domingo, 5 de agosto de 2018

Uma biografia de Johann Strauss por Higino da Costa Paulino, na "Gazeta Musical" de Abril de 1885.

    Johann Strauss, breve texto biográfico na Gazeta Musical, Jornal Illustrado Theatros, Musica e Bellas Artes, 1885, por Higino da Costa Paulino.
«Se a popularidade é uma das grandes bases para se atingir o imortal, Strauss tem, sem dúvida, nesse vantajoso elemento, a força bastante para que o seu nome floresça eternamente, circundado de grinaldas imurchecíveis, onde, por entre as rosas brancas e aframadas [avermelhadas] que lhe inundaram o túmulo, a palavra Saudade reflorirá a cada momento, sempre luminosa, qual estrela fulgurante, reflectida por milhares de corações, que a meio do Beau Danube Bleu, do Aimer, boire et chanter suspiram eflúvios de ternura, de êxtase, de paixão, que se convertem em homenagem imorredoira ao talentoso maestrino.
Para nós, Johann Strauss, não representa somente uma originalidade como músico, é um casamenteiro sem igual! O prestígio dele ascende, nesta segunda acepção, a regiões superiores às do taumaturgo português [S. António], e cremos bem que às do padroeiro de Amarante [S. Gonçalo]. No giro de uma das suas valsas, quando a musica vibra entusiástica e ardente, quando desliza mórbida e sonhadora, quando os braços se enleiam, os olhares se encontram, as frontes se tocam, e os corpos se apertam, quantos prelúdios amorosos se não entoam, quantos protestos loucos se não trocam, quantos contactos sagrados se não firmam!
Strauss é um propagador do matrimónio, e quando a sua inteligência deixar de produzir, a humanidade sentirá inquestionavelmente a ausência desse hercúleo sustentáculo da escola romântica, mais forte, mais invencível, mais invulnerável que os próprios Flaubert, Zola, Droz ou Daudet. Les Joies de la vie, bastam para destruir as impressões colhidas, durante horas de leitura, na Bovary [Madame Bovary, de Gustave Flaubert], na Raquin [Therese Raquin, de Emile Zola], no Nababo [de Alphonse Daudet] e no Monsieur, Madame e Bebé [de Gustave Droz]! 
Depois do realismo cru e positivo dos grandes reformadores da literatura exiba-se uma valsa de Strauss, alegre e fascinante, ver-se-á a transformação repentina que se opera! O idílio fulge no seu máximo esplendor, e não há a combatê-lo, quando a sedução pouco a pouco se infiltra no coração daqueles que se deixam arrastar pelos gorjeios dessa sereia que se chama valsa, pelo estilo desse cupido que se chama Strauss!
Se um dia a realidade volver a condenar o excesso de frases trocadas nesses momentos em que a loucura suplanta a sensatez, se ela vos exprobar, caros leitores, a precipitação com que fizestes a vossa escolha, num instante de alucinação, aplicai-lhe o Feu devorant, ou as Fantasies de poëte, e vereis como os tempos de outrora volverão a subjugar a incompatibilidade dos génios, a atenuar as deficiências da ménage.
Johann Strauss concentra no seu espírito toda a fortaleza dessa ciência musical que fez do seu pai um maestro distinto, e que preparou os seus irmãos José e Eduardo para os grandes triunfos alcançados em Viena. Johann foi mais longe do que eles, e se a Alemanha, a Rússia, a França e a Inglaterra conhecem pessoalmente o inspirado maestrino, o mundo inteiro o aplaude, porque as suas composições, são por todas ouvidas com um entusiasmo febril, como se uma alma nova, despreocupada, risonha, se infundisse nos corpos de todos que se embalam aos sons festivos e atraentes dessas músicas únicas na sedução!
Era para o comércio que o papá Strauss destinava o seu primogénito, mas a sua esposa, que reconhecia as tendências artísticas do pequeno, opôs-se tenazmente, e, não faltamos à verdade se dissermos que a primeira produção do Johann lhe custou alguns castigos bem severos, e até poucos animadores da parte do progenitor. Isto porém não lhe destruiu a vocação, e tanto assim, que devido aos conselhos do eminente Drexler professor de harmonia e regente de música sacra, que reagiu contra a opinião do pai, favorecendo as pretensões do pobre do rapaz, de maneira tal que aos 19 anos, em 1844, depois de alguns concertos públicos em que tomou parte, depois de haver recebido numerosos aplausos como compositor, debutava como regente dessa orquestra, que durante quinze anos se conservou debaixo da sua direcção, conquistando desde logo a fama invejável que desde então enflora o seu nome. Chanson d'amour, Ver luisant, e Sons de Rhadamante foram as primeiras valsas que revelaram o gosto exquis do estimado autor vienense.
Hoje sobem a mais de 400 as composições de Johan Strauss, e nem uma deixa de ser notável, apreciada, original e encantadora. Quatro editores ainda existem em Viena, que enriqueceram com as populares produções deste maestro, e se de começo não tivesse prosseguido na tentativa da música deste género, sua especialidade, a fortuna não lhe sorriria tão lisongeiramente. Como sorriu e sorrirá por longo tempo.
Casando em 1863 com a cantora Jelly Treffz, de quem enviuvou, Strauss cedeu a direcção da sua orquestra a seu irmão Eduardo e, retirando-se à vida particular, raras vezes aparece em algum concerto, não deixando contudo de se aplicar a novas composições.
É notável que sendo músicos todos os três irmãos, não exista paridade alguma na escola que cada um professa.
Johann Strauss, que nasceu em Viena aos 25 de Outubro de 1825, só encontra inspiração para esses trechos de baile, para tudo quanto denuncie alegria, vertigem e voluptuosidade.
José Strauss, já falecido, nasceu na mesma cidade aos 20 de Agosto de 1827. Na sua imaginação só havia lugar para o estilo melancólico, apaixonado, lacrimoso. Les Hirondelles du Village, bem confirmam esta verdade.
Edurado Strauss, que nasceu aos 15 de Março de 1835, bem pouco iguala a inteligência dos seus irmãos, entretanto o seu amor pela música inclina-se mais para o género clássico.
Hanslick, o célebre crítico musical alemão, assevera que se deve a Johann Strauss, e a ele só, o grande desenvolvimento moderno da walsa, que prometia finar-se nas antigas e acanhadas formas de que dispunha. Diz mais que o Danube bleu tomou as proporções de um canto nacional. Que todos entoam à maneira de um hino patriótico! É a Marselheza dos vienenses.
Entre as composições de Johann Strauss, com quanto todas sejam notáveis, as que mais célebres se têm tornado, e que recomendamos às nossas leitoras, são:
Valsas: - Le beau Danube bleu, Chanson d'amour, Ver luisant, Sons de Rhadamante, Les Feuilles du matin, La vie d'artiste, Les bonbons de Vienne, Les joyeux etudiants, L'echo des montagnes, Le Telegramme, La Renommée, Les mille et une nuit, Les joies de la vie, Legendes de la forêt, Le sang viennois, Les bals de la cour, Les Fueilles volantes, Bella Italia, Les Contes de fée, Aimar, Boire et chanter, Souvenirs de Convent garden, Sur les montagnes, Vienne nouveau.
Polkas: - Message de Pierrot, Hommage à Vienne, Madgyares, Fantasie de Poëte, Feu devorant, Sympathie, L'Eletrique, Polka des masques, Polka des echarpes, Express-polka.
Polkas-mazurkas: - Hommages aux dammes, Plaisanterie, Ville et campagne.
Quadrilhas: - Bal champêtre, Mascarade, sans souci, Slovianska, e ainda outra sobre motivos franceses.
Marchas: - Marche persanne (https://www.youtube.com/watch?v=33hbO3OEOSQ), Marche egypcienne, Marche russe, Fraternisation, Fête polonaise.
Operetas: - Femmes joyeuses, Reine Indigo, Carnavalle de Rome, Chauve souris, Cagliostro, Mathusalem, Reveillon, Collin Maillard e Orgie, todas cantadas com entusiasmo em Viena, Berlim, Berlim Paris, Londres, Hamburgo, Bruxelas e Amárica. O Barão Zingaro é a última produção do talento de Strauss e que breve vai ser sancionada pelo aplauso do público.»
Gino 
Assim escreveu, com toda a sua riqueza de vocabulário e estilo, Higino da Costa Paulino para o número 5º do 2º Ano da Gazeta Musical, da qual era o Director Literário, dado à luz na Quarta-feira 30 de Abril de 1885,  acompanhada do desenho de Strauss da autoria de Columbano Bordalo Pinheiro e já inserto no texto. 
 Gazeta Musical que se publicou durante dois anos, tendo como directora musical a sua amiga e notável artista Joséfine Amann, sendo a redacção e administração bem no centro de Lisboa, no Largo do Loreto nº 1, e tendo como sucursais em Lisboa Lambertini & Irmão, e E. Amann, e agências no Porto, a de Pastor & Cª e no Rio de Janeiro, a de Laemmert & C.ª. 
Higino e sua filha Helena, minha avó materna, em Goa.
São de destacar na biografia a originalidade das comparações de Strauss, mais casamenteiro que S. António e que S. Gonçalo de Amarante, ou ainda o emprego por Higino de expressões hoje muito olvidadas na banalização massificada crescente da linguagem, tal como o primeiro parágrafo  contém, gerando imagens e sentimentos interiores bem fortes e espirituais:
«Se a popularidade é uma das grandes bases para se atingir o imortal, Strauss tem, sem dúvida, nesse vantajoso elemento, a força bastante para que o seu nome floresça eternamente, circundado de grinaldas imurchecíveis, onde, por entre as rosas brancas e aframadas que lhe inundaram o túmulo, a palavra Saudade reflorirá a cada momento, sempre luminosa, qual estrela fulgurante, reflectida por milhares de corações, que a meio do Beau Danube Bleu, do Aimer, boire et chanter suspiram eflúvios de ternura, de êxtase, de paixão, que se convertem em homenagem imorredoira ao talentoso maestrino.»
  Ainda mais uns 14 anos o maestrino viveu, nesta altura já  com a sua terceira e última mulher Adele Deutch e gerando cerca de uma centena de obras, morrendo de uma pleuro-pneumonia aos 73 anos...
Da sua vida sentimental talvez se possa acrescentar que, seis semanas depois de ter morrido a  Henrietta Treffz em 1878, referida por Higino,  casou com a atriz Angelika Dittrich. Infelizmente não se conseguiram dar bem. O divórcio não tendo sido concedido  pela Igreja Católica Romana, obrigou-o a mudar de religião e nacionalidade, e  a tornar-se um cidadão de Saxe-Coburg-Gotha, em Janeiro de 1887, casando-se pela terceira vez em Agosto de 1887, finalmente com alguém com muitas afinidades,  Adele Deutsch, uma musa que o acompanhou e inspirou poderosamente para algumas das melhores obras finais. De destacar ainda as várias obras cinematográficas consagradas a Johann Strauss ou à família Strauss.
 As suas obras continuam a ser muito tocadas e apreciadas, e mesmo as valsas, sobretudo na Europa Central e na Áustria, não definharam como danças. A diversidade etno-musical da Humanidade é realmente de uma vitalidade prodigiosa e sem dúvida Strauss é de uma enorme alegria dinâmica...

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