domingo, 29 de agosto de 2021

Da escrita íntima e perene das nuvens e do Amor.... Ao pôr do divino Sol, de 29-VIII-2021....

Por vezes uma só nuvem incendeia de tal o modo o céu e a consciência, que manifesta mais o Amor que muitas palavras, promessas e discursos...
Quantos de nós aspiramos a estar e a voar nas labaredas do Amor e, como as gaivotas, nos lançamos ao ar, ao mar, ao amar?
Felizes dos seres que sabem estar e ser, plenamente e de corações abertos e gratos, conscientes da sua auto-consciência e do que emanam no campo unificado universal...
Entrar mais dentro do coração espiritual, do fogo do Amor e do Ser, é a obra prima da Vida, num estar atento e criativo perseverante...
A demanda da Verdade e da Justiça, do Amor e da Divindade espelha-se e desafia-nos nas nuvens...
As letras e escritas íntimas que no Coração e suas telas e nuvens vamos escrevendo ou desenhando poucos discernem, intuem, sentem...
Esta nuvem, tão fugaz mas quão ardente, atravessou os céus e aqui se perenizou para os que, apesar de tanta violência, mentira e opressão, ainda acreditam e querem o Amor e a Fraternidade, o Espírito e a Divindade e agora a acolhem nas suas almas e neurónios, no graal ou jam-e jam do coração, e se fortalecem e expandem na unidade desta comunhão...

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

"Despertador Quotidiano", da Soror Thomazia (Tomásia) Caetana de Santa Maria, lido e comentado em vídeo.

                                       

 No ano da graça de 1758 saía à luz benigna de Lisboa, ainda fendida, ensanguentada e turvada pelo terramoto do 1º de Novembro de 1755, um opúsculo poético de quatro folhas, da Oficina de Pedro Ferreira, impressor real, intitulado Despertador Quotidiano.
Constava de um poema proémio e de um soneto, este glosado quatorze vezes em oito versos, tendo ainda no fim um soneto de António Correia Viana, "em aplauso da discretíssima autora, a reverendissima Madre Soror Thomazia Caetana de Santa Maria", natural de Lisboa mas religiosa no Real Convento de Santa Cruz de Vila Viçosa.
O folheto fora custeada pelo seu pai, o médico cirurgião Manuel de Mira Valadão, e levava tal aviso no frontispício, quem sabe afastando importunos pensamentos ou censuras contra a jovem sóror que das profundidades do Alentejo deplorava a decadência e vaidades de Portugal considerando um castigo da Providência divina e elemental o terramoto que abatera a capital do reino.

O Despertador Quotidiano, como seu nome indica, visa despertar as pessoas para o Amor divino e para uma vida mais luminosa, ou seja, humilde, pura e contemplativa, e funciona quase como um exorcismo ou uma litania de poesias mantricas estruturadas a partir de um proémio e de um soneto que é glossado quatorze vezes em oito versos, em todas se referindo o lastimoso sucesso ocorrido pela braveza dos elementos, a qual é atribuída a um castigo divino.

A obrazinha é hoje rara, com mais de 250 anos e resolvemos lê-la e comentá-la brevemente.

                        

Depois de tal gravação consultamos a Biblioteca Lusitana, onde Barbosa de Machado informa que ela nascera a 7 de Março de 1719, sendo sua mãe Josefa Maria. E que «recebeu o hábito eremítico de Santo Agostinho no Convento de Santa Cruz de Vila Viçosa a 29 de Setembro de 1731, e professou solenemente a 15 de Outubro do ano seguinte. Por ser dotada de génio feliz para a Poesia, publicou...», seguindo-se os títulos de algumas das obras dela....

                                
                 Imagem de uma religiosa da sua época, também dum Convento do Alentejo

Entrara na religião muito cedo, com treze anos, e aos vinte e quatro anos começara a dar em letra de imprensa, e certamente antes em manuscritos, e facilmente imaginamos a soror Tomásia a conseguir harmonizar a sua vocação poética com a consagração religiosa e o tempo disponível na sua cela.
Como era ela, na face e na alma, como foi o seu noviciado, que forças instintivas nela lutaram, que devoções germinaram, já é bem mais difícil tanto deduzirmos como intuirmos mas, pelo conteúdo das suas obras, constatamos que via bem como o mundo era mutável e que se atrevia tanto a rebelar-se contra as mortes de pessoas valiosas, como também a considerar as desgraças naturais como ordenadas pela Providência divina, algo que na época o Marquês de Pombal e o seu círculo iluminista ou mais esclarecido não gostavam ou admitiam. Todavia, conseguiu  publicar cerca de vinte e três obras, dedicadas a pessoas importantes da corte e da província, talvez por o seu pai ser cirurgião e para receber mais protecções e leitores. 

Em 1993, a investigadora Isabel Morujão dedicou-lhe uma valiosa comunicação, Entre o convento e a corte: algumas reflexões em torno da obra poética de Soror Tomásia Caetana de Santa Maria, baseada na leitura das suas vinte e três publicações (constatando ainda como sinal de aceitação pública a existência de mais de uma versão manuscrita de algumas das suas obras), onde analisa alguns aspectos do diálogo entre a corte e o claustro, nomeadamente através do paratexto (os elementos constantes na frontispício, dedicatórias, poemas, licenças, censuras, etc.) da publicação e a sua diferença em relação a outros de religiosas da época, comprovando ou reforçando o que dissemos: em todas as obras (menos uma) é o pai médico que apresenta a obra à Mesa Censória e que a custeia. Observa ainda como as dedicatórias escritas por ela e  dedicadas a pessoas importantes estabelecem essa teia de apoios, elogios, protecções, algo menos visível nos poetas que ela glosa ou que a poetizam, por serem de pouco reconhecimento posterior.
Isabel Morujão considera ainda como a melhor obra de Tomásia Caetana este Despertador Quotidiano, que precisamente possuímos, e que lemos e comentamos no vídeo sem saber da autora mais do que nas oito páginas da obra está escrito. Das três obras que li posteriormente talvez a que mais apreciei seja contudo as Saudosas expressoens de hum reverente, e obsequioso affecto na sensivel morte do desembargador Luiz Borges de Carvalho, de 1753, hoje digitalizada na web, e onde, depois de pedir na dedicatória a protecção de um Mercúrio, para não ser um Ícaro a cair dos céus, caracteriza muito bem rítmica e psicologicamente o magistrado justo.
Ora se ouvirmos o Despertador Quotidiano e entrarmos nele com uma hermenêutica não só religiosa mas também espiritual talvez se possam acrescentar alguns dados sobre a autora (certamente bem diáfana para nós no séc. XXI), quase que "acusada" de fazer entrar o amor profano no sagrado, ou usar a linguagem do sagrado em domínio profano, numa "contaminação discursiva".
Quer-nos parecer porém  que Tomásia Caetana tinha uma visão mais unificada desses dois aspectos, ou seja, no amor ao amado ou amada humano, expresso por exemplo num poema-dedicatória a um casamento, pode estar a amar-se o amado divino, ou mesmo o Amor em si. Esta unidade omniabrangente do Amor é importante de se compreender e realizar, em vez de se considerar falta de respeito, abuso e intromissão do profano no sagrado pela apropriação da sua linguagem...

                               

Também se pode destacar nesse seu Despertador Quotidiano, a trindade final do Proémio: "Gosta de Cristo a pureza/ Vê de Jesus a fineza,/ Escuta de Deus a voz", na qual, realizando-se uma hermenêutica mística, contemplamos e realizamos, numa entrada aprofundante no templo da nossa alma, o Cristo que é o Logos ou Inteligência Universal divina, a fineza ou gentileza do Jesus ser humano e, mais íntima ou importante, a audição da voz de Deus, no saber fazer o silêncio e no receber orientação, no nosso interior.
Curiosa ou propositadamente, soror Tomásia Caetana, vai replicar o ouvir na glosa final da sua obra, pedindo ao doce Pai que abrande seus rigores e que abra os ouvidos aos nossos pedidos, e nisso seguia o seu mestre Jesus de quem aprendera o "Pedi e ser-vos-á dado".
Poderiam alguns mais ortodoxos ou até inquisitoriais levantar as sobrancelhas a tal ousadia de uma "pirralha", que só teria em seu abono ter-se sacrificado pela religião desde a tenra idade dos doze anos e ser poeta sensível: o querer aconselhar o Pai a ser mais doce...
O poema todavia passou, quem sabe se graças à dimensão elevada, misteriosa e amorosa do Pai, de Jesus, tão diferente do ciumento e vingativo Javeh do Antigo Testamento (que por isso mesmo foi tão ridicularizado por Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa), e chegou aos nossos dias, onde ainda tem encontrado almas ressoantes, como a Isabel Morujão e eu, que tentam ouvir sua palavra e voz ou sermo de soror poeta portuguesa do século XVIII, que em 1766 era declarada como a escrivã do seu convento, por seu pai, no frontispício das (por ela) compostas Queixas da Saudade na falta do Sereníssimo Senhor D. Manoel Infante de Portugal, aonde escreve «ponderando-se a circunstancia de nascer, e morrer Sua Alteza no mesmo dia; porq[ue] nasceo a 3 de Agosto de 1697; e faleceo a 3 do mesmo mez do corrente anno de 1766»,  na sua linha de sacralização do ser humano, caracteriza o príncipe D. Manoel «por excesso de amor constante» e compara-o a um «Celeste Serafim na virtude e na candura»... 
Amor constante, oração persistente, gratidão permanente, consciência espiritual mais desperta e admissão da existência dos espíritos celestiais e da nossa aprendizagem com eles...
Com esta leitura e notícia do Despertador Quotidiano, que em si significa intentarmos quotidianamente despertar da mutabilidade e dispersão para a pureza, fineza e vibração divina, desejamos que todos os geradores de tal publicação, e em especial a soror Tomásia Caetana de Santa Maria, se intercomuniquem e alegrem nesta comunhão do corpo místico da Tradição Espiritual Portuguesa que, transcendendo imanentemente fronteiras e limitações do espaço e tempo, na sua muldimensionalidade tão subtil e desafiante, sobretudo para quem medita, quer contribuir para a Paz, a Justiça, a Verdade, a Liberdade e a Divindade nos seres e no mundo...
Segue-se o vídeo do Despertador Quotidiano, como já dissemos, pela 1ª vez lido e gravado em simultâneo sem nada dela ainda sabermos...