quinta-feira, 13 de agosto de 2020

O prefácio aos "Sonetos" de Antero de Quental por José Manuel dos Santos. Uma crítica.

Um prefácio aos Sonetos de Antero de Quental é, sobretudo para os anterianos, sempre interessante ou mesmo valioso. Publicado numa edição popular ou gratuita do jornal Expresso, 2017, da autoria de José Manuel dos Santos, contém 22 parágrafos e todos eles são certamente notáveis, revelando a cultura, inteligência e sensibilidade do autor, mas com várias interpretações ou afirmações discutíveis. Neste meu dia de anos nada como o ler e comentar brevemente aspectos que me parecem de realçar, e só dos dois primeiros parágrafos, ficando o resto, com as suas partes valiosas, para uma próxima oportunidade. Quanto à escolha da capa parece-me má, como que empalhando, ou dependurando num cabide, Antero, mas pode ser apenas impressão ou interpretação minha... 
No 1º parágrafo diz e belamente que quem  lê os Sonetos «ouve uma voz que o silêncio atacou, mas não conseguiu possuir», restando-nos lembrar que a 1ª edição de 1886 teve pouco sucesso, embora uma 2ª edição logo de 1890, com numerosos sonetos traduzidos, sinalizasse que a obra era valiosa e não passara desapercebida e sem escola. A 3ª edição surgirá apenas nos anos 20, e  depois virão a comentada e reordenada por António Sérgio, em 1956, e a dos Clássicos Sá da Costa, que levarão Antero ao grande público ainda mais. No séc. XXI mais frequente ainda será a sua entrada nos prelos, pois tornou-se leitura obrigatória escolar. 
Uma obra fora do sistema, da religião, do optimismo superficial e não questionador, dramática, interpelando a morte, a solidão, os conflitos, as ansiedades, as limitações humanas, o sentido da vida, pela genialidade com que fora vivida e escrita, e pelo selo algo imortalizante do suicídio, não poderia ser abafada pela mortalha do silêncio limitador e censurador...
No 2º parágrafo lemos esta bela mitificação: «Na nossa mitologia cultural, os Sonetos ocupam o lugar do morto. Neles, a vida que quer morrer persegue a morte que quer viver. É desse lugar de onde a morte já não foge que a vida se vê. O soneto Solemnia Verba é dessa fatal visão, o vértice. E é também o vestígio velado numa vertigem do vazio». Ora se a primeira parte é valiosa, admitindo-se até que Antero vivo perseguia a morte que ele queria viver, e que os Sonetos ocupem o "lugar do morto" na nossa poesia, a conclusão parece-me bem errada, pois o Solemnia Verba é um dos sonetos com mais luz e fora de uma visão fatal de vertigem do vazio, que se foi cultivada por Antero em vários sonetos dentro das tendências da época, sabemos também que a ela reagiu fortemente, afirmando várias vezes que só alguns dos sonetos correspondiam à melhor poesia que ele gostaria de fazer, a do futuro, que congraçava ciência, filosofia e espiritualidade, nos quais incluía o Solemnia Verba.
Ora envolver tal soneto na roupagem costumeira do vazio, da fatal vertigem parece continuar a tentar-se passar a imagem de um Antero de Quental perdido seja no inconsciente, no vazio ou na atracção da morte, algo que tem sido aliás defendido por vários ensaístas de valor.
Ora no Solemnia Verba Antero entra em diálogo meditativo com a sua voz interioru do coração ou do espírito e, lamentando-se sofridamente das negatividades, desilusões, angústias e dores do mundo, que todos nós conhecemos, e mais ainda hoje no séc. XXI em que a ética e a justiça mais desapareceram,  ouve-o responder-lhe de modo admirável no penúltimo terceto que é de uma riqueza que não se compadece com morte,  vazio ou vértice fatal de vertigem ou morte. 
Pelo contrário devemos destacar  a filosofia moral e a iniciação, de um coração, ou alma, tornada corajoso, através das lutas e sofrimentos, no caminho estreito mas que leva ao alto,  do penar ou sofrer purificador que torna a pessoa mais humilde e grata e a abre ao acreditar, à fé, ao Divino, à imortalidade, ao sentido da Vida.  
O terceto final é então magnífico e representa um dos momentos mais luminosos de afirmação do triunfo do amor e só por insensibilidade ou preconceito se negará tal.
Oiçamos então neste soneto dos seus últimos, escrito em 1884, na "década dourada" de Vila de Conde,  o diálogo travado por Antero de Quental com a sua Voz da Consciência, por ele tantas vezes enaltecida na sua valiosa epistolografia (nomeadamente nas cartas ao seu grande amigo da Índia Fernando Leal) e à qual ele denomina aqui Coração, e que tantas e importantes avatarizações terá para terminar até Na mão de Deus no soneto final  da sua obra, liberto: 

         Solemnia Verba

«Disse ao meu coração: «Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E noite, onde foi luz de Primavera!
Olha a teus pés o Mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!»

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: «Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.»

  Ora ao contrário da vertigem do vazio, encontramos uma alma forte que consegue olhar para todo o passado e consegue abraçá-lo, acolhê-lo como tendo sido necessário para chegar à posição ou estação do caminho de peregrino em que se encontra donde já vê o Amor!
Poderíamos perguntar que Amor é este, o platónico, o psicológico, o Divino, mas isso cada um deverá sentir e sondar por si, mas demos graças por Antero a dado momento do seu percurso tão difícil e doloroso, depois de ter sido um jovem de tão romântico e revolucionário amor, tenha conseguido intuir o vero Amor substante e divino, que no dizer de Dante move as estrelas, ao que poderemos acrescentar que cada um de nós é uma estrela, tal como Antero de Quental, agora já no firmamento subtil dos manes e vates da Pátria da língua portuguesa ou da Tradição espiritual Portuguesa, em que mau grado várias circunstâncias e resultados foi claramente um Cavaleiro do Amor, como aliás outro dos sonetos mais fulgurantes afirma, e esse com a particularidade de ter sido escrito na França da Europa moderna, em Paris, 1877, e quando o seu coração batia mais por uma amada: o Mors-Amor, que se poderia dizer que toda a gente deveria conhecer  de cor e que é quase alma-gémea do Solemnia Verba, embora com outras imagens metafóricas, concluindo com a vitória do Amor, já não sobre um sem sentido da vida, mas sobre a própria morte: 

         Mors - Amor

«Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas, 

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"» 

Este terceto final é  mântrico, iniciático, e glosa no fundo um dos motes ou lemas, que o seu fiel amigo Joaquim de Araújo e posteriormente Fernando Pessoa também afirmaram e aprofundaram, vindo já da tradição grega órfica, pitagórica e eleusina
e consignado na Antologia grega Palatina: Morrer é ser iniciado!
Saibamos nós merecer, com Antero de Quental, o Amor que triunfa da Morte: AMOR!
                                              

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