quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Orar às portas, ou pensar, dizer ou escrever nas portas e paredes dos corações, quartos, casas e monumentos.

Orar às portas é uma expressão duma prática já pouco realizada, e que consiste em estar mais consciente das passagens, transições, fronteiras, divisões, entradas e saídas, e sacralizá-las por orações pensadas, sentidas, pronunciadas, escritas.
As que foram apenas pensadas ficaram só para os seus autores e p
ara o ambiente e portas, com uma maior ou menor durabilidade vibratória, mas em geral, se não forem muito fortemente e duradoramente pensadas, os efeito são efémeros.
Mas quando são pronunciadas, e por vezes ouvidas, aí os efeitos podem atingir uma certa perenidade: uma alma que ouviu alguém orar de coração, e com aspiração, força, pode acolher essas vibrações e palavras, e leva-las consigo pela eternidade.
As orações pronunciadas por alguns grandes seres, mestres ou seres que sabiam mesmo orar, atingiram níveis intrínsecos elevados e os seus efeitos  perpetuam-se tantos nos que as ouviram como nos que as pronunciam ou ouvem ainda hoje, sobretudo com atenção e devoção
As portas, portais e portões onde foram emitidas tais orações ou jaculatórias reverberaram e os ecos ainda hoje poderão ser avistados ou ouvidos pelos mais clarividentes
"Bem vindo, o que vem por bem". "Que as bênçãos divinas ou deste ou daquele mestre, estejam nesta casa", são das mais conhecidas orações às portas e que foram pronunciadas por muitas almas, criando por vezes auras luminosas nas portas e casas, ou quem passava sobre elas.
Finalmente há o orar nas portas, em que além da súbita energia espiritual, ou da simples gratidão, que move a alma em pensamento e sentimentos de ligação divina, ou de irradiação espiritual (expressa ou não na voz), em que se escreve, insculpe, grava, seja com o silex, o escopro ou o prego na pedra da gruta, do muro ou da soleira da porta, seja com o lápis ou a tinta na porta de madeira, na parede de cal ou no papel, ficando assim perenizadas essas jaculatórias da alma, que enriquecem a porta, a casa, o ambiente, a ligação entre a humanidade e a divindade, ou a harmonia, protecção e comunhão entre almas no vasto Campo unificado de energia consciência, outrora chamado corpo místico da Humanidade ou da Igreja.
Inserindo-me eu na tradição espiritual perene da Humanidade também fui gravando tais mensagens orações em portas e paredes, ao longo dos anos, por vezes vendo em algumas a passagem do tempo diminuir a sua inteligibilidade, como se a força que a pronunciara já tivesse tido o seu ciclo de vida. Outras perduram, mesmo que já me tenha esquecido que raspara uma cruz ou um pentagrama, algures num castelo, torre ou templo, ou que depositara uma pedra nos moleiros dos caminhos de peregrinação.
As portas nossas, aquelas que cruzamos com mais frequência, essas estão sempre a reverberar com as nossas orações e, se por acaso, conservamos alguma dessas jaculatórias de cor, e a repetimos, então a cor e vibração renova-se, e ao passarmos por, ou ao vermos tal porta, recebemos inspirações, geram-se harmonizações e intensificamos irradiações.
Assim decidi partilhar uma das portas oradas, fotografando-a não no seu todo, mas apenas em partes, pois com a letra pequena delas será a forma de leitura mais fácil, proporcionando portanto um melhor aproveitamento de ideias e forças espirituais que nelas foram postas ou ainda palpitam.
Boas leituras, boas orações, e comece também orar às portas da vila, da cidade, da aldeia, da igreja, de sua casa, de seus quartos, seja mentalmente, seja pronunciando-as, seja escrevendo-as, e ganhará a sua alma, as das pessoas afins e o ambiente geral.

                                   

[Artigo em laboração]: brevemente, decifrarei algumas das jaculatórias, ou setas de amor inscritas na porta
Om, une o teu espírito à tua alma neste teu corpo, aqui e agora e dá graças a Deus, abrindo-te a Ele. ------     Contemplar é saber orientar a energia psíquica para os mundos espirituais e divinos e com eles comungar, e assim tornar-nos um templo no Templo.

The books are always calling us to be creative: to read them and write new ones.   -----  Que o Poder das Árvores te encha sempre. -  We know so little about the symbols and the effect of their images and laguage, but for sure: we should be living in a constant invocation of the invisible spiritual realm and their subtle beings, qualities, energies...



Deus, tu que és o cento íntimo de mim, manifesta-Te mais, e torna-me um criador divinizante.

Deus, our heart glowing our true being, the radiance of the Spirit, the cry of freedom, the aspiration to Thee...




Desafios à véspera de conferência importante sobre o Espírito Santo, o espírito em nós,

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Marcos Algarve: Antero de Quental, tolstoiano, e a transição do Romantismo para o Naturalismo. Nos "Mistérios da Praia de Rocha", 1926.

                                               Marcos-algarvefoto.JPG
Marcos Algarve é hoje um escritor quase esquecido embora tenha deixado uma obra valiosa. De seu nome  Francisco Marques da Luz  nasceu em Olhão, a 7 de Outubro de 1875 e viveu até 8 de Setembro de 1960, Sintra, e destacou-se como jornalista, escritor e político, tendo sido sempre republicano e  chegando mesmo a Presidente da Câmara de Portimão.

Na sua bibliografia encontramos  Canções d' alguém,1903; Entre um berço e um túmulo:desgraça íntima,1904;  Amor à Francesa, 1924; Mistérios da Praia da Rocha, 1926 e Calvário Bendito,1935. 
Além da colaboração em jornais republicanos, tal  A Luta e O Mundo, onde se destacou no ataque a João Franco, por vezes com retumbante sucesso, e em jornais algarvios, editou O Xul e o Almanach do Algarve e colaborou na revista Alma Nova, publicada entre 1915 e 1930.

Ora Mistérios da Praia de Rocha, dado à luz em Famalicão, Tipografia Minerva, em 1926, in-4º de 331 páginas, numa edição  cuidada e bela, mostra bem a grande cultura e sensibilidade de Marcos Algarve, pois sob a forma dum livro de novelas e crónicas, ensaios e memórias, deparamos com boas caracterizações da vida literária e cultural portuguesa e seus agentes, desde o século XVI ao XX, referindo e abordando Antero Quental várias vezes.  A descrição da passagem do Romantismo para o Naturalismo e Realismo e a caracterização enaltecedora de Antero Quental destacam-se pela sua visão culta e sincera, instrutiva e valiosa. 
  Os doze capítulos servem para introduzir histórias, contos, dissertações,  ensaios, críticas, ocorridos sempre no ambiente da Praia da Rocha e da sua sociedade, beleza, vida, história. O I, intitulado Poetas, e em resposta a sua interrogação:«quanto poetas terão ficado extasiados na Praia da Rocha?», Marcos Algarve aprecia, dos cerca de vinte e cinco escritores e poetas que viveram ou estiveram na Rocha, - os com quem mais privou, descrevendo mais detalhadamente seus modos de ser e características literárias, tais Luís Botelho, Paulino de Oliveira, João Lúcio, Pedro Escarlate (este estudando-o por indicação de Bruno), Manuel da Silva Gaio e sobretudo Sampaio Bruno, com quem teve muito boas relações, dedicando-lhe algumas páginas. Há duas menções a Antero, e uma delas valiosa e que transparece bem a sua empatia com ele: «O assombroso Antero de Quental, o santo Antero da Bondade e da Revolta, não chegou a visitar Rocha, embora fosse num patacho algarvio em lugar de João de Deus, à América-do Norte [em 1867] com Joaquim de Almeida Negrão, capitão de navios, possuidor de vasta cultura e ao tempo paladino da filosofia de Augusto Comte», embora saibamos que de positivista Antero teve muito pouco, sendo mesmo criticado por alguns deles, tal Teófilo Braga
Há ainda outras menções a Antero com interesse nos capítulos seguintes, nomeadamente comparando-o com João de Deus, e onde Marcos trai um certo indiferentismo religioso, mas a maior emerge no capítulo final Serões da Rocha, que começa castiçamente assim: «Coimbra é o coração de Portugal - disse-o algures uma alma suspirosa de artista.
Coimbra, terra amada dos doutores e das tricanas, vive no espírito das gerações académicas com o seu intenso perfume de poesia e graça.
As gerações, que ali desbravaram a leiva mental da sua personalidade, conservam através das vicissitudes da existência uma grata recordação do tempo em que a mocidade só vê flores e sorrisos, mulheres e serenatas. (...).
Após esta abertura bela na página 209, e em traços largos referir alguns estudantes e personagens da história de Coimbra, entramos então, na 211 página, na transição: «Coimbra manteve durante séculos o monopólio do ensino universitário, cujas origens se esbatem na fundação da sua gloriosa escola superior, laboratório de humanidades onde se adestraram os melhores talentos da literatura e jurisprudência nacionais
Almeida Garret e Alexandre Herculano, regressados do exílio, foram os iniciadores do Romantismo em Portugal. A escola clássica envelhecera e os seus moldes artísticos definharam-se.
Da Alemanha soprava então a brisa fecundante duma nova arte, que a legião audaz de Novalis, Scheling, Schlegel, Tieck, Uhland e os irmãos Grimm desenvolveu bizarramente no vasto campo da Filosofia, da Estética, da Literatura e da História.
Com a cooperação analítica de Lessing e Wieland, esse renascimento literário encontrou a sua mais poderosa expressão em Goethe e Schiller.
Galgando as fronteiras germânicas, penetrou na Inglaterra, na Itália, na França, na Espanha e em Portugal.
Na poesia e na prosa, como na pintura e na música, a nova arte aliciou intérpretes duma sublimidade helénica ou duma grandeza romana.
De Henri Heine a Walter Scott, de Mazoni a Chateaubriand, de José Zorilla a Mendes Leal, que de teorias e sistemas, ideias e horizontes, emoções e ritmos modernos.
Os intelectuais de Coimbra fundaram então O Trovador, revista dirigida pelo fulgurante poeta João de Lemos e colaborada por Xavier Cordeiro, Costa Pereira, Couto Monteiro, Gonçalves Lima e José Freire de Serpa.
O Trovador foi o arauto da nova escola literária em que sobressaíram, além dos dois mestres que a estudaram no desterro, Soares de Passos, Xavier Novais, Pereira da Cunha, Tomás Ribeiro, Bulhão Pato e Gomes de Amorim.
O cego António Feliciano de Castilho, com a sua linguagem duma pureza e harmonia impecáveis, foi o guia vidente dessa mocidade sonhadora.
João de Lemos, poeta fogoso e escultural do Romantismo, legou-nos sentidas visões de amor e patriotismo no Cancioneiro, Canções da Tarde e Lua Londres.
Decorridos anos, o romantismo exauria-se na suas normas amaneiradas e sediças. O caruncho do tempo apressara-lhe os sintomas de tédio, de esterilidade, de fraqueza.
A escola romântica, igualmente como sucedera à escola clássica, estava contaminada, pelos anos e abusos, da gangrena senil.
Manuel Pinheiro Chagas, com a publicação do Poema da Mocidade, dera aso a que o mestre Castilho, sob a forma dum prefácio, estimulasse a reacção literária que, em surdina, já lavrava no espírito rebelde da academia coimbrã.
 Foi Antero do Quental, com o seu folheto Bom senso e bom gosto, [1865] quem iniciou a derrocada. Alma de iluminado temperamento, duma violência e duma sensibilidade tolstoianas, reuniu em volta da sua bandeira de guerra uma falange de proletários do pensamento.
Antero era um combatente indomável, sisudo e impulsivo, apaixonado e possante.

A polémica foi demorada, tumultuosa e remoçadora, e o Romantismo baqueou para dar lugar ao Naturalismo.
Na esteira de Antero, insuflados saudavelmente pelas modernas concepções da Arte e da Ciência, foram chegando Eça de Queirós, Guilherme Azevedo, Simões Dias, Alexandre da Conceição, Guilherme Braga, Cesário Verde, Macedo Papança, José Augusto Vieira, António Enes, Barros Lobos, Fialho de Almeida, Teixeira de Queirós e outros.
João de Deus, pela ternura da arte espontânea, não se ligou a nenhuma escola ou grupo.
Teófilo Braga, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Gomes Leal e Cândido Figueiredo também marcaram brilhantemente o seu auxílio ao Naturalismo.
Individualidades superiores, desempoeiradas e livres, seguiram mais tarde, na crítica, no romance, na história, na filosofia e na poesia, orientações diferentes.
E dessa manifesta supremacia intelectual, mantida até às proximidades de 1885, apareceu um dia A Folha, jornal de João Penha, o estranho parnasiano do Vinho e Fel.
Em um quarto da Couraça dos Apóstolos, na lendária Coimbra, viviam na sua intimidade Guerra Junqueiro e Gonçalves Crespo, formando os três estudantes de direito um esotérico triângulo de bardos, cáusticos e sentimentais, de qualidades antagónicas frequentes por vezes, mas sempre distintas. (...)»
E após desenvolver bastante a apreciação de Gonçalves Crespo, continuará a sua visão da história da literatura e sobretudo da poesia portuguesa do século XIX e XX, passando pelos parnasianos, simbolistas, os decadentes, a hoste revolucionária de 1890, ou a geração do Ultimato, e Francisco Bastos, Alexandre Braga, Cesário Verde,  Augusto. Gil e Fausto Guedes Teixeira, etc.
 
 A obra merece ser bem lida, e a longa transcrição descritiva e contextualizadora de  Antero de Quental, ou não fosse Marcos Algarve também um idealista, preparado na luta pela República, e dando sempre provas de grande dedicação à luta pela verdade, a justiça e o bem,  espelha como a sua alma intuiu bem a alma prometaica de Antero de Quental.  
Talvez tivesse lido o livro Cidades e Paisagens, de 1889, de Jaime de Magalhães Lima, esse sim um tolstoiano mais pleno, obra onde descreve as impressões da visita que lhe fez em Isnaia Poliana, tendo entregado a Tolstoi os Sonetos completos de Antero e que Tolstoi apreciou, registando tal no seu diário, publicado postumamente. Mas já desconhecia as apreciações que Antero fez em duas cartas de 1889 a Jaime de Magalhães de Lima, nas quais elogiando em Tolstoi a sua individualidade, a sua santidade ascética e o desprendimento do mundo,  põe em causa as pessoas poderem chegar a tal facilmente, sem terem passado pela vida natural e seus prazeres, como ele passara. Antero não aprova a sua veemência evangélica, a "renovação do Evangelismo",  e demarca-se de tal erupção, facilitada pelos "entusiastas e visionários", já que considerava, na sua visão madura e idealística, que "o período sentimental da humanidade passou", talvez como o escrever-se poesia, "pois só a razão consciente e a virtude racional podem resolver os problemas duma idade adulta da humanidade". É pois um Antero já no final da vida, em 1889, que vemos a apreciar Tolstoi dum modo já não juvenil e entusiasta, como Marcos Algarve, mas como um ser que vê a necessária evolução  humana como a passagem gradual da vida natural "dos sentidos, dos instintos e da imaginação" para um estado de desprendimento interno, ligação ao ser espiritual e acção impessoal pelo Bem.    
No entanto, para finalizar, releiamos a visão de Marcos Algarve: «Antero de Quental, alma de iluminado temperamento, duma violência e duma sensibilidade tolstoianas, reuniu em volta da sua bandeira de guerra uma falange de proletários do pensamento.
Antero era um combatente indomável, sisudo e impulsivo, apaixonado e possante.»
Muita Luz e Amor nas almas de Antero de Quental e de Marcos Algarve (ou Francisco Marques da Luz), e possamos nós desenvolver as qualidades e acções propícias à realização do nosso dharma, missão, dever, aruétipo, para o Bem da Humanidade e ligação à Divindade.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

"Funken", "Centelhas", por Bô Yin Râ. Resumo das XXII centelhas, orações ou mantras. E com duas das suas belas pinturas espirituais.

Funken, Centelhas, é uma valiosa obrazinha, publicada em 1922, na Talisverlag de Leipzig,  num in-12º de 31 páginas, seguido duma 2ª edição em 1924, com os mantras ou pequenas orações em alemão criados por Bô Yin Râ : poemas -  orações, que pela  leitura e sensação ressoante,  meditação e realização, são adequados aos que prosseguem o elevado caminho espiritual ensinado por ele. Uns meses depois, um artista expressionista e espiritual, amigo de Bô Yin Râ e grande estudioso de Jacob Böehme, Fritz Neumann-Hegenberg (1884-1924), publicava na revista Magische Blätter uma transcrição dos mantras, com leve contextualização e comentários, estes mais pessoais e artísticos, os quais foram dados à luz numa pequena brochura na mesma editora de Leipzig em 1922. 
                                                                 

Em 4.12.2020 publiquei no blogue um texto sobre este livro e o II mantra, apresentando-o trilingue, e comentando-o levemente, e está intitulado: "Uma Abóbada de Cristal envolvendo-nos", um mantra de Bô Yin Râ, actual. E com pintura de Anna Zappa;  e a ligação será: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/12/uma-abobada-de-cristal-envolvendo-nos.html

                                        

Funken contém XXII mantras, e o I é uma invocação da realidade espiritual e divina, para que ela envolva o orante e lhe permita afirmar como experiência que ele é um santuário do espírito divino, e que o espírito divino é também santuário dele.

Não há uma distinção clara de quem é adorado, se o Espírito, se a Divindade ou Deus vivo, mas apenas a afirmação: - Eu sou um teu templo, santuário ou sacrário (schrein). É o primeiro mantra a ser apresentado e deixa em aberto  o destinatário, se o espírito se a Divindade.

O II mantra  ajuda-nos a fortificar o templo, pois invoca-se  um muro de cristal erguido a toda à volta de quem ora ou medita, e que o protege e o inclui dentro de si. O orante pede que na Luz seja transformado e nada senão a Luz possa estar no seu interior.

É um exercício de protecção mágica que encontramos noutras tradições,  e Bô Yin Râ criou-o em alemão com versos rimados, bem valiosos, sobretudo para quem consegue sentir tais palavras em si bem ressoantes.

O III mantra é muito pequeno e põe-nos diante de um portal fechado, que é saltado e permite a sensação complementar ou simultânea de se estar de fora e  dentro. Talvez uma das funções dele seja mentalizar-nos para que nos mundos invisíveis não fiquemos estagnados ou especados perante as barreiras e portas fechadas, se por entre elas merecermos entrar.

O IV mantra tem rimas muito conseguidas e de novo somos projectados para os mundos subtis espirituais onde entre montanhas elevadas e profundezas do Caminho tomamos consciência de que cada um de nós é um degrau no Caminho.

O V mantra é talvez o mais flamejante e fácil de ser decorado e meditado pois  é uma invocação simples do fogo em nós, nos outros ou em todos e  em si mesmo, para nos tornarmos mais flamejantes. Insere-se na linha típica do fogo espiritual, tão desenvolvido por Bô Yin Râ ou ainda por outros mestres e místicos, como por exemplo na tradição russa, S. Serafim Sarov e Nicholai Roerich, no fundo apelando a realizarmos e a irradiarmos mais a centelha ou chispa do Fogo Cósmico de que somos portadores...

O VI mantra  é uma invocação, em que se nomeia expressamente o destinatário, o espírito, para que ele paire, voa e nos entreteça, e para que possamos vê-lo tanto no mais íntimo do interior como no do exterior  e sê-lo. É um apelo à meditação e à possível vivência da unidade espiritual dos seres e coisas.

O VII  mantra levanta duas das questões mais frequentes  na demanda da desvendação ou presentificação do espírito: "Onde? Quando?"  E a resposta é o "aqui e agora", o saber-se que podemos realizar-nos no estar-se plenamente no presente.  Um "aqui e agora" visível em muitas tradições, tal em Portugal vindo de Roma antiga no hic et nunc, ou mesmo no É a hora. É um chamamento, um convocação da força, da qual o dito querer é poder é outra perspectiva da mesma realidade.

O VIII é um dos mantras em que Bô Yin Râ procura estimular a não localização da consciência, a ultrapassagem das dualidades, tentando fazer-nos meditar as ideias-forças contidas na oração e sentir que embora sejamos um só, somos também todos, e tanto no interior como no exterior.

Levanta certamente alguns problemas o  admitirmos ou reconhecermos que interiormente somos todos, pois é permitir que eles estejam mais presentes no nosso interior. Resta saber se admitindo-se ou não, eles estão sempre dentro de nós nos planos subtis e portanto que o mantra apenas nos desperta para estarmos mais conscientes de tal entretecimento ou emaranhamento de todas as mentes e almas e que devemos necessariamente desenvolver a nossa unificação interna com o espírito ou eu espiritual, para conseguirmos lidar bem e serenamente com todas estas interacções possíveis.

                           

O IX mantra é um dos mais conhecidos dos ocidentais nas suas três vogais vindo da Antiguidade, IAO, e que teve particular uso nos grupos  gnósticos pois considerava-se ser o nome de um regente ou arconte dos sete que correspondem a cada planeta. Outros viram nele um nome grego para evocar certos deuses. Mas é claramente antes de mais um mantra sonoro divino, influenciado possivelmente pelo AUM indiano.

Bô Yin Râ apresenta-o  como a movimentação dum ponto inicial, que fende o espaço como linha, alarga-se ao ser traçado como compasso e arredonda-se por fim como esfera,  e nesta o Um inicial está em Todos. É um mantra operativo directamente pela sua sonoridade. Bô Yin Râ concluirá no XXII mantra com nova exploração dos sentidos e poderes incluíveis ou desabrocháveis na meditação no IAO.

O X mantra é outro caso de afirmação da unidade universal dos seres e portanto um exercício de alargamento de consciência, ao sugerir e tentar que o ser individual sinta que está ligado ao Mundo, aos outros, à Humanidade, e que tudo isso cada ser é.

 O XI mantra tenta apresentar por várias perspectivas o Ser Original não fundado mas que é o fundamento único e de tudo, apontando ou afirmando como conclusão final que o "Eu sou" é Ele. É dos mais complexos e profundos, e  dito em alemão por quem dominar bem o sentir das palavras empregadas, tem bons efeitos de aprofundamento e alargamento da consciência... 

O mantra XII é dos mais simples mas também mais valiosos ao chamar-nos à realidade do presente, com todas as suas potencialidades: não estarmos presos ou influenciados pelo passado ou futuro, mas antes focar-nos plenamente no presente, ou no entre ser, confiantes nas fronteiras e horizontes novos que se abrem dele. É uma lembrança de acalmia, perante as nossas impaciências.

O mantra XIII é um apelo e semeadura da aceitação da vida, do amar, o do que temos de vivenciar e de que no perder-nos podemos encontrar-nos e que  em ambos somos, ou estamos serenos perante tal oscilação dialéctica, face tanto ao que se perde como ao que se encontra e que tal oscilação externa é frequentemente necessária para ultrapassarmos o ego e vivermos mais o espírito que está acima dele.  

O mantra XIV apela ao sentirmos e irmos para além do que conhecemos ou não conhecemos, pois  há uma dimensão da realidade da sabedoria omnisciente a que podemos ter acesso pela meditação sentida e a cuja identificação Bô Yin Râ indica ao concluir a oração-centelha com uma das grandes afirmações, as mahavakyas, da tradição indiana, Tat Twam Asi, que surge originalmente na Chandogya Upanishad 6.8.7 ao ser transmitida pelo pai e guru Uddalaka Aruni ao seu filho e discípulo Svetaketo: «essa realidade suprema tu és (ou tu és tal Realidade», «sa ya eso nima aitadâtmyam idam sarvam, tat satyam, sa âtmâ. tat tvam asi».

 O mantra XV é dos mais elevados e misteriosos, pois nomeia os Pais, os espíritos mestres mais elevados, como sendo os  que ajudam a descobrir o nosso verdadeiro nome, a nossa essência vibratória, e sabemos bem como tal é muito difícil e trabalhoso, os nomes de baptismo ou mesmo de iniciação sendo apenas sucedâneos mais ou menos apropriados a ligarem-nos interiormente com o nosso verdadeiro Eu e seu nome, ou apenas a representarem-no. Este mistério é trabalhado por Bô Yin Râ em alguns passos na sua opera omnia, o Hortus Conclusus, de 32 livros. 

O mantra XVI, um dos mais longos, tenta fazer-nos tomar consciência da unidade do Único eterno, do outro e do relacionamento de ambos, nessa tríade que substancia a unidade e  a vida e que devemos procurar sentir e realizar, chamando-nos, inspirando-nos e descobrindo-nos interiormente como Eu, e exteriormente como AUM, a omnipresença da vida divina.

O mantra XVII retoma  a realização da unidade do presente e a eternidade: sermos peregrinos ou caminhantes, sempre subindo por degraus da vida, e em que somos na realidade o degrau em que estamos, ou a consciência da eternidade do movimento espiritual ascensional  consciencializado no presente.

O mantra XVIII é dos que trabalha a dialética de sabermos desprender-nos ou  perdermos o pequeno eu para nos reencontrarmos expirando e inspirando-nos na dimensões invisíveis e descobrindo o nosso verdadeiro ser, o Espírito individual, o Jivatman, e que vive em unidade com o Aum, a vibração ou vida divina no Universo.

O XIX mantra é  algo misterioso, pois ao contrário do que Bô Yin Râ ensina como regra geral de vida - o de não haver necessidade de reincarnação -, neste mantra afirma  ter vivido e morrido muitas vezes, e que esse que foi morto renasceu para a unidade com o Ser inicial, a unidade com a Divindade. E sentindo perpassar em si a corrente de vida eterna, apresenta em eco ou fonte uma outra das quatro  grandes afirmações (ou mantras) indianos, as mahavakyas, Aham Brahma Asmi, "Eu sou (um com) a Divindade", a qual surge como conclusão do processo iniciático iluminativo, possível de passar-se numa só vida, ou em geral prosseguida mais lentamente no além, ou não...

O XX mantra é bem forte no apelo à vontade que indica ou impulsiona o caminho, para que se manifeste na nossa vida, e que estando sobre nós nos ilumine e guie e se torne acção, se torne a nossa própria vontade.

 «Vontade impulsionadora!
Quer em mim!
Torna-te efectiva!!

Ó supra-Eu!
Convence-me!
Ilumina-me!
Torna-te efectivo!
Torna-te
–  Eu!! »

No XXI mantra, um dos muito rítmicos e simples, encontramos uma palavra utilizada simbolicamente, e que remete tanto para a tradição alquímica como maçónica, mas também cristã: a "pedra", a pedra de fundação. Nele apela à luz do espírito para que intensifique a sua chama em nós em todo o corpo, para que ilumine o santuário da alma ainda pouco claro, e intensifique a luminosidade da pedra, alquímica, que nós somos, ou que está na nossa base.

                          

O XXII é dos mais difíceis de se compreender, e logo o senti-lo ressente-se pois apresenta uma hierarquia numérica, de difícil hermenêutica em alguns dos seus níveis ou concretizações, pois brota de uma tríade inicial, passa pelo quaternário, talvez das 4 estações e seus arcanos, nomeia o 10, a década pitagórica, e logo o 12, talvez dos signos do Zodíaco e, por fim, chega aos muitos mestres e discípulos que com a régua e o compasso constroem e descobrem-se como IAO, um em todos.

Eis uma obra bem valiosa, com centelhas ou orações simples e profundas, uma  ou outra mais difícil e que nos estimulam a gerarmos as nossas próprias e aprofundá-las. Anote-se que as edições modernas de Bô Yin Râ juntaram o Funken e o Mantra Praxis num só volume. E que no livro Das Gebet, A Oração, de 1926, que eu traduzi e editei [e ainda tenho alguns exemplares], Bô Yin Râ explica muito bem a arte da oração e dá outros exemplos, menos mântricos ou concentrados como estes XXII mantras.  No Youtube encontra uma gravação do I e II mantras:  https://youtu.be/kUXIulIPYTQ

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Carta de Pico della Mirandola ao seu sobrinho Giovanni Francesco, de 2.6.1492, sobre o caminho espiritual. Com vídeo.

Finalizando as comemorações dos 561 anos do nascimento de Pico della Mirandola (24.2.1463-1494) partilhamos a tradução de uma das suas cartas. Imagem provinda da comemoração dos 500 anos do aniversário organizada por José V. de Pina Martins...

Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) viveu bastante retirado do mundo nos últimos anos da vida, dedicado aos estudos e à vida espiritual. Trabalhava numa obra que veio a ser publicada postumamente as Disputationes adversus Astrologos, extensa defesa da incognoscibilidade do futuro face ao livre arbítrio humano e as múltiplas causalidades circunstanciais; mas ia escrevendo cartas, algumas bem valiosas, que deixam transparecer tanto a sua espiritualidade interna e universalista como a sua piedade religiosa e crença católica, além de serem testemunhos da sua psicologia e estado anímico.

Giovanni Pico della Mirandola, numa pintura quinhentista que pertenceu José V. de Pina Martins, sábio confabulator espiritual de Pico, Erasmo, Ficino e Thomas More... 
Das cartas  dirigidas ao seu sobrinho João Francisco, duas de Maio e Junho de 1492 são valiosas. Já transcrevi partes duma delas, a mais valiosa, de Maio de 1492, e pode lê-la em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/12/carta-de-giovanni-pico-della-mirandola.html  e desta vez resolvemos ler traduzindo e gravando a de Junho, e a partir da versão francesa de Olivier Boulnois e Giusepe Tognon publicada nas P.U.F., Paris, em 1993. Posteriormente  lemos-la  em latim  e é a partir desta que vamos transcrever (sobretudo para quem não tiver paciência de ouvir os 30 minutos da tradução) as partes mais valiosas, agora numa tradução minha do latim com  alterações fortes em relação à versão do francês lida e gravada, a qual não consegue transmitir bem, ou não quis, a força espiritual do texto e de  Giovanni Pico, para além de que a língua portuguesa deve ser, após a italiana, a que permite traduções mais perfeitas ou fidedignas do  latim, ainda que esta minha possa ainda ser aperfeiçoada...

«(...) Feliz és, filho, quando Deus não só te atribui o que precisas para viver bem, mas porque tu vivendo bem, ouves dizer  mal de ti    pelos maus, precisamente por viveres bem. É o mesmo louvor seja os que são louváveis louvarem-te seja os que são improbos denegrirem-te.

Mas chamo-te feliz, não pela razão que tal calúnia é gloriosa para ti, mas porque o Senhor Jesus, que é verdadeiro, ou mais ainda a própria verdade, afirma que a nossa mercê [ou graça, ou ganho] será copiosa nos céus quando os homens disserem males de nós  e disserem mentirosamente todo o mal contra nós por causa dele [a Verdade, e Jesus, o verdadeiro].

(...) Finalmente, se o mundo te aplaude, é difícil que a virtude que devia estar toda erecta para o alto, e só agradar a Deus,  não se torne ela a pouco e pouco inclinada para às graças dos homens que a aplaudem; e se não perde a sua integridade perde contudo o prémio, pois este ao começar a ser pago neste mundo onde todas as coisas são exíguas,  pequeno será no céu onde todas as coisas são imensas.

Bem aventuradas as afrontas que nos protegem e impedem que a flor da juventude não estiole sob o vento pestífero da glória inane, ou que o nosso prémio na eternidade não seja diminuído pelo rumor vão popular. Abracemos filho, estas afrontas e orgulhemo-nos, na santa ambição de servidores fiéis, somente da ignominiosa  Cruz do Senhor.

(...)  Cogita  quanta seria a tua insânia, se o juízo dos insanos te demovesse da vida recta estabelecida. Pois todo o erro deve ser removido pela sua correção e não ser aumentado pela sua imitação. Que eles relinchem, ladrem, rujam. Tu avança no teu caminho intrépido. E pesa cuidadosamente quanto deves a Deus pela negligência e miséria deles. O que estava sentado à sombra da morte ele iluminou, e tirou-o das  reuniões dos que em trevas densíssimas se desviam em frenesins sem guia, e associou-o aos filhos da Luz. Soe aquela voz suavíssima do Senhor sempre nos teus ouvidos: «Deixa os mortos sepultar os mortos, tu segue-me» [Lucas IX, 59-60]. Mortos estão de facto  aqueles em quem Deus não toma lugar, e que, neste este espaço temporário de morte, adquirem para si laboriosamente  a morte eterna.

(...) Portanto fecha os ouvidos com cera, caríssimo filho, e o que quer que digam, o que quer que pensem de ti os homens, tem como nada; considera só o juízo de Deus, que dará a cada um segundo as suas obras aquando da sua revelação do céu, com os Anjos da sua virtude, libertando pela chama do fogo aqueles que não conheceram Deus e que não prestaram atenção ao seu Evangelho. A quem serão dados penas (como o diz o Apóstolo), em extinção eterna  da face do Senhor e da glória da sua potência, enquanto que todos os que acreditaram nele serão glorificados na virtude dos seus santos e na sua admirável  contemplação.

(...) Faz isso, e cogita sempre na morte, sempre iminente e ameaçando-nos. Assim vivemos em menos que um instante, e cogita  como é mau o antigo inimigo, que nos prometeu os reinos da terra para nos retirar o reino dos céus, como são falsos todos esses prazeres que por essa razão nos abraçam para estrangular, como são dolosas essas honras que nos elevam para nos precipitar em seguida, como essas riquezas alegres que ao alimentar-nos delas mais nos envenenam; cogita como é breve, incerto, vão, falso e imaginário  tudo isso que  nos poderiam oferecer se pudessem satisfazer  os nossos desejos ou votos, e como é grande o que está prometido e preparado para os que menosprezam as coisas presentes e suspiram por aquela pátria cujo rei é a Divindade, cuja lei a caridade, e cujo ritmo é a eternidade.  
Nesta e em semelhantes cogitações ocupa o teu ânimo para que possam  despertar-te se dormes,  acender-te se estás morno, confirmar-te se vacilas, e produzir as asas do amor da Divindade tendentes ao céu, para que, quando voltares a nós,  o que todos nós aguardamos  com  desejo, e não só pois o queremos,  te vejamos como queremos ver-te. Avança bem [Vale] e ama Deus, a quem já começaste a temer.
Ferrara, 2 de Julho de 1492»
Segue-se a gravação da carta toda, embora seguindo a tradução francesa, e com um pequeno mas razoável comentário pontual:

                              

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Esboço biográfico de Pico della Mirandola por José V. de Pina Martins, para os 500 anos do seu nascimento,em 1963, e agora nos 561 anos digitalizado...

Comemorando-se hoje 24 de Fevereiro de 2024 o 561º aniversário do nascimento de Giovanni Pico della Mirandola, resolvemos homenageá-lo com dois artigos, um comparando-o com Sri Ramakrishna Paramahansa, o grande místico bengali do séc. XIX, e já publicado no blogue, e outro, este, a transcrição dum Esboço Biográfico que José Vitorino de Pina Martins realizou em 1963, no V Centenário do seu nascimento, editado então pelo Instituto Português da Sociedade Científica de Goerres, num pequeno folheto de oito páginas, hoje bastante raro, e que era distribuído a quem visitasse a exposição bibliográfica na sede do referido instituto, na rua Visconde de Seabra.   

Portada 
José V. de Pina Martins foi o nosso maior especialista e amante de Pico della Mirandola, tendo defendido a sua tese de doutoramento na Sorbonne de Paris sobre aspectos da sua vida, obra e edições, e em  livros e em catálogos de exposições biografou ou abordou Pico della Mirandola no contexto do Humanismo europeu, da história das mentalidades e do livro, pelo que este resumo para uma pequena exposição é bastante simples, ainda que tivesse uma segunda parte, Esboço Bibliográfico que talvez transcrevamos noutra ocasião. Encontram-se neste blogue ainda vários textos sobre Pico bem como traduções da sua obra. Oiçamos o nosso querido amigo José Vitorino de Pina Martins:

José V. de Pina Martins, na sua veste doutoral sorbónica, sob as bênçãos de Pico, na sua Biblioteca de Estudos Humanísticos, hoje já flutuando no akasa ou éter da memória nossa, ou sabedoria de cor de quem a viu e amou. Demos graças.

«Giovanni Pico della Mirandola, um dos maiores humanistas do Quattrocento, nasceu no castelo de Mirandola a 24 de Feverero de 1463 e morreu em 17 de Novembro de 1494, com 32 anos incompletos. No breve ciclo da sua vida, realizou uma obra verdadeiramente singular, mais única do que raro, quer pelo ardor com que se entregou à sua missão de conciliador entre as mais diversas e antitéticas doutrinas quer pela universalidadde de interesses culturais que definiram e caracterizaram a sua forma mentis. [a sua vera fisionomia ou forma psíquica.]

Aos 14 anos incompletos frequenta já a Universidade de Bolonha, onde estuda Direito canónico. Um ano após, livre das suas decisões por via da morte da mãe, abandona a carreira de legista, que o não fascinava, e dedica-se às Letras, tendo sido discípulo em Ferrara, de Giovanni-Battista Guarino. Em 1480, encontramo-lo na metrópole do aristotelismo averroísta, em Pádua, onde Elia del Medigo  o dirige nos primeiros estudos da especulação oriental. A estada paduana é interrompida por uma visita a Paris durante o inverno de 1482-1483, e na capital francesa toma um primeiro contacto com a orientação escolástica parisiense.

Em 1483-1484 Marsilio Ficino acabara de compor e dar à luz a sua versão e comentários do corpus platónico. Giovanni Pico. que então visita Florença convence o amigo a que decida verter em latim a obra de Plotino. O Conde de Concórdia encontra-se, portanto, na origem dos estudos neoplatónicos de Florença e especialmente dos estudos plotinianos.

Em 1485, com vinte e dois anos, o humanista volta a Paris, desta feita para aprofundar os seus estudos sobre a Escolástica tomista e escotista, que encarava o pensamento aristotélico  de maneira diversa. Pico, todavia, procura eliminar todas as diversidades, para só pôr em realce os pontos de concordância. É em Paris que concebe o grandioso plano de reduzir o scibile a 900 teses, que redige, auxiliado pelo seu mestre Elia del Medigo [judeu cretense,1458-1493]. Essas conclusiones deviam ser defendidas em Roma perante um público formado por estudiosos que aceitassem o desafio da disputa, fixado para depois da Epifania de 1487. O objectivo essencial deste plano, que não agradou a muitas amigas de Pico entre eles Ermolau Barbaro, era o de estabelecer uma apologética audaz da verdade universal do Cristianismo, a cujos princípios fundamentais seria possível, segundo o proponente, reduzir todas as filosofias e doutrinas, ainda as mais aberrantes e contraditórias. [Uma utopia de universalidade, condicionada pela supremacia do Cristianismo, mas que mesmo assim não foi aceite pelas autoridades cristãs.]

A Cúria romana, contudo, não aprova a realização da disputa e condena mesma, como heréticas, treze das teses a apresentar. O humanista defende-se com energia das acusações da comissão inquisitorial, nomeada por Inocêncio VIII, considerando os seus membros como ignorantes, mas de nada lhe vale um tal juízo, pois vê-se obrigado a uma retratação em Março de 1487. Não renuncia, todavia, à sua defesa, e redige a Apologia das suas proposições, obra que, como é natural, mais exacerbou as cóleras romanas. Em Agosto o Papa condena, em bloco, todas as teses e o jovem sábio, perseguido por um breve pontifício que recomenda, aos príncipes cristãos, a detenção do Conde Mirandolano, foge para França e é preso em Janeiro de 1488, perto do Lyon. A Universidade de Paris, por seu lado, proíbe a Apologia do seu antigo aluno, mas junto do Papa sucedem-se as diligências a favor do ardoroso «herético». Na primavera desse ano, o nobre humanista vê-se restituído à liberdade e aceita a hospitalidade de Lourenço o Magnífico, que o presenteia com uma vila nos arredores de Florença, nas doces colinas fiesolanas.

O desco de parto, prato de mesa de nascimento oferecido à mãe de Lorenzo, Lucrezia Tornabuoni, quando este nasce, fadando-o para a Fama.

O período 1488-1492 é, talvez, o mais fecundo deste «excomungado» tão religioso e pio. Em Novembro de 1488 Pico completara os vinte e cinco anos, e as teses, assim como o discurso De Hominis dignitate e a Apologia, tinham-no tornado conhecido e admirado pela sua ciência universal. A oratio em louvor do homem constitui mesmo, na verdade, o autêntico manifesto do humanismo quatrocentista. Da mesma época ou pouco depois é o seu Commento alla Canzone d'Amore, escrita por Girolamo Benivieni segundo o estilo dos platónicos, isto é, segundo a orientação das ideias de Ficino no comentário ao Simpósio [de Platão]. A atitude de Pico não é de aceitação sem reserva das ideias de grande autor da Teologia Platónica, e chega ao ponto de verberar a superficialidade de Marsilio Ficino e algumas das suas inexactidões, ou por ele tidas como tal.

O Heptaplus, composto segundo o início do Génesis, é de 1489: nesta obra, que é um verdadeiro tratado de opificio [do italiano, fábrica ou obra] mundi e de opificio hominis, alia o humanista toda a ciência bíblica e patrística aos preceitos mais arrojados do hermetismo hebraico e alexandrino. Não era livro que pudesse conciliar-lhe o beneplácito da Cúria romana...

As suas relações com Frei Jerónimo de Ferrara, o famoso Savonarola, intensificam-se. Num grande sábio e tratado sobre a astrologia judiciária, Pico della Mirandola retomava a dialéctica anti-astrológica da tradição cristã e patrística, para pôr em evidência, contra a opinião de alguns humanistas como Pontano, por exemplo, a liberdade suprema do homem. Savonarola redige, por esta altura, uma súmula destas ideias, aceitando como seu mestre aquele que, na ordem espiritual, o seguia docilmente pela senda de uma espiritualidade eleita.

Da mesma época é o tratado De Ente et Uno, formoso e inacabado capítulo de uma inacabada suma sobre a concórdia universal, tentativa audaz de conciliação do aristotelismo com o platonismo. O discípulo das escolas de Pádua e de Paris sabe muito bem harmonizar os princípios da escolásticas arabizante e da glosa tomista com uma interpretação platónica do mundo e da vida. Era a visão plotiniana do homem que lhe permitia poder efectivar essa concórdia. Mas, de 1491 a 1494, o filósofo fica silencioso. Em 1493, o Papa Borgia Alexandre VI que, no ano anterior, ascendera à cátedra romana, absolve Pico e declara-o livre de qualquer heresia formal, enquanto o vibrante autor  da Apologia leva agora, mansamente, uma vida de exemplar austeridade, na contemplação que uma pia philosophia lhe facultava e nas serenas reflexões para cujo mundo excelso uma docta religio o conduzia progressivamente. 

 [E agora um tão belo quão evocador fim por Pina Martins:] Aquele 17 de Novembro de 1494, dia outonal que, nas colinas de Florença, encerra o ciclo de vida do Mirandulano, condena o pensamento europeu a ficar para sempre privado do estudo que seria, porventura [ou muito provavelmente não, pois o que escreveu já tem muito para muitos século], a sua obra-prima: a «Concórdia» do Conde Mirandolano, príncipe dos humanistas, o mais puro espírito do pensamento quatrocentista. Envenenado, talvez, por um dos seus fâmulos. Pico segue de perto para o túmulo aquele que o protegera, Lorenzo de Medici, morto em 1492, Ermolao Barbaro em 1493 e Poliziano em 1494 [os seus  principais amigos]; segui-lo-ão naquela década, para  mundo ultra-terreno, Frei Jerónimo de Ferrara [Savonarola], tragicamente sacrificado em 1498, e Marsilio Ficino desaparecido em 1499.» Muita Luz e Amor Divinos religando-nos a todos!

                                                          
Pico della Mirandola, entre Marsilio Ficino e Angelo Poliziano. Fresco por Cosimo Roselli, de 1488, na igreja de Sant'Ambrogio, em Florença.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Pico della Mirandola e Ramakrishna Paramahamsa, dois espíritos universais, em si e nas mensagens. Nas comemorações dos 561 anos de Pico della Mirandola.

Pico della Mirandola no meio de Marsilio Ficino e Angelo Poliziano. Fresco por Cosimo Roselli, de 1488, e ainda hoje contemplável na igreja de Sant'Ambrogio, em Florença...

Para celebrarmos os 561 anos do nascimento de Pico della Mirandola, pois nasceu em Mirandola a 24 Fevereiro de 1463, um espírito pioneiro na sua universalidade filosófica e teológica, resolvemos compará-lo com Sri Ramakrishna Paramahansa, nascido em Karmapur a 18 de Fevereiro de 1836, já que ambos, embora separados por uma grande diferença temporal,  e um na Itália e outro na Índia, nas suas filosofias, teologias e visão espiritual  sintetizaram e unificaram longas tradições anteriores e brilharam e influenciaram muitos...

Pico della Mirandola não se limitou à tradição filosófica grego-romana nem a religiosidade Católica, pois aceitou tanto a Cabala e textos apócrifos judaico-cristãos como nos seus amplos estudos filosóficos, religiosos e espirituais acolheu ainda a sabedoria egípcia, caldaica, persa e árabe discernindo uma mesma tradição de Filosofia Perene em todas e considerando os diversos profetas e mestres como elos dessa mesma tradição, posição que também tinha sido investigada e defendida pioneiramente pelo seu amigo Marsilio Ficino (19.10.1433 - 1.10.1499).

Já Ramakrishna, conhecendo  desde cedo por vivência e diálogos (na sua aldeia, desde criança, ouvia os yogis e sadhus que estacionavam junto ao templo) quase toda a tradição indiana, que depois aprende mais profunda e intimamente com yogis que o vão visitar ao seu templo junto ao Ganges, vai por fim pela sua humildade, curiosidade e sensibilidade conhecer também a essência da religião cristã e islâmica, bem como ainda a jaina e budista, não por estudos nem  pelos diálogos com religiosos ou devotos delas, mas pela sua capacidade psico-espiritual de conseguir vivenciar por dentro (a islâmica impulsionada por um sufi que lhe transmitiu o dikr, ou oração-repetição sagrada adequada) e ver subtilmente os mestres fundadores dessas religiões e ter como que fusões, unificações ou samadhis com eles.

Pintura naif indiana de um discípulo de Ramakrishna, representando a fraternidade ecuménica cristã, islâmica e das diferentes tradições indianas...

Ambos viveram significativamente em épocas denominadas de de renascimento, Pico della Mirandola no do Humanismo Europeu, do culto das letras e filosofias antigas e da dignidade humana, nos séculos XV-XVI, e Ramakrishna, no Renascimento de Bengala, no séc. XIX,  das tentativas de modernização ou racionalização da sociedade indiana e do Sanatana Dharma (eterna religião ou ordem), e em que se destacaram Raja Ram Mohan Roy (22.5.1772-27.9.1833),  (Devendranath Tagore (1817-1905), e seu filho Rabindranatah Tagore (1861-1941), que receberia mesmo um prémio Nobel de Literatura em 1913, Dayananda Saraswati (1824-1883), Keshub Chandra Sen  (1838-1884) e Bepin Chandra Pal (7.11.1858-20.5.1932) que chegou a afirmar:«Ramakrishna Paramahamsa não pertencia a qualquer seita ou denominação, ou se quisemos, pertencia a todas as seitas e denominações, tanto Indianas como não-Indianas. Era um verdadeiro universalista, mas o seu universalismo não era o universalismo da abstração».

Ambos sendo muito sensíveis e místicos, ou seja, dotados de capacidades de vivência interior, clarividente e, sobretudo Ramakrishna, instática  e extática, chegaram a percepções dos mundos e seres espirituais e da Divindade por diversas tradições e modos ou metodologias.

Pico della Mirandola trilhou contudo um caminho bastante mais intelectual e filosófico, com estudos do aristotelismo averroísta em Pádua, e da escolástica de S. Tomás de Aquino e de Duns Escoto em Paris, pois dotado de alma bem sensível e devota também intuiria, ou pelo menos descreveu bem e com maior ou menor clarividência, algo dos níveis mais elevados da realidade, tal o espírito, os Anjos e demais espíritos celestiais da Hierarquia, o Amor, a Trindade, a Divindade.

Pintura quinhentista de Pico della Mirandola, que chegou a ser oferecida ao Museu de Arte Antiga, por Primula, a mulher de José V. de Pina Martins, após a partida dele para os mundos espirituais, quem sabe tornado vizinho ou confabulator de Pico.

Em muitas páginas transmite-nos os seus ensinamentos unificadores e ascensionais valiosos, embora a dado momento  se tivesse envolvido demasiado na Cabala e tentasse explicar o Génesis (tal como no começo do séc. XX o padre Lagrange, que foi impedido de publicar os seus trabalhos porque abalavam a literalidade do entendimento comum cristão) dando à luz em 1489 o Heptaplo, Exposição septiforme dos seis dias da Criação, com uma complicada hermenêutica, platónica, cristã e cabalista, ora com bom sentido espiritual, ora muito imaginativamente, esoterizando algo forçadamente a narrativa simples ou primária mosaica, que para Pico enraizava na sabedoria egípcia, e ambas ocultando alegoricamente as profundas verdades que Pico agora desvendava e partilhava...

Anote-se que em 1486-1487, a sua tentativa de discutir 900 teses de conhecimento universal não foi bem recebida pelo Papa e por alguns teólogos da comissão de inquérito, os quais, face a teses provenientes de fontes extra-católicas ou com sintomas de simpatia por doutrinas suspeitas, consideraram heréticas treze dessas proposições, porque “renovam os erros dos gentios e as perfídias dos judeus”, que contudo eram das mais estimulantes de aprofundamentos...

Giovanni Pico resolveu corajosamente replicar e escreve uma valiosa e profunda Apologia às treze proposições, condenadas (tais como: se Jesus descera aos Infernos, o que aconteceria no fim dos tempos aos condenados por pecado mortal, se a magia e a cabala certificavam a divindade de Cristo, o que devíamos pensar de Orígenes estar condenado, e outras sobre a Eucaristia, os milagres de Jesus, os Anjos, etc.),  o que irritando a Cúria romana  leva à sua condenação por  um breve pontifício em Agosto  de 1487, pedindo-se a sua prisão às autoridades. Pico foge para França, chega a ser preso por uns meses, mas Lourenço de Medicis intercede e recebe-o em Florença onde ele estabiliza e se dedica às obras seguintes, um Comentário a uma canção de Amor e GirolamoBenivieni, o Heptaplo, os Comentários ao Salmo 195 e os Argumentos contra a Astrologia Adivinhatória, defendendo fortemente o livre-arbítrio, e que teve muito cedo tradução parcial para português por Frei António de Beja (1493-1517), Contra o Juízo dos Astrólogos. Só em 18 de Junho de 1493 é que por um breve dirigido ao "dilecto filho e nobre homem Ioanni Pico  conde de Mirandola", o Papa Alexandre VI, um Borgia sábio, retira tal carga das costas e coração do genial e inocente conde da Concordia, que de facto viveu antes do tempo propício e morreu tão precocemente. Será o seu sobrinho Giovanni Francesco Pico que editará as suas obras completas em 1496, com várias cartas, que terão então grande sucesso no século XVI (com sete edições em Itália, a última de 1557, e visível na imagem) e por diante, sobretudo a sua Oração da Dignidade Humana, hoje tão necessária de ser lida e ouvida em alguns aspectos tocantes à identidade do género humano no cosmos hierárquico e das suas potencialidades de degeneração  e de elevação.

                                                 

Já Ramakrishna Paramahamsa foi um mestre vivo sem problemas quanto à ortodoxia, já que era um sacerdote, de casta imemorial brâmane, e soube, quando questionado ou investigado, brilhar tanto com a sua sabedoria,  boa disposição, simplicidade e sobretudo capacidade de entrar em contacto com o espírito e com a Divindade, que convencia, ou então tocava as pessoas que o visitaram, ou o viam a celebrar o culto da deusa, ou a ensinar, a cantar e em meditação profunda. E muitos dos  diálogos nos últimos anos da sua vida foram registados por um discípulo sábio, Mahendranath Gupta, que os veio a publicar como o Evangelho de Ramakrishna, em 1897, sem dúvida um dos mais belos registos diários de um mestre na tradição dos Vedas, do yoga, da bhakti ou devoção, do Sanatana Dharma

Com efeito a metodologia básica vivida, realizada e depois ensinada, frequentemente em parábolas, foi a tradicional da Índia, a yoguica e, numa síntese das diferentes vias, Ramakrishna privilegia e realça para a época, idade ou era em que se estava (e está, na ciclicidade das Yugas), a Kali Yuga, a sadhana bhakti, ou seja, as práticas de aproximação afectiva, devocional e de amor à Divindade, qualquer que seja a forma ou encarnação, concepção ou nome com que Ela seja adorada, invocada,  vivenciada.

Pico também exerceu um magistério porém mais irradiação da presença luminosa e graciosa nas conversas e debates, nos livros e nas cerca de setenta cartas (e a extensa, dirigida ao seu sobrinho, uns meses antes de morrer, é bem notável na vibração e nas recomendações espirituais), pois não era um sacerdote e foi mesmo condenado, e foi pois pela dimensão de filósofo e metafísico universalista, bom conhecedor da tradição grega (desde Pitágoras e Orfeu aos neo-platónicos), cristã (e em especial a patrística e Orígenes) e oriental (além dos persas chega a referir os gimnosofistas, os yogis e jainas da Índia, antepassados de Ramakrishna), que conseguiu libertar-se das malhas das concepções limitadoras judaico-cristãs.

 A sua obra mais especulativa, e em que tenta conciliar Platão e Aristótles,e chegar ao conhecimento da igualdade do Ser e do Um, título da sua obra de 1489, De Ente et Uno, representa no fundo um conhecimento muito  elevado mas teórico ou intelectual face às vivências  e realizações do Ser e do Um de Ramakrishna, que via e vibrava tanto com a Divindade una, o Brahman, transcendente e imanente e que estava por detrás da sua forma preferida pessoal, a deusa Mãe, Kali, que ele via e adorava na sua mulher Sarada Devi e nas mulheres, tanto com os fundadores das religiões que mais tinham realizado o Ser  ou Realidade primordial, e assim, em Dashineswar, no seu quarto, tinha uma estátua de Mahavira, o último Tirtankara do Jainismo, e outra de Jesus, diante das quais na aurora e no crepúsculo acendia incenso e devoção.

E tal como Ramakrishna valoriza bastante a via do amor à Divindade na época sombria (Kali Yuga) em que segundo a tradição védica estavamos, também Pico della Miranda, ao aceitar mais  a visão sombria do Renascimento que  o monge dominicano e profeta Savonarola denunciava na Florença dos Medici, sobretudo pelo paganismo e o sensualismo-luxúria,  enveredará e apelará a uma  vida simples e ascética e de entrega do coração a Jesus e à Divindade.

Ora se no caminho de realização de Ramakrisna houve iniciações, passagens de um estado limitado, o da exclusividade do seu amor à deusa Kali, a outro mais abrangente, nomeadamente ao deixar essa visão feminina da Divindade e chegar ao Primordial Brahman, e de estar em plena comunhão com o espírito e frequentemente com a Divindade, em Pico della Mirandola houve uma certa retração face à sua universalidade inicial, pois tanto sofreu a condenação papal por seis anos como se emaranhou nas infinitas complexidades da conciliação do aristotelismo e do platonismo, ou na de encontrar uma harmonia intelectual entre as diversas escolas filosóficas e tradições religiosas, pelo que, quando por fim, mais influenciado ou afim de  Savonarola desvaloriza as tradições pré-cristãs e torna-se mais um simples devoto e místico cristão, não sabemos se nessa dinâmica, por um lado de estreitamento, terá intensificado ou ampliado  a sua auto-gnose espiritual e religação divina íntima....

Giovanni Pico della Mirandola morre muito cedo, aos 31 anos, ardendo de converter as pessoas a um Cristianismo mais espiritual, e  de febre no seu corpo-alma luminoso, satvico. Ramakrishna, que passou anos a tentar iluminar e harmonizar, e até curar os que o rodeavam, sofre um cancro na garganta e em pouco  tempo parte mas já com 50 anos, o que nos yogis da Índia na época não era assim tão pouco. Serão swami Vivekananda e os outros discípulos, que formam a ordem Ramakrishna, que irão fortalecer a filosofia (sobretudo a vedântica) e a religião indiana, tomando de certa forma o facho que os homens do Renascimento bengali tinham acendido com o Brahmo Shaba, o Arya Samaj, o Brahmo Samaj e a Nova Dispensação mas que depois grupalmente se foi apagando ou extinguindo, embora sucessivos mestres em diferentes linhas  ou tradições (darshanas) e práticas (sadhanas) nunca tenham faltado ou faltem na Índia.

Se hoje as celebrações do nascimento e morte (segundo o calendário lunar) de Sri Ramakrishna e de swami Vivekananda (o seu discípulo principal, e que estivera presente com grande impacto no I Parlamento das Religiões, em Chicago, em 1893, tão pioneiro no comparativismo religioso universalista ao vivo)  juntam milhares de pessoas com grande fervor devocional, com cerimónias transmitidas online,  havendo vários centros e templos activos da Ordem, já o espírito de Pico della Mirandola é invocado  comungado por poucos (e entre nós devemos mencionar o meu amigo e mestre José V. de Pina Martins), embora a sua saga e obra continuem a gerar estudos e livros de alguns estudiosos do Renascimento e sobretudo do Hermetismo, já que vêm nele um dos pioneiros, em especial com Marsilio Ficino, da afirmação de uma Filosofia Perene, que  alguns autores foram prosseguindo e desenvolvendo até chegarmos aos últimos de mais valor, já no séc. XX, tais Ananda Coomaraswamy (1877-1947), René Guénon (1886-1951), Julio Evola (1898-1974) e Jacques de Marquette. A jovem russa Daria Dugina Platonova, filha do notável pensador russo Aleksander Dugin, estava a desenvolver-se bem nesta linha, mas extremistas cortaram-lhe a vida na Terra, tão promissora que era... Um pecado contra o Espírito Santo, imperdoável, dir-se-á...



Deve-se realçar-se que a unidade das religiões, assente ou exponenciada como religião universal, de Ramakrishna Paramahansa estava baseada nas diversas realizações espirituais e divinas que ele vivera e ensinara. Era pois de experiência e vivência psico-espiritual, enquanto que a tradição da Filosofia Perene nos últimos mencionados foi mais intelectual, mais de compreensão e não tanto de realização com os sentidos espirituais já despertos nesta vida, algo que Paramahansa Ramakrishna conseguira,  algo inatamente e algo a partir de práticas meditativas e devocionais, nas quais  a realização afectiva ou amorosa, para o ser divino no interior da alma, foi  demandada com persistente devoção até  atingir-se tal ligação, visão ou unificação.  
Ramakrishna Paramahansa ensinava isto aos seus discípulos, conseguindo mesmo despertar em alguns fortes experiências espirituais e de visão divina, algo que nem Pico della Mirandola (mas sabemos pouco dos seus encontros-diálogos-orações mais afins espirituais) nem os últimos expoentes da Filosofia Perene conseguiam tão plenamente, embora saibamos que, mesmo assim, eles impressionaram alguns, e, por exemplo, Jacques de Marquette conta esse impacto intelecto-espiritual de Ananda Coomaraswamy, em Boston, e sobretudo o efeito espiritual do seu mestre indiano, Guru Ranade (3.6.1886-6.6.1957), outro valioso pioneiro do comparativismo filosófico e da espiritualidade, e por experiência directa, e a quem já consagramos alguns artigos no blogue. 
Anote-se que dois notáveis pensadores ocidentais admiraram muito Ramakhrisna e dedicaram-lhe duas obras importantes que contextualizam a sua vida e obra e realçam a sua universalidade: Max Müller (6.12.1823 a 28.11.1900), um dos fundadores da Ciência das Religiões e do seu Comparativismo, com Ramakrishna, His Life and Sayings, de 1898, e Romain Rolland (29.1.1866 a 30.12.1944), prémio Nobel da Literatura em 1915, La Vie de Ramakhisna, de 1947, ambos já abordados no blogue. A estes, seguiram-se muitos outros estudos. Quanto a Pico della Mirandola são também inúmeros e bem valiosos...

Meditemos, para concluir luminosamente, um dos belos ensinamentos de Pico della Mirandola,  saudando-o com muito amor!

"A única coisa que nos faz receber de Deus o que lhe pedirmos é o esperarmos conseguir tal. E se respeitarmos estas duas condições, a de só pedir a Deus o que nos é salutar e a de pedir ardentemente o que queremos, com a esperança firme que Deus nos satisfará, nunca serão realizadas em vão as nossas orações".