nobili, P. Tomás Estêvão, S. João de Brito: « Os jesuítas que cumprem as função sacerdotais em Maduré, dizem que não são Francos, isto é Cristãos Europeus, e fazem-se passar por sanyasins [renunciantes-monges] e brâmanes vindos do Norte, e esfregam-se eles e os seus neófitos com a mesma cinza. Andam igualmente com os três cordões dos brâmanes, uso pelo qual estes sacerdotes idolatras fazem profissão de se devotarem às três Divindades da governação do Universo», e continuará, numa visão ainda mais ortodoxa e a saber um pouco a Calvinista extremista, a criticá-los por estarem a introduzirem superstições de idolatras no seio do cristianismo.

Refere «os que  acima de todas as divindades quiméricas reconhecem  um Ser ao qual atribuem a Soberania sobre todas as coisas», e deverá estar a referir-se a Brahman,  embora devesse antes que  soberania ver mais a emanação de todos seres e energias. Partilha o famoso mantra Om namo shivaya, [eu saudo Shiva, o qual significa a Beatitude Divina, e que por exemplo eu passei quase uma noite inteira a repetir na anual Shiva ratri, com um yoga terapeuta e poucos discípulos, em Bangalore], bem como «os yogis, que fazem pouco caso da multidão dos Deuses e de todo embaraço das cerimónias exteriores. O seu único interesse são a meditação e o recolhimento. Quando um homem se torna um yogi abandona a sua mulher e familiares. Ele renuncia inteiramente ao mundo. São os que se chamam os penitentes da Índia. Vivem numa austeridade e mortificação que ultrapassa tudo o que se possa imaginar. Uma das violências que costumam fazer aos seus corpos, consiste em reter por muito tempo a respiração e manterem-se nesse tempo numa respiração profunda, pretendendo estarem mais facilmente neste estado ou hábito meditativo graças a esta violência feita sobre a natureza». 

Yogis, já numa gravura francesa do começo do séc. XIX

É bem valioso este pequeno excerto, pois mostra as práticas yogis mais conhecidas, o pranayana e prathayara, controle da energia pela respiração e recolhimento interior, tipificados nos Yoga Sutras de Patanjali, e consequentemente capacidade maior de meditação, visão, unificação mental, sendo certamente ainda hoje práticas com resultados em milhões de pessoas, ainda que certamente nada seja automático...

Reconhecendo a existência de concepções sublimes da Divindade suprema, a cuja origem atribui a graça inicial universal da Divindade, transcreve parte duma carta do P. Bouchet ao célebre abade Huc [1813-1860]: «Os indianos reconhecem um Deus infinitamente  perfeito, que existe de toda a eternidade e que contém em si os mais excelentes tributos... Este Deus se chama Para Bara Vastou [isto é, Parabrahmam Vastou], ou seja o Deus Supremo», e não deixa de valorizar  tal elevado conhecimento indiano apontando a falta dele por exemplo nos actuais monstros europeus que são os ateístas  e libertinos. 

Referirá ainda como viu duas imagens elevadas de tal ser: uma em forma dum ser humano que continha em si todos os deuses, e uma segunda em que um triângulo se encontrava inscrito num círculo, o que se chama um yantra, bem propício para a contemplação e a elevação da mente para planos mais elevados e geométricos do Universo. 

Vamos terminar esta primeira aproximação  à valiosa obra de La Croze, com alguma da sabedoria recolhida pelo missionário Ziegenbalg quanto perguntou a alguns indianos  «porque não prestavam culto [exterior] ao Brahman, responderam-lhe duma maneira uniforme, que Deus é um ser incompreensível e sem figura, do qual Homem não se pode formar qualquer ideia corporal; e que adoração que se presta aos ídolos das Divindades inferiores desde que estejam reguladas pela lei [ou melhor,  preceitos védicos, e dever, dharma], será recompensada, como uma obediência.»
Realce-se esta passagem energética da assunção pela Divindade
suprema do culto prestado  às suas formas de manifestação no mundo, algo que é muito natural, e que vemos mesmo nos grandes mestres  da espiritualidade, tal Shankara, que sendo um expositor da mais elevada não-dualidade, duma gnose (Jnana) apenas intelectual e consciencial do Espírito supremo e único, utilizava contudo a sua devoção a formas femininas da Divindade, nomeadamente Annapurana Devi..

A parte final destes testemunhos recolhidos in loco por Ziegenbalg é também bem valiosa e faz-nos lembrar, algo em ressonância, o conto da pérola perdida e que levamos ao peito: «Um indiano que tinha abraçado o Cristianismo pelo ministério dos Missionários de Tranquebar (hoje Tharangambadi), recebeu do seu pai a seguinte carta, em malabar: «Não conheces ainda os mistérios secretos da nossa Religião. Nós não adoramos vários Deuses, da maneira insensata que imaginas. Nesta multidão de Ídolos [ou formas de manifestação divinas] nós honramos [adoramos] uma só essência Divina. Nós temos entre nós Sábios aos quais te deves dirigir, pois eles dissiparão todas as tuas dúvidas. Quem entende bem a nossa Religião, pode nela facilmente fazer a sua salvação. Nós temos o exemplo de várias pessoas, às quais Deus deu de uma maneira sensível a Felicidade eterna [Ananda].»

É bem valiosa esta transcrição de la Croze, valorizadora da profunda espiritualidade indiana, à qual parece, por estar acima ou livre de superstições e idolatrias, dar o seu aval, o que confirmaremos  numa segunda parte ou artigo em que iremos ouvir o que ele recebeu de Ziegenbalg quanto aos mais elevados religiosos indianos, que ele denomina os Gnanigeuls, certamente os Jnani Yogis, «que são propriamente os Sábios da Índia.»

Himavat, os Himalaias, como centro emissor espiritual do planeta, por Bô Yin Râ...

Possam estes mestres ou gurus do Oriente inspirar-nos e guiar-nos, para que a Humanidade trilhe melhor o caminho do Bem e da Verdade, da fraternidade e da justiça, do Amor e da Divindade!

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