domingo, 13 de junho de 2021

A demanda da Palavra ou Verbo de Deus, num pouco conhecido poema de Fernando Pessoa. 13-VI-2021

São muitos os textos e os poemas (e algumas cartas, nomeadamente a Casais Monteiro)  em que Fernando Pessoa partilha a sua busca interior e espiritual e a partir de dado momento em termos de gnóstico cristão, e onde, embora criticando a Igreja de Roma, se confessa contudo Cristão e da Igreja Católica ou Universal.
Entre os poemas mais significativos desta linha, alguns dos quais publiquei nas obras Rosea Cruz e Poesia Profética, Mágica e Espiritual, destacam-se alguns, tais como   No Túmulo de Cristian Rosenkretuz, Eros e Psique, Iniciação, Ieoshua Ben Pandira. Mas um muito pouco conhecido mas nos conhecimentos ocultistas e doutrinários
muito semelhante na mensagem aos já referidos é o que vamos transcrever e podemos mesmo considerá-lo como um dos mais belos, pungentes e profundos poemas de Fernando Pessoa no qual o próprio enfraquecimento do seu forte cérebro e  pensamento é confessado, face à experiência crescente dolorosa de que o mal impera e que o bem é apenas um odor ou incenso suave que perpassa ou suaviza a vida. E resolvemos então contextualizá-lo um pouco e oferecê-lo às almas leitoras amigas do tão criativo poeta neste seu dia de aniversário de 2021...

O seu coração sente-o  estéril, oprimido por tanta notícia violência e injustiça, interroga-se se tudo é vão, seja no querer seja no chorar, e o eco do poema último da Mensagem, Nevoeiro, perpassa no nosso ouvido interior. A visão gnóstica de um demiurgo menor, ou seja um criador limitado ou executor, e a descida do ser humano ao mundo material é traçada e como ele perdeu a ligação com a sua essência espiritual e a Divindade ou Bem. Por fim, a solução ou salvação ou iluminação desponta. Oiçamo-lo então:
«Sangra-me o coração. Tudo que penso
A emoção mo tomou. Sofro esta mágoa
Que é o mundo imoral, regrado e imenso,
No qual o bem é só como um incenso
Que cerca a vida, como a terra a água.
Todos os dias, oiça ou veja, dão
Misérias, males, injustiças — quanto
Pode afligir o estéril coração.
E todo anseio pelo bem é vão,
E a vontade tão vã como é o pranto.
Que Deus duplo nos pôs na alma sensível
Ao mesmo tempo os dons de conhecer
Que o mal é a norma, o natural possível,
E de querer o bem, inútil nível,
Que nunca assenta regular no ser?
Com que fria esquadria e vão compasso
Que invisível Geómetra regrou
As marés deste mar de mau sargaço —
O mundo fluido, com seu tempo e espaço,
Que ele mesmo não sabe quem criou?
Mas, seja como for, nesta descida
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;
E o Bem, justiça espiritual da vida,
É perdida palavra, substituída
Por bens obscuros, fórmulas do acaso.
Que plano extinto, antes de conseguido,
Ficou só mundo, norma e desmazelo?
Mundo imperfeito, porque foi erguido?
Como acabá-lo, templo inconcluído,
Se nos falta o segredo com que erguê-lo?
O mundo é Deus que é morto, e a alma aquele
Que, esse Deus exumado, reflectiu
A morte e a exumação que houveram dele.
Mas está perdido o selo com que sele
Seu pacto com o vivo que caiu.
Por isso, em sombra e natural desgraça,
Tem que buscar aquilo que perdeu —
Não ela, mas a morte que a repassa,
E vem achar no Verbo a fé e a graça —
A nova vida do que já morreu.
Porque o Verbo é quem Deus era primeiro,
Antes que a morte, que o tornou o mundo,
Corrompesse de mal o mundo inteiro:
E assim no Verbo, que é o Deus terceiro,
A alma volve ao Bem que é o seu fundo.»

Este poema é muito belo e profundo, e como a maioria dos poemas espirituais de Fernando Pessoa não teve ainda os seus comentadores habilitados e sensíveis. Um pequeno contributo darei, e assinalarei nos primeiros quintetos a utilização da simbologia maçónica, seja da Divindade, como o Geómetra, o grande Arquitecto do Universo seja dos seus instrumentos, tal o nível ou a régua que em alguns textos inéditos ou pouco conhecidos Fernando Pessoa explicará.

Após os lamentos, o misere inicial, Fernando Pessoa interna-se numa revisitação da visão gnóstica do mundo, da queda e como ficamos privados do estado primordial, paradisíaco ou da comunhão com o Bem, o Mestre, o Espírito e como podemos aproximar-nos dele pela  Verdade e o Belo, e nesse sentido um dos melhores meios de recuperarmos tal estado é cultivarmos tais qualidades. 
A tradição templária, a rosacruz e a maçónica afloram na demanda da Luz e da reconstrução da ligação ao, ou mesmo construção, do Templo espiritual. Aliás Fernando Pessoa tem dezenas de textos ocultistas e espirituais que glosam o que sepulta, tapa ou mata o Mestre, Palavra,  Verbo ou o Bem em nós, um dos veios mais bebidos pela sua musa ocultista, sendo tal ungido ser ou nível o vencedor dos três inimigos da alma, tipificados em geral como o  mundo, a carne e o diabo, ou seja os desejos dos outros, de si ou de mais que si....
  
Assim talvez o mais significativo e desafiante registado no poema seja a busca da Palavra ou Verbo, do Bem, ou seja, da nossa capacidade pelo Verbo, pelo Logos, pela comunhão com o Plano e a Inteligência divina, reassumirmos a nossa comunhão e dimensão espiritual e logo religação divina...
Certamente importante e misterioso é quem é o Ser ou a Palavra ou a doutrina-prática, que religa ao Divino, ou seja quem é que Fernando Pessoa via e considerava ser o Verbo, o Mestre, o laço entre a humanidade  e a Divindade...
Se formos para uma visão cristã normal o Verbo é Jesus Cristo e então poderíamos dizer que Fernando Pessoa apesar das suas críticas fortes à Igreja de Roma ou aos meios católicos conservadores dos jornais que o atacaram aquando da polémica do Projecto da proibição das Associações Secretas, continuava um cristão, ou tornara-se um cristão, algo que os  adeptos do Pessoa mistificador, fingidor ou que seja pagão não gostam muito de admitir e pensar. Mas talvez seja esta a verdade. Aliás confirmada por alguns textos e sobretudo pelo seu final selo de autenticação que é a sua nota biográfica de 30 de Março de 1935, sem dúvida o seu  testamento, ainda que certamente o que se passou evolutivamente na sua alma até ao seu último pensamento e momento na Terra seja um mistério, tal como era para ele próprio, astrólogo de tantos milhares de horas e horóscopos, ao confessar umas horas antes de morrer: I don't know what tomorrow will bring. 
 
Saibamos então concluir o templo da nossa alma talhando o corpo espiritual pelo Bem e pelo Mestre, pela palavra e a acção justa e verdadeira, de modo a que a Divindade ressuscite mais em nós, na Humanidade, e em Fernando Pessoa....

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