quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Vida e Ensinamentos de Ramakrishna, de Mahendranath Gupta. Seu encontro com Tota Puri.


Shri Ramakrishna foi um dos últimos grandes yogis dos últimos tempos, com uma realização espiritual e divina muito elevada e constantemente agraciada com estados iluminados e de partilha da sua realização. Viveu entre 18-II-1836 e 16-VIII-1886, desde muito novo entrando em estados de unidade espiritual com o ambiente, e acabou por se estabelecer em 1855 em Calcuta onde foi sacerdote de um pequeno templo (mandir) da deusa Kali, em Dakshinewar, tendo-se casado com a muito jovem Sarada Devi, por pressão da família preocupada com o seu excesso de misticismo. 

O seu dia a dia durante muitos anos de ensinamentos, satsangas, diálogos, estados iluminativos, amizades foi maravilhosamente registado por sri Mahendranath Gupta (na imagem,1854-1932), embora só dez anos depois da morte de Ramakrishna, em 1897, tenho saído a sua 1ª publicação, em bengali, Sri Sri Ramakrishna kathaamrita, As palavras de Néctar de Ramakrishna. E em 1907 sai a obra traduzida para inglês por ele, com uma edição  revista em 1921, sob o título The Life and teachings of Ramakrishna e que veio a ser conhecida como a Gospel of Ramakrishna. Posteriormente houve a tradução do bengali por Swami Nikhilananda, a qual se tornou a oficial, embora tenha sofrido provavelmente  alterações. No Ocidente, Max Muller e Romain Rolland foram dos principais divulgadores e no Brasil houve uma tradução pioneira, sob o título o Evangelho de Ramakrishna, não completa mas razoável, que já nos meus 18 anos me impressionou luminosamente.
Em 1995-96 estive um ano na Índia, dos quais seis meses em Calcutá, no Ramakrishna Mission Institute of Culture, em Gol Park, convivendo com alguns investigadores e a traduzir partes da vida de Ramakrishna e textos da espiritualidade indiana com o professor de sânscrito Satchitananda Dhar, tais como os Narada Bhakti sutras, algumas Upanishads e os Yoga Sutras, deste tendo fornecido um dos manuscritos da tradução possível, à Maria, que esteve também um mês no Instituto, e o publicou comentado nas Publicações Maitreya, estando já hoje em 3ª edição.
Tendo traduzido manualmente numerosas páginas, eis-me a começar a partilhar alguns extractos significativos, até para pagar uma certa dívida da hospitalidade e o simpático acolhimento do swami que dirigia o Instituto de Cultura, no qual proferi uma conferência sobre as relações espirituais entre a Índia e Portugal, bem como a grande paciência e disponibilidade de Satchitananda Dhar em relação aos meus desejos de tradução imediata dos textos a partir do meu questionamento dos melhores termos a serem empregues. Por fim, devo agradecer ter sido iniciado nos últimos dias na tradição de Ramakrishna pelo então ainda apenas vice-presidente Ranganathananda (1908-2005), em cerimónia para pequeno grupo e com bons resultados.
Eis então o 1º fragmento, passado em 1865, e referente ao encontro e ensinamentos do mítico naga yogi, Tota Puri:
«Peregrinando em direcção ao templo de Jaganath, em Puri, o yogi vedântico Tota Puri ficou encantado ao ver um jovem de face muito luminosa junto ao templo de Dakshinewar e perguntou-lhe, já que parecia apto, se estava interessado em aprender o caminho da realização directa da Vedanta. Este respondeu que iria perguntar à Mãe e dirigiu-se à imagem da deusa Kali no templo e recebeu dela a instrução de aprender com o yogi que para isso mesmo ali viera.
Combinaram então fazer a iniciação às escondidas, pois Ramakrisna era um brahmane e teria de ficar nu, sem o fio sagrado e cortar o tufo do cabelo. Durante alguns dias Tota Puri transmitiu os ensinamentos preliminares do Advaita Vedanta, ou do Vedanta não-dual, pensando que Ramakrishna cedo abandonaria a sua devoção emocional à Mãe Divina.
No dia e hora propícia ao findar da noite, Tota Puri e Ramakrishna encontraram-se dentro do bosque sagrado onde aquele estava e iniciaram os ritos e mantras preliminares, tais como:
«Possa a verdade do Supremo Brahman (Ser, Divindade) penetrar-me. Possa a Realidade suprema que tem a característica de suprema felicidade (Ananda) atingir-me. Possa a indivisível, homogénea e doce realidade de Brahman manifestar-se em mim.
Ó Supremo Eu, que és eternamente coexistente com o teu poder de revelar a consciência de Brahman a todos os teus, - devas (anjos), seres humanos e outros -, eu, teu filho e servidor, sou um objecto especial da tua compaixão. Destrói todos os meus sonhos negativos, as percepções da dualidade, ó grande Senhor, destruidor do sonho ilusório dos mundos.
Ó supremo Eu, eu ofereço-te as minhas forças vitais como oblação e controlando os meus sentidos, eu ponho a minha mente em ti.
Ó Ser efulgente, que diriges cada ser, remove de mim todas as manchas negativas que são obstáculo ao conhecimento correcto e permite que o conhecimento da Realidade, livre de absurdos e oposições, possa desabrochar em mim.
Possam todas as coisas do mundo - o sol, o ar, a brisa, a água pura dos rios, os cereais como o trigo e o centeio, as árvores -, coordenadas por Ti, iluminarem-me e ajudarem-me a atingir o conhecimento da Verdade (Sat).
Tu estás manifestado no mundo, ó Brahman, sob várias formas, de poder especial. Eu ofereço oblação a Ti, que és o Fogo, com o objectivo de atingir a pureza do corpo e da mente e a capacidade de manter o conhecimento (Jnana). Sê propício».
Depois de oferecer em sacrifício o tufo de cabelo, o fio sagrado e de ter recebido a veste ocre alaranjada de renunciante ou sannyasin, Ramakrishna sentou-se ao lado de Tota Puri para receber o seu ensinamento e ouvir as escrituras adequadas a levarem-no do seu estado de dualidade divina ao estado da transcendente Unidade. Para isso devia abandonar nome e forma (nama rupa), toda e qualquer imagem e mergulhar nas profundezas de si próprio até encontrar o Atman, o espírito.
O pior é que quando Ramakrishna tentava cessar o fluxo mental e ultrapassar a dualidade, a imagem da Mãe Divina surgia e embora tudo o mais desaparecesse e ele ficava nesse estado contemplativo e não consegui passar dali. Desesperado, Ramakrishna, a certa altura, exclama: «É impossível de se realizar. Não consigo libertar a mente do seu funcionamento normal e forçá-la a mergulhar no Atman, no Eu espiritual.»
Ralhando comigo severamente, o sannyasin naga (renunciante serpente) exclamou indignado: «O quê, não consegues? Mas tens de o fazer!» Olhou então à volta na cabana e encontrou um pedaço de vidro, pegou nele e com força perfurou com a sua ponta aguçada como uma agulha a zona da testa entre as sobrancelhas e disse: - Reúne, concentra a tua mente neste ponto. Sentei-me então para meditar de novo firmemente determinado e logo que a forma da Mãe Divina apareceu diante de mim, assumindo o conhecimento como uma espada e eu cortei-a mentalmente em duas. Então mais nenhuma função da mente subsistiu, e eu transcendi rapidamente o domínio dos nomes e das formas (nama rupa) e entrei em samadhi."
Tota Puri, sossegado por fim, sentou-se ao lado de Ramakrishna e elevou-se também à Unidade do Espírito. Depois retirou-se silenciosamente da cabana e sentou-se debaixo da grande árvore do Panchavati a aguardar serenamente que o Ramakrishna o chamasse. Três dias assim decorreram até Tota Puri decidir espreitá-lo e deparar-se com ele tendo o corpo completamente imóvel mas a cara radiosa e continuando num estado iluminado. Tota Puri estava muito admirado com o poder divino que fazia com que aquele homem em poucos dias chegasse ao nível que ele conseguira após 40 anos de esforços. Por fim, com os nomes sagrados de Hari Om, despertou-o...
                                                     
Escultura actual de Tota Puri no seu mahasamadhi, no Advaita Brahma Ashram, de Puri.

Tota Puri permaneceu ainda onze meses com Ramakrishna mas como habitualmente não ficava mais do que três dias em cada sítio, a certa altura o tempo em que ali estava já era longo. Mas como gostava muito de Ramakrishna e como ambos estavam no mesmo nível elevado de realização foi ficando. Entretanto a sua saúde que era de ferro ou por causa do clima ou por causa das águas começou a enfraquecer e a disenteria tomou conta do seu corpo. Resolvera partir, mas sempre que se encontrava com Ramakrishna para se despedir as conversas e o alto nível a que chegavam impediam-no de concretizar a decisão. Em determinado momento a doença começou a tornar-se tão pronunciada que Ramakrishna tentou curá-lo mas os seus esforços foram em vão.  E se ao princípio Tota Puri conseguia apesar das dores elevar-se ao plano da transcendência, a dado momento as dores tornaram-se tão fortes que a sua mente mal acabava de tocar no plano do silêncio era obrigado a descer e a apegar-se na zona dolorosa.
Uma noite Tota Puri desesperado com a situação, considerando inútil continuar naquela gaiola de ossos e carne que não lhe permitia estar em samadhi, ou estado unificado, resolveu atirar-se ou afogar-se no rio Ganges. E ei-lo a caminhar  pela margem e avançando até chegar a uma zona com profundidade suficiente. Mas em vão continuava a avançar e apenas a chapinhar até que subitamente se apercebeu que as luzes da outra margem  já estavam próximas. Então repentinamente de todos os cantos do rio e do Universo a realidade da Mãe Divina emergiu triunfante e ele só ouvia dizer: «Ma, Ma. Mãe, Mãe».

                                         

A luz fazia-se nele. Afinal Ramakrishna tinha razão. Brahman, o Absoluto, não-dual, ou sem dualidade era também a Mãe Divina, Kali, o poder (shakti) da manifestação e eram eles que lhe salvavam a vida e o introduziam num novo tipo de samadhi, mais pleno e feliz. Regressando à cabana meditou finalmente livre da opressão conceptual e compreendeu que estava curado. Ramakrisna quando o foi procurar sossegou e a lição última de Tota Puri em Dakshineswar tinha-se realizado: o seu encontro com a Mãe Divina, a Shati. Após alguns dias despediram-se e ele partiu...» Digambara, digambara...

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