domingo, 17 de abril de 2022

Leão Tolstoi responde a carta fervorosa do jovem Romain Rolland, em 1887. 1ª parte. Com leitura comentada gravada em vídeo.

Em 1882, quando  estava já no auge da sua consagração como romancista (Guerra e Paz, 1869, Ana Karénina, 1875)  e provavelmente estimulado pela sua experiência do recenseamento de Moscovo e o contacto com a miséria de muito do povo,  Leão  Tolstoi (1828-1910)  começa a manifestar-se mais como pensador revolucionário, com obras poderosas de ataque aos poderes instituídos e degenerados do Estado, da Igreja, da propriedade individual, do militarismo e ainda às tendências humanas da preguiça, vaidade, cinismo, ganância, violência, opressão, assassinato e, simultaneamente, a publicar  alguns frutos da aspiração a transmitir a sua visão da Religião, bastante derivada da mensagem de Jesus, nomeadamente com Confissão, A minha Religião, O que devemos Fazer? Ora no Ocidente, algumas almas mais sensíveis, e que conseguiam encontrar ou ter acesso às traduções francesas ou inglesas que circulavam, entusiasmaram-se fortemente com tal palavra ou verbo, tão convincente e poderosa que vinha da estepes e florestas da grande e santa Rússia e unia a Europa num frémito de aspiração ao conhecimento e justiça, liberdade e fraternidade.

Hagia Sophia, Santa Sabedoria, iluminai as mentes e cidades. Nicholai Roerich.

Uma dessas almas foi o jovem aluno da Escola Normal Superior, Romain Rolland, (29-1-1866 a 3-12-1944) e que se dirigiu a Tolstoi em 1887, com 21 anos, no fervor da sua aspiração à verdade e ao bem, numa breve mas intensa carta, e que não desmerece dos seus dotes, pois poucos anos depois já é assistente na Universidade, embora posteriormente, estimulado pelo contacto amistoso com vários escritores e pensadores, abandonasse o professorado e passasse a escritor, pacifista em especial, publicando um livro sobre Tolstoi em 1910, e recebendo logo em 1915 o prémio Nobel da Literatura. Da sua sensibilidade e apetência ética e espiritual destacam-se as obras dedicadas à compreensão de grandes almas indianas tais como Mahatma Gandhi, Sri Ramakrishna (que eu li na minha juventude, do meu irmão mais velho, o Carlos: que a Luz esteja com ele) e Swami Vivekananda.

Ora essa carta de Romain Rolland, partilhada pela viúva, foi publicada entre nós pela revista Vértice, no número duplo consagrado em 1960, aos cinquenta anos da desencarnação de Tolstoi, e que incluía uma pequena antologia Tolstoi visto por, com Anatole France, Jean Jaurés, Maria Amália Vaz de Carvalho, Jaime de Magalhães Lima, Sampaio Bruno e Teixeira Pascoaes), e foi lida, comentada gravada em vídeo por mim no Domingo de Páscoa de 2022, e agora apenas transcreverei algumas partes, tal a da sua apresentação bem idealista: «Penso que somos parcelas ínfimas da grande alma do mundo [magna anima mundi] e que o Bem consiste em sacrificar-nos aos outros. Mas como?»

E, interrogando como se poderá trabalhar com as mãos e renunciar ao pensamento,  pede-lhe: «Responda-me por favor: preciso tanto de conselhos! À minha volta, não há directores morais, mas tão somente indiferentes, cépticos, diletantes, egoístas...» E terminará, assinando «um dos humildes e ferventes discípulos de V. Exª. Romain Rolland.»

                                      

A resposta longa mas sentida e profunda, de Tolstoi, que nós lemos e comentámos só 1/3, e que pode ouvir no fim, merece ainda ser transcrita em algumas partes mais significativas para este artigo, tal a sua perenidade:
«Querido irmão!
Recebi a sua primeira carta. Ela tocou-me o coração. Li-a com lágrimas nos olhos. Tencionava responder-lhe, mas não tive tempo, tanto mais que, além da dificuldade de escrever em francês, deveria escrever longamente para responder às suas perguntas que, na maior parte, assentam num mal entendido. As perguntas que me faz: por que motivo o trabalho manual se impõe a nós como uma das condições essenciais da verdadeira felicidade? (...)
A formula moral mais simples e mais curta é ser-se servido pelos outros o menos possível e servir os outros o mais possível. Exigir dos outros o menos possível e dar-lhes o máximo possível.
Esta formula que dá à nossa existência um sentido ponderado, e a felicidade que dela decorre, resolve ao mesmo tempo todas as dificuldades, como por exemplo a que se ergue na nossa frente: a parte a reservar à actividade intelectual - a ciência, a arte.
Segundo este princípio, apenas me sinto feliz e contente quando, agindo, tenho a firme convicção de ser útil aos outros. O contentamento [ou reconhecimento] daqueles para quem eu trabalho é um suplemento, um resto de felicidade com que eu não conto e que não me pode influenciar na escolha das acções. A principal condição da minha felicidade é saber que aquilo que faço não é inútil, nem um mal, mas um bem para os outros.»

Esta consciencialização do despreendimento quanto aos resultados da acção e de extrairmos o nosso contentamento apenas da voz da nossa consciência que nos diz que estamos a lutar pelo bem dos outros, desapegadamente, e que  nós encontramos nos ensinamentos da Bhagavad Gita (II-47) ou de Antero de Quental (cartas a Fernando Leal, e outras), surgiu cedo em Tolstoi,  embora se divida frequentemente a vida dele em duas fases, a primeira literária e uma segunda de pensador religioso, ele desde cedo escreveu os seus diários com muita riqueza de auto-conhecimento e já em 1857, apenas com 30 anos, registou num deles:«Uma grande ideia veio-me hoje e para a realização da qual eu poderia consagrar toda a minha vida: fundar uma religião nova, a religião do Cristo, mas desembaraçada dos dogmas e dos milagres».
Também os seus trabalhos de educação popular e o contacto com o tipo de religiosidade imposta às crianças tinham intensificado dolorosamente o seu discernimento de que a religião cristão, a mensagem original de Jesus, tinha sido muito adulterada, pelo que começou a publicar obras como um Catecismo Popular, a Confissão, a Minha religião, Análise de Teologia Dogmática, O que Devemos Fazer, e que, traduzidas em várias línguas por entusiastas e prosélitos, moveram tanta gente europeia, nomeadamente Romain Rolland, este bastante na linha da não-violência de Tolstoi, a qual depois Gandhi, bem mais dinâmica e vitoriosamente conseguirá levar a uma prática social e a uma luta política. 

Anote-se para finalizar, que bastante anos mais tarde, Romain Rolland reconhecerá algum anacronismo ou arcaísmo nas posições de Tolstoi  ligadas a uma visão excessivamente valorizadora da Terra, do camponês e do trabalho manual, descontextualizada do grande desenvolvimento industrial, científico e artístico que se operava mundialmente, a par de uma melhoria (relativa) das condições de vida dos trabalhadores.
Terminemos com uma última citação de Tolstoi, também lida e comentada no vídeo: «Profeta não é aquele que recebe educação de profeta, mas aquele que possui a íntima convicção do que é, deve e não pode deixar de ser. Essa convicção é rara e só poderá ser sentida 
através dos sacrifícios que o ser humano faz à sua vocação.»
Saibamos escutar mais o silêncio, e logo discernir ou ouvir a intuição ou voz d
a consciência que nos guia ou convoca ao melhor de nós próprios, no Amor e para o Bem da Humanidade, do Universo e da Divindade,,,

                

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