quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Nos 401 anos de Soror Mariana da Purificação, uma mística abrasada de amor, do convento da Esperança, de Beja.

Soror Mariana da Purificação nasceu numa família numerosa devota a 5 de dezembro de 1623 em Lisboa, filha do ourives António de Azevedo e de Maria da Cruz, que proporcionaram aos filhos uma boa educação, frutificada em dois irmãos religiosos e duas irmãs sorores. Cedo fora atraída para a religiosidade, a Divindade, pois já aos cinco anos, talvez com algum exagero do seu biógrafo e sobrinho, pedia a Deus para lhe abrasar o coração nos incêndios do seu amor divino, e ser santa, mas só aos quarenta anos, depois de ter gerido a educação dos irmãos mais novos por morte precoce da mãe, é que recebeu o hábito de religiosa carmelita, prostrada no chão do Coro do Convento da Esperança de Beja, onde o seu irmão era confessor, professando no ano seguinte, e vivendo trinta e dois anos de hábito religioso, por duas vezes mestra das noviças, tornando-se a prioresa em 1680, o que exerceu até deixar a Terra com sinais de bem-aventurança, em 8 de dezembro de 1695, dia de N. Senhora da Conceição. Foi biografada, conforme os cadernos escritos por ela e o que ele alterou, pelo seu sobrinho Frei Caetano do Vencimento, num in-4º volumoso, dado à luz em 1747, onde se destacam as suas austeridades, sofrimentos, êxtases, visões e revelações, que o seu primeiro confessor frei António Escobar a incumbira de escrever. Posteriormente, em 1802, Frei Miguel de Azevedo publicou mais concentradamente o Memorial das instructivas palavras e edificantes obras da muito virtuosa Madre Marianna da Purificação, acrescentando informação relevante recolhida nos manuscritos da venerável soror Mariana.

Foi uma das místicas biografadas de setecentos que mais manifestou o fogo do Amor, descrevendo como o sentia e patenteando ainda certas capacidades, tais como discernir os interiores das pessoas, e logo aconselhar e vaticinar.
A sua pessoa e vida, por denúncia de ter gerado falsas previsões ou prof
ecias (em grande parte espalhadas em seu nome por um criado que não gostava dela) e por dúvidas da veracidade das suas vivências, foi investigada em 1669 pela Inquisição de Évora, a qual, embora não a condenando por fingimento, pôs em causa a fonte divina das visões e locuções recebidas e proibiu que ela fosse tida como santa e publicitada. Contudo Frei Caetano do Vencimento garantia cinquenta anos depois, em 1747 que a sua virtude fora reconhecida e que Deus obrava maravilhas através dela, dando ainda como prova o facto que depois de morta, por quatro vezes, em quarenta anos, o seu túmulo fora aberto e o corpo encontrado incorrupto, com grande concurso de povo e curas miraculosas. Anos depois o próprio historiador e insuspeito Frei António do Cenáculo o confirmava após novo exame. Na biografia Frei Caetano Vicente faz crer que ela ainda poderia ser beatificada, afirmando que a imagem (ou relíquias) da Venerável Mariana circulavam, inspiravam e curavam, o que Frei Miguel de Azevedo em 1802 confirma. De tais registos, sobreviverão três na arca da Biblioteca Nacional... 
Era muito forte em jejuns e abstinências - sustentando-se mais da hóstia ou da Chaga do lado e, na essência, do amor a, e de, Jesus - ou então por vezes de pão, e azeitonas ou um ovo -  e mesmo quando se feria com disciplinas dizia que sentia fortemente amor e a vontade de ir pelo mundo apregoar o amor Divino de Jesus. Durante os jejuns, ou diante de registos ou santinhos que tinha dentro do breviário, recebeu fortes visões interiores do Menino Jesus ou mesmo locuções com uma voz de tal suavidade que ficava como que alienada dos sentidos, arroubada, ou fora de si.
Nesses estados extáticos chegou a ser vista com a cara resplandecente e na face uma Estrela, o que seriam, a ser verdade, possíveis sinais de visão da aura mais luminosa e da centelha do espírito. Narra o biógrafo, fazendo sem dúvida apostolado da causa, que para a sua irradiação espiritual e intercessão divina podiam servir de veículo o seu terço, se alguém rezasse por ele, bem como uma cruz que tinha na sua cela e emprestava, algo que no processo inquisitorial, que não acarretou qualquer declaração pública, tinha sido proibido de se fazer ou divulgar. Em 1802, Frei Miguel de Azevedo confirma tal  dizendo que um crucifixo pequeno dela e que estava em seu poder era o que de mais valioso tinha.
Quando estava em estado intensificado energético-consciencial, ou agraciada divinamente, quase desfalecia ou saía de si por causa do calor do amor, ora  ria muito, ora consolava e aconselhava as noviças,
ora despachava benignamente as petições que lhe faziam, o que encontramos, num comparativismo religioso, na tradição indiana com a mítica árvore (Kalpa Vriksha, ou Kalpataru) que satisfaz todos os desejos justos, ou aspirações espirituais, e que Sri Ramakrishna Paramahamsa manifestou num dos últimos dias de vida, a 1 de Janeiro de 1886, no jardim de Kashipur, para os seus discípulos e devotos.
Na vasta cerca do convento, hoje um aprazível e florido jardim no centro de Beja, para além de ter instado para que se abrisse um poço a dinamite, com sucesso sendo mesmo a sua água buscada como mezinha, conseguiu que se construísse uma ermida do Deserto, também chamado Empireu do celestial Esposo, deserto ou gabinete da venerável Mariana, onde se pintaram (nascimento de Jesus, Elias e S. Teresa) e receberam belas imagens, relíquias, poemas, e onde à volta as religiosas cultivavam (biológica ou naturalmente, claro...) ervas aromáticas e medicinais e vistosas flores que, com os afectos dela, serviam ao culto ao Divino Amor que realizavam na Ermida. Valorizava as flores, pois nas suas visões os Anjos levavam coroas ou capelas de formosas flores, por vezes com tochas de velas acessas, sinais das irradiações subtis e divinas, naturais em tais espíritos...
Sentia em geral o seu Anjo da Guarda dar-lhe a mão e ampará-la nas deslocações e em especial durante a missa,  na qual vivenciava intensos estados amorosos na comunhão, tendo chegado a ser elevada ao mundo celestial. Outras vezes a presença de muitos Anjos, de diferentes tamanhos, ou a suavidade de vozes suaves e finas, era vista ou sentida com os olhos da alma.
Eis alguns dos seus mantra
s ou jaculatórias, dedilhados em momentos difíceis ou gratos: “Jesus, nome de Jesus seja comigo”. “Minha alma, meu bem e todo meu amor”. “Seja Deus muito bendito e louvado nos céus e na terra.”1

Considerava-se uma discípula de S. António e de sua mestra S. Teresa de Jesus mesmo antes de ser freira, pois tinha-lhes grande devoção e lera muito a sua obra, assimilando-a e imitando-a. E por vezes via-os, ou eles aconselhavam-na, intensificando-lhe os impulsos ígneos, fazendo-a desejar que todos se abrasassem naquele fogo de amor.
Tendo sido mest
ra das noviças por duas vezes, é valiosa a visão interior da transmissão de mestra a discípula, quando rezando as matinas num dia   viu, com os olhos da alma, de um resplendor dourado de oito raios na sua cabeça, saírem oito fios para as oito noviças, com resultados diferentes nelas conforme a harmonia anímico-espiritual que tinham.
A afirmação de que nos dias do
Apóstolos, de N. Senhora e dos Santos de quem era mais devota, o Senhor Jesus Cristo lhe dissera que fazia-lhe a mercê de levar muitas almas ao Céu por meio de suas orações, foi pelo Inquisidor considerado como uma ilusão de poder intercessório, conforme os autos processuais hoje em grande parte já conhecidos, embora tal capacidade seja frequentemente afirmada por muitas almas agraciadas nas suas orações. Também, na sua biografia, talvez não plenamente fidedigna e até contrariando as recomendações do Tribunal, diz-se que a veneração e a fé com que relíquias das suas vestes, pedaços de papel escritos por ela (engolidos até...), a sua imagem em gravura ou pintura e outros objectos foram acolhidos como meios de graça curativa e operaram milagres atestados na época, e sem dúvida que foi possível pois a crença e fé são bem poderosas frequentemente 2. Durante muitas décadas a devoção a ela e ao seu corpo tido como incorrupto foram grandes.

Finalizemos com três dos seus testemunhos: “Nesse dia comungando com grande consolação da minha alma me recolhi logo no coração do meu Esposo, que é o meu perpétuo lugar: nele logrei os costumados favores (…, e, cumpridas as rezas,) me tornei a recolher ao meu Coração do meu Jesus, que meu lhe posso chamar, ainda que indigna, pois nele vivo sempre, sem desejo de outras coisas desta vida.” Eé tão grande o fogo que arde no meu peito, que me parece sentir estar ardendo, sem poder valer-me, e desejo deitar de mim todas as roupas, e assim ando adiando, e desejando voar por este mundo a apregoar este amor, que com tanta força arde em meu peito e coração”. E na linha da religiosamente multipolar compresença divina: “Vivo, e muitas vezes me parece que já não vivo, se não que vive em mim Deus, vive em mim seu amor, sua glória, sua bem-aventurança...” 

Bibliografia: VENCIMENTO, P. M. Fr. Caetano do. Fragmentos da prodigiosa vida da muita favorecida, e amada Esposa de Jesus Cristo, a Venerável Madre Marianna da Purificação, Religiosa Carmelita Calçada (...) no convento da Esperança da Cidade de Beja ... Lisboa, na Officina de António da Sylva, 1747.

Notas: 1 VENCIMENTO, P. M. Fr. Caetano do. Fragmentos..., p. 159.    2 RANGEL, Leonardo. Esposas de Cristo: Santidade e Fingimento no Portugal Seiscentista. 2018.

Que as sorores nos inspirem na luz e amor Divino

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