Tolstoi (1828-1910), na sua obra Ao Clero, 1902, traduzida e publicada em português (conjuntamente com a Destruição do Inferno e a sua restauração), em 1903 pelo jornalista Francisco Mayer Garção (1872-1930), deixou-nos um testamento importante e um contributo valioso não só para o conhecimento do fenómeno religioso, como para a reforma do Cristianismo e sobretudo para a libertação e esclarecimento das almas.
Para todas as almas que demandam a verdade, que são cavaleiros ou cavaleiras do Amor, há muitos aspectos ainda hoje pouco claros nos domínios religiosos e espirituais e inegavelmente Tolstoi tentou abordá-los com vigor, em alguns casos discernindo muito bem, com claridade e perenidade...
Após lermos Ao Clero, escrito e concluído em Isnaia Poliana, 1 de Novembro 1902, já perto do fim da sua vida, e depois de muita investigação, escritos e polémicas religiosas, nomeadamente face à sua excomunhão pelo Sínodo de 22-II-1901 («cego pelo seu orgulho (...) prega com ardor de fanático a abolição de todos os dogmas da Igreja Ortodoxa»), e sendo a segunda réplica a tal arbitrária condenação (a primeira fora a publicação do seu Credo, bastante cordata ou em amor, em 4-IV-1901), ao observarmos quão valiosos e actuais são certos parágrafos ou mesmo capítulos, resolvemos resumir a obra num texto inicial, para não o alongar, e num segundo publicarmos os melhores extractos, embora algo deles partilhemos desde já.
No 1º capítulo, resume a doutrina Católica, ou os doze artigos do Símbolo da Fé, transcrevendo-os, considerando-os que constituiriam a dádiva de Deus ao ser humano para o seu bem e que os sacerdotes em teoria respeitariam e pregariam.
No 2º, admira-se e indigna-se que tal formulação do que é tido como revelação da Verdade tenha sido transmitida pela violência, pela persuasão da oratória ou então impondo-se-a aos mais analfabetos ou simples.
No 3º, resumindo bem a Bíblia em cinquenta linhas e, tendo em conta a quantidade de disparates, das quais transcreve algumas, tais como «Deus, receando que o homem e a mulher comessem o pomo que continha a força mágica de dar a omnipotência, lhes proibiu que comessem esse fruto», ou ainda «as ladroeiras de Jacob, favorito de Deus, as crueldades de Samsão, as astúcias de José; toda essa história, começando pelos flagelos enviados por Moisés aos egípcios e a exterminação pelo Anjo de todos os recém-nascidos até ao fogo, que devorou 250 conspiradores, até Coré, Dathan e Abiron, engolidos pela terra, até ao aniquilamento, em poucos minutos de 14.700 homens, até aos inimigos serrados ao meio e aos pontífices pagãos que, não estando de acordo com Elias, foram supliciados por ele, que subiu depois ao céu, até Eliseu amaldiçoando rapazes que troçavam dele e que por isso foram devorados por duas ursas, - toda essa história não é senão uma série de acontecimentos miraculosos e de crimes terríveis cometidos pelo povo hebraico, pelos seus chefes e pelo próprio Deus»», pergunta com uma sinceridade tremenda: «no mundo cristão há por acaso livro que tenha feito mais mal aos seres humanos de que esse livro terrível? Como pode ele tornar-se a primeira base das concepções do mundo, do bem e do mal e de Deus?»
No 4º capítulo, critica fortemente as proposições insensatas e contraditórias, de expiação e de violência, transmitidas pela Bíblia e pelo ensino religioso, que diminuem as exigências da razão, do amor recíproco e do desejo de perfeição e paz, desfigurando as ideias e sentimentos dos mais fracos.
No 5º, põe em causa a perda de conhecimento do verdadeiro Cristianismo, presente em lendas, provérbios e costumes bondosos ou solidários, perante o crescimento dos aspectos externos e cerimoniais religiosos, ou das subtis discussões teológicas, da obrigatoriedade dos dias de festa, das procissões, relíquias, sinal da cruz, beijar dos ícones, etc. Contesta também certos aspectos do catolicismo ou do protestantismo, aos quais denomina o mundo pseudo-cristão.
No 6º capítulo, algo pessimista, Tolstoi considera que as pessoas convencem-se que vivem cristãmente quando vivem egoística, ambiciosa, violenta e exploradoramente. De tal modo que as doutrinas acabaram não só por desviar as pessoas do verdadeiro Cristianismo como envenená-las, de tal modo que muitas já não conseguirão regressar ao verdadeiro Cristianismo.
No 7º capítulo, alerta para o perigo provindo dos que libertando-se da crença e influência cristã ainda acabam pior: «Inspirando aos homens que a principal qualidade dos seres dotados de raciocínio, - o estabelecimento da sua relação com a Fonte de tudo - a única donde podem ser extraídas leis morais e sólidas, é um estado já ultrapassado pelos homens, os negadores da religião, mau grado seu, assentam unicamente na base da actividade humana o egoísmo e o desejo carnal que dele deriva.»
No 8º capítulo, critica os sacerdotes ou religiosos que propagam com força doutrinas que não acreditam:«Eu sei que repetindo o célebre credo quia absurdum muitos dentre vós pensam que, apesar de tudo, creem no que ensinam (...) Pensais que deveis dizer que acreditais nisso, mas não acreditais. Não acreditais porque: Deus, uno e trino, Cristo subindo ao céu e descendo de novo de lá, para julgar os homens ressuscitados, são afirmações desprovidas de senso. Podem-se pronunciar palavras que não tenham senso, mas é impossível acreditar no que não tem senso (...) Os antigos que estabeleceram estes dogmas podiam crer neles, mas isso já é impossível para vós (...). E termina assim o capítulo, em conclusão de uma história que narrou: «O padre Didon afirma que crê em Deus, nas ascensão de Cristo, e o aldeão diz que não acredita em Deus, porque não cumpre a sua vontade./ É claro que o padre Didon não sabe mesmo o que é a fé ["relação para com Deus que define o sentido de toda a sua vida e guia todos os seus actos conscientes"] e declara apenas o que crê; e o aldeão sabe o que é a fé, e se bem que diga que não crê em Deus ["proferindo injúrias, não dando aos mendigos, invejando os outros, comendo e bebendo demasiadamente, como é que eu viveria assim. se acreditasse em Deus?"], crê realmente nele, no próprio sentido do que é a verdadeira fé.»
No 9º capítulo, Tolstoi interpela fortemente os sacerdotes ou religiosos cristãos a consciencializarem-se do mal que fazem ao ensinarem a crianças e gente pouco instruída as proposições e crenças irracionais nas quais eles próprios não acreditam senão por hábito cego:«Não acreditais na divindade dessas escrituras que dizeis sagradas. Não acreditais em todos os horrores, em todos os milagres do Antigo Testamento. Não acreditais no Inferno, na Imaculada Conceição, na Ressurreição, na Ascensão de Cristo; não acreditais na ressurreição dos mortos, na Trindade de Deus...». E ainda por cima «inspirando-lhes a vossa fé particular, fazeis precisamente o que não quereis fazer; privais homens da união com toda a humanidade, acabais por encerrá-los no quadro estreito da vossa exclusiva confissão e assim os colocais numa situação, senão hostil, pelo menos estranha aos outros homens»... E assim em vez de libertarem-se e ajudarem os outros a libertarem-se, envolvem-nos em enganos, confusões, interpondo-se entre a verdade divina e os seres humanos.
No 10º e último capítulo, Tolstoi pergunta o que sucederia se as pessoas deixassem de acreditar na doutrina da Igreja, e responde:«sucederia que a lenda hebraica, bem como o saber religioso do mundo inteiro se lhes tornaria acessível. Sucederia que as pessoas se desenvolveriam com ideias e sentimentos não pervertidos.»
Após lermos Ao Clero, escrito e concluído em Isnaia Poliana, 1 de Novembro 1902, já perto do fim da sua vida, e depois de muita investigação, escritos e polémicas religiosas, nomeadamente face à sua excomunhão pelo Sínodo de 22-II-1901 («cego pelo seu orgulho (...) prega com ardor de fanático a abolição de todos os dogmas da Igreja Ortodoxa»), e sendo a segunda réplica a tal arbitrária condenação (a primeira fora a publicação do seu Credo, bastante cordata ou em amor, em 4-IV-1901), ao observarmos quão valiosos e actuais são certos parágrafos ou mesmo capítulos, resolvemos resumir a obra num texto inicial, para não o alongar, e num segundo publicarmos os melhores extractos, embora algo deles partilhemos desde já.
No 1º capítulo, resume a doutrina Católica, ou os doze artigos do Símbolo da Fé, transcrevendo-os, considerando-os que constituiriam a dádiva de Deus ao ser humano para o seu bem e que os sacerdotes em teoria respeitariam e pregariam.
No 2º, admira-se e indigna-se que tal formulação do que é tido como revelação da Verdade tenha sido transmitida pela violência, pela persuasão da oratória ou então impondo-se-a aos mais analfabetos ou simples.
No 3º, resumindo bem a Bíblia em cinquenta linhas e, tendo em conta a quantidade de disparates, das quais transcreve algumas, tais como «Deus, receando que o homem e a mulher comessem o pomo que continha a força mágica de dar a omnipotência, lhes proibiu que comessem esse fruto», ou ainda «as ladroeiras de Jacob, favorito de Deus, as crueldades de Samsão, as astúcias de José; toda essa história, começando pelos flagelos enviados por Moisés aos egípcios e a exterminação pelo Anjo de todos os recém-nascidos até ao fogo, que devorou 250 conspiradores, até Coré, Dathan e Abiron, engolidos pela terra, até ao aniquilamento, em poucos minutos de 14.700 homens, até aos inimigos serrados ao meio e aos pontífices pagãos que, não estando de acordo com Elias, foram supliciados por ele, que subiu depois ao céu, até Eliseu amaldiçoando rapazes que troçavam dele e que por isso foram devorados por duas ursas, - toda essa história não é senão uma série de acontecimentos miraculosos e de crimes terríveis cometidos pelo povo hebraico, pelos seus chefes e pelo próprio Deus»», pergunta com uma sinceridade tremenda: «no mundo cristão há por acaso livro que tenha feito mais mal aos seres humanos de que esse livro terrível? Como pode ele tornar-se a primeira base das concepções do mundo, do bem e do mal e de Deus?»
No 4º capítulo, critica fortemente as proposições insensatas e contraditórias, de expiação e de violência, transmitidas pela Bíblia e pelo ensino religioso, que diminuem as exigências da razão, do amor recíproco e do desejo de perfeição e paz, desfigurando as ideias e sentimentos dos mais fracos.
No 5º, põe em causa a perda de conhecimento do verdadeiro Cristianismo, presente em lendas, provérbios e costumes bondosos ou solidários, perante o crescimento dos aspectos externos e cerimoniais religiosos, ou das subtis discussões teológicas, da obrigatoriedade dos dias de festa, das procissões, relíquias, sinal da cruz, beijar dos ícones, etc. Contesta também certos aspectos do catolicismo ou do protestantismo, aos quais denomina o mundo pseudo-cristão.
No 6º capítulo, algo pessimista, Tolstoi considera que as pessoas convencem-se que vivem cristãmente quando vivem egoística, ambiciosa, violenta e exploradoramente. De tal modo que as doutrinas acabaram não só por desviar as pessoas do verdadeiro Cristianismo como envenená-las, de tal modo que muitas já não conseguirão regressar ao verdadeiro Cristianismo.
No 7º capítulo, alerta para o perigo provindo dos que libertando-se da crença e influência cristã ainda acabam pior: «Inspirando aos homens que a principal qualidade dos seres dotados de raciocínio, - o estabelecimento da sua relação com a Fonte de tudo - a única donde podem ser extraídas leis morais e sólidas, é um estado já ultrapassado pelos homens, os negadores da religião, mau grado seu, assentam unicamente na base da actividade humana o egoísmo e o desejo carnal que dele deriva.»
No 8º capítulo, critica os sacerdotes ou religiosos que propagam com força doutrinas que não acreditam:«Eu sei que repetindo o célebre credo quia absurdum muitos dentre vós pensam que, apesar de tudo, creem no que ensinam (...) Pensais que deveis dizer que acreditais nisso, mas não acreditais. Não acreditais porque: Deus, uno e trino, Cristo subindo ao céu e descendo de novo de lá, para julgar os homens ressuscitados, são afirmações desprovidas de senso. Podem-se pronunciar palavras que não tenham senso, mas é impossível acreditar no que não tem senso (...) Os antigos que estabeleceram estes dogmas podiam crer neles, mas isso já é impossível para vós (...). E termina assim o capítulo, em conclusão de uma história que narrou: «O padre Didon afirma que crê em Deus, nas ascensão de Cristo, e o aldeão diz que não acredita em Deus, porque não cumpre a sua vontade./ É claro que o padre Didon não sabe mesmo o que é a fé ["relação para com Deus que define o sentido de toda a sua vida e guia todos os seus actos conscientes"] e declara apenas o que crê; e o aldeão sabe o que é a fé, e se bem que diga que não crê em Deus ["proferindo injúrias, não dando aos mendigos, invejando os outros, comendo e bebendo demasiadamente, como é que eu viveria assim. se acreditasse em Deus?"], crê realmente nele, no próprio sentido do que é a verdadeira fé.»
No 9º capítulo, Tolstoi interpela fortemente os sacerdotes ou religiosos cristãos a consciencializarem-se do mal que fazem ao ensinarem a crianças e gente pouco instruída as proposições e crenças irracionais nas quais eles próprios não acreditam senão por hábito cego:«Não acreditais na divindade dessas escrituras que dizeis sagradas. Não acreditais em todos os horrores, em todos os milagres do Antigo Testamento. Não acreditais no Inferno, na Imaculada Conceição, na Ressurreição, na Ascensão de Cristo; não acreditais na ressurreição dos mortos, na Trindade de Deus...». E ainda por cima «inspirando-lhes a vossa fé particular, fazeis precisamente o que não quereis fazer; privais homens da união com toda a humanidade, acabais por encerrá-los no quadro estreito da vossa exclusiva confissão e assim os colocais numa situação, senão hostil, pelo menos estranha aos outros homens»... E assim em vez de libertarem-se e ajudarem os outros a libertarem-se, envolvem-nos em enganos, confusões, interpondo-se entre a verdade divina e os seres humanos.
No 10º e último capítulo, Tolstoi pergunta o que sucederia se as pessoas deixassem de acreditar na doutrina da Igreja, e responde:«sucederia que a lenda hebraica, bem como o saber religioso do mundo inteiro se lhes tornaria acessível. Sucederia que as pessoas se desenvolveriam com ideias e sentimentos não pervertidos.»
E como é grande a responsabilidade de se querer determinar com mentiras o alimento espiritual dos outros, Tolstoi convida os religiosos a saírem corajosamente da Igreja, e confessa que é evidente que a deserção dos melhores homens da classe eclesiástica trará consigo a depreciação da Igreja que, ficando entregue a mãos grosseiras e imorais, se decomporá cada vez mais e deixará ver a sua mentira e a sua acção nefasta. Mas não será pior, porque a depreciação da Igreja, que mesmo agora se produz, é para o povo um meio de se libertar da mentira em que se encontra».
E termina o seu tão vigoroso e desafiante apelo aos membros do Clero, alentando-os a libertarem-se das alienações religiosas e a ligarem-se mais ao coração e ao Amor e Verdade, para Tolstoi a essência da vera Religião a ser vivida fraterna e não violentamente: «Que Deus vos auxilie; Ele é que vê os vossos corações»...
Que mereçamos então por uma vida não-violenta, sábia e de aspiração à religação espiritual e divina, merecer que Deus se manifeste mais nos nossos corações e mentes, com os seus raios benignos que todos os que oram e meditam se abrindo a Ele-Ela recebem...
2 comentários:
maravilhoso!
Muitas graças pela sua sensibilidade e apreciação, Paula. Boas inspirações e realizações!
Enviar um comentário