segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

"O Meu Testamento", de Tolstoi. Lido e comentado por Pedro Teixeira da Mota.

      Transcrição do valioso texto de Tolstoi O Meu Testamento, tendo como base a tradução de Barros Lobo publicada em Lisboa no começo do séc. XX. A obra donde extraímos este texto e último capítulo, Últimas Palavras, foi redigida por Tolstoi dois anos antes de se libertar da Terra, a 20 de Novembro de 1910. Para além do texto, encontrará no fim um vídeo com a gravação da leitura da obra, com breve comentário.
Nascido em 1828, romancista de grande sucesso, embora sempre com preocupações morais, será só em 1870 que Tolstoi inicia a fase de maior investigação na educação e religião, e é já em 1881, face às desesperadas situações humanas presenciadas e tentadas transmutar, que se sente ressuscitar espiritualmente, passando a dedicar a maior parte do seu tempo a uma batalha pela abolição da pena de morte, pela não-violência,  pelo  bem, o amor, a solidariedade, a igualdade, o esclarecimento religioso e espiritual, por vezes com uma simplicidade algo extrema, outras com grande profundidade e universalidade, mas sempre com grande força e sinceridade.  
Após termos feito a transcrição (levemente comentada) de O meu Testamento, gravamos em vídeo a sua leitura, também brevemente comentada, e brevemente será adicionada a este texto. Oiçamo-lo: 
«Não há tempo a perder. Quem andou, não tem para andar. Inútil hesitar e reflectir mais tempo sobre o que tenho a dizer. A morte não espera. A minha existência vai já no declínio, e a cada instante se pode extinguir. Se ainda posso prestar algum serviço à Humanidade, se posso fazer perdoar os meus pecados-erros e a minha vida ociosa e sensual, é dizendo aos homens, meus irmão, o que me foi dado compreender mais nitidamente que eles; - o que me tortura e oprime o coração há muitos anos.
Todos os seres humanos sabem, como eu, que a nossa vida não é o que deveria ser, e que nós nos tornamos mutuamente desventurados.   
[Comentário: A moderna relativização ou mesmo desvalorização dos fins últimos da Vida tem tornado menos sensível esta aguda auto-consciência ética de Tolstoi. "O dever ser" da moral, o "imperativo ético" da filosofia estão submergidos por um aluvião de informações e contra-informações, de tal modo que o que é o bem e o que é o mal, já ninguém pode garantir com certezas grandes. De tal, entre nós, por exemplo, Fernando Pessoa, se lamentava no último poema da Mensagem. Depreende-se todavia que Tolstoi está caracterizar o mal e a condená-lo na  forma de egoísmo, instintividade desregrada, violência e até já nos nacionalismos e imperialismos.]
 
Sabemos que para ser felizes e fazer felizes os outros, é preciso amarmos o próximo como a nós mesmos; e se nos é impossível fazer-lhe o que quereríamos que ele nos fizesse, pelo menos não lhe fazer o que não quereríamos que nos fizessem.
É isto que ensinam as religiões de todos os povos, e a razão e a consciência ordenam.
A morte do invólucro corporal que a todo o instante nos ameaça, recorda-nos o carácter efémero de todos os nossos actos; de modo que a única coisa que nós podemos fazer e que pode conquistar-nos a felicidade e a serenidade, é obedecer continuamente, eternamente, ao que nos determinam a razão e a consciência, se não cremos na Revelação; ou no ensino de Cristo, se nele cremos.

 
[Comentário meu: Parece estarmos a ouvir Antero de Quental, também ele altamente valorizador da prática de escutarmos a voz da Consciência e segui-la.]
 
Por outras palavras: se não podemos fazer ao próximo o que quereríamos que nos fizessem, pelo menos não lhe façamos o que não desejamos para nós.
Posto que todos nós há muito tempo conheçamos esta verdade, os homens matam, roubam, violentam: pelo que em vez de viverem alegres, em tranquilidade e amor, sofrem, afligem-se, não experimentam senão medo ou ódio uns pelos outros. Por toda a parte, na Terra, os seres humanos procuram dissimular-se a sua vida insensata, esquecer e abafar o seu sofrimento, sem poderem atingir esse resultado. Assim, o número de pessoas que perdem a razão, e se suicidam, aumenta de ano para ano, porque está acima das suas forças suportar uma vida contrária à natureza da vida humana.
 
[Comentário: Certos Estados, grupos e ideologias da civilização moderna tem tentado sujeitar o ser humano a dramáticos e opressivos modos de vida, de tal modo que frequentemente as pessoas farão tudo o que delas querem apenas para ganhar dinheiro, sobreviver, pouco ligando a imperativos éticos e a modos de vida humanos, naturais e conviviais ou ainda à missão espiritual de auto-conhecimento e aperfeiçoamento.]
 
Mas dir-se-á, talvez seja necessário a vida ser assim; - necessária a existência de imperadores, reis, governos, parlamentos, que comandam milhões de soldados providos de espingardas e canhões, a todo instante prontos para se atirarem uns aos outros; - necessárias as fábricas e oficinas, que produzem objectos inúteis e perigosos, em que milhões de homens, mulheres e crianças são transformados em máquinas, penando 10, 12 e 15 horas por dia;necessária a despovoação crescente das aldeias e a acumulação progressiva das cidades com suas tabernas, seus albergues nocturnos, seus asilos para crianças e seus hospitais; - necessária a prisão de centenas de milhares de homens. Talvez seja necessário que os casamentos diminuam cada vez mais, que a prostituição e os abortos aumentem de dia para dia, e que os homens se dêem cada vez mais ao deboche.
 
[Comentário meu: A clarividência ou visão futurante de Tolstoi não errou, antes se tem 
plenamente confirmado nos nossos dias.]
Talvez seja necessário que a doutrina de Cristo, ensinando a concórdia, o perdão das ofensas, o amor do próximo e dos inimigos, seja inculcada aos homens por sacerdotes de seitas inumeráveis em lutas contínuas, e isto sob a forma de fábulas entupidas e imorais, a respeito da criação do mundo e do homem, do seu castigo e da sua redenção por Cristo, e sobre tal ou tal rito, tal ou tal sacramento.
Talvez este estado de coisas seja natural ao homem, como próprio é às formigas e às abelhas, viverem nos seus formigueiros e nos seus cortiços em lutas contínuas e sem outro ideal.
Talvez esta seja a lei dos homens, enquanto que o chamamento da razão e da consciência para uma outra vida afectuosa e feliz não passará dum sonho, e que se não possa, enfim, imaginar como a de hoje.
É assim, que falam certos pre-opinantes...
 
[Comentário: Tolstoi critica com muita justeza muitos dos dogmas e costumes religiosos, sobretudo os que derivam do Cristianismo. E fá-lo de novo com muita clarividência futurante, pois que melhor confirmação das suas palavras haverá que os milhões de seitas e igrejas ditas cristãs, cheias de contradições e alienações?]
 
Mas o coração humano não quer crer em tal: está sempre em revolta contra a mentira, e tem sempre, sempre, convidado os seres humanos a deixarem-se guiar pela razão e a consciência. E em nossos dias faz esse apelo com mais instância que nunca.
Nós não existimos durante séculos, durante milhares de anos, uma eternidade; depois eis-nos na Terra vivendo, pensando, amando, gozando a vida.
Ora nós podemos viver até aos setenta anos, - se, aliás, chegamos a essa idade, porque podemos não viver mais que alguns dias, algumas horas - em pesares e ódios, ou em alegrias e amor; e podemos viver com a consciência de mal-fazer, ou então de cumprir, imperfeitamente que seja, o que podemos julgar ser o nosso dever. 
- «Tende mão em vós! ... Fugi à tentação!» - bradava aos homens João Baptista.
 - «Fugi à tentação!» - dizia a voz de Deus pela voz da consciência e da razão.
Antes de tudo, detenhamo-nos a meio de cada uma das nossas ocupações, de cada um dos nossos prazeres, e perguntemo-nos: - Estamos a realizar o que devemos, ou desbaratamos inutilmente a nossa vida, - esta vida que nos foi dado passar entre duas eternidades de nada?
Eu sei muito bem que, devido ao incitamento dos homens, nos parece impossível parar para reflectir um instante. (...)»
 
[Comentário: Tolstoi, na linha de Antero de Quental, seu irmão em muitos aspectos, apela a que escutemos, consultemos, demandemos mais a voz da Consciência e da Razão (ou Logos) para que não caiamos em superficialidade, inutilidades, esbanjamento de energias e capacidades. Que saibamos parar o pensamento corriqueiro, a correria das actividades e meditemos se estamos verdadeiramente a realizar o que de melhor podemos e devemos fazer, enquanto estamos vivos e activos.]
 
Uns dizem-nos: - «Basta de reflexões! Actos é que se querem!»
Outros afirmam: - «A gente não deve pensar em si, nos seus desejos, quando a obra ao serviço da qual nos achamos é a da nossa família, a da arte, ciência, comércio, sociedade, - tudo pelo interesse geral.»
Sustentam outros: - «Tudo foi pensado e ponderado desde há muito tempo. Ninguém achou melhor. Tratemos de nós e acabou-se».
Por fim, outros ainda, pretendem: - «Reflectir ou não é reflectir, é tudo o mesmo. Vive-se, depois morre-se. O melhor é portanto viver gozando. Quando uma pessoa se põe a reflectir demasiado, pode chegar à conclusão de que a vida é pior que a morte, e mata-se. Por conseguinte, tréguas às reflexões! Viva cada um como poder!»
Não escuteis esta vozes: a todo este arrazoado respondei simplesmente:
«Atrás de mim vejo a eternidade durante a qual eu não existia; adiante, sinto a mesma noite infinita em que a morte a todo o instante me pode tragar: actualmente vivo e posso, - sei que posso! - fechando voluntariamente os olhos, cair numa existência cheia de misérias: mas sei que abrindo-os para olhar à volta de mim, posso escolher a melhor e a mais feliz. De sorte que, digam o que disserem as vozes, quaisquer que sejam as seduções que me atraiam, por muito tomado que eu esteja pela obra que tenho em mão, e agitado pela vida que me cerca, eu paro, examino e reflicto».
Eis o que tinha a dizer aos meus semelhantes antes de regressar ao infinito.

[Comentário: Neste final do seu testamento Tolstoi não deu grandes sinais de uma religiosidade ou espiritualidade mais clássica, pois não afirma  claramente nem a imortalidade espiritual nem a existência de Deus. Regressa ao infinito, mas quem e como, tanto mais que afirmara antes não ter existido?
Tolstoi preferiu, certamente com bastante humildade, concentrar o seu testamento  no apelo a vencermos todas as vozes de mediania, sujeição e desânimo e trilharmos perseverantemente  o caminho da lucidez, do auto-conhecimento, da meditação, do bem, da primazia de uma vida ética, universal.]
  Segue-se a leitura do texto, em 23 minutos, com outros comentários:
                      

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