quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Antero de Quental. "Hino à Razão". Soneto de 1873.

Os Sonetos completos de Antero de Quental, prefaciados por Oliveira Martins, após a 1ª tiragem portuense em 1886, e a 2ª  em 1890,  saíram numa 3ª edição no ano de 1918, de novo no Porto, na Companhia Portuguesa Editora. Ora tendo há pouco adquirido um exemplar na livraria alfarrabista do Bernardo Trindade, à rua do Alecrim [agora já no Lg. Academia Nacional das Belas Artes], partilho-o pois não é vulgar encontrá-lo numa encadernação em "pano de chita", que não vem dos místicos e corajosos Shia ou Shitas da Pérsia e do Iraque (e noutros países) mas do sânscrito chitra, tecido de algodão (também denominado chin), e que em Portugal foi bastante estampado, com as suas flores e outros belos motivos, m oficinas artesanais bem criativas da zona de Alcobaça.
    
Alcobaça, a terra natal do pai do Bernardo Trindade, Tarcísio, poeta e sábio bibliófilo durante décadas na sua mirífica livraria no nº 44 da r. do Alecrim, mas também munícipe ilustre e filantropo (dos bombeiros) de Alcobaça e que, embora já nos mundo subtis, tem no seu filho Bernardo um digno continuador, tal como nos irmãos e primos também dedicados às artes, antiguidades e livros, embora agora ameaçados pela invasão turística e a venda retalho de Portugal, e em especial das lojas na Lisboa central, numa descaracterização fatal e mais de terceiro mundo de que dum país com tão rica história.
Este exemplar tem ainda a particularidade de apresentar assinaturas, carimbos e ex-libris de posse dos usufrutuários que se abeiraram do Logos, o mundo das Ideias, servido por Antero neste belo cálice, que ostenta agora também, embora a lápis, a pertença, ou se quisermos a ligação, desta hora: Antero de Quental, escritor, nome da página criada por mim no Facebook dedicada a ele.
Ora o ex-libris, criado pelo, e para o, último dono Carlos J. Vieira, é bastante simbólico, e nele mencionarei apenas o oceano, a montanha que se ergue para o Sol e, no mais alto, a vieira ou concha das bênçãos divinas para os peregrinos da Verdade, certamente bem apropriada para um livro de Antero de Quental, ser sempre em demanda.
Aníbal Antunes Graça terá sido o seu segundo possuidor, o que originou a encadernação que ostenta ainda o seu carimbo, tendo o senão de ter riscado no frontispício o nome do anterior possuidor, que fica assim privado da relativa "imortalização" neste texto...                                             
                                            
Apresentamos, depois destes pormenores bibliófilos, um soneto, dos mais belos e luminosos, um daqueles em que Antero de Quental aspira e canta mais ao alto, à Razão, irmã do Amor e da Justiça e, confiante, se entrega a ela, o Hino à Razão.
                                
Disposto nos Sonetos como sendo o último da série redigida entre 1864 a 1874, a fase de razão mais crítica, dinâmica e revolucionária de Antero, presumindo-se  escrito em 1873, já que no princípio de 1874 o enviou para um Bouquet de Sonetos publicado pela Sociedade Filantrópica Académica do Porto, deveremos destacar e invocar em nós o que o jovem de trinta anos canta, conjura ou apura em si: uma alma livre e a nada submissa senão à Razão, certamente um ideal pelo qual todos devemos lutar, pois ora pelos instintos, emoções, preferências e pensamentos incorrectos, ora pelas manipulações exteriores, medos e atracções, afastamo-nos do que seria o Verdadeiro e o Justo, a Ordem Inteligente, o Logos, e utilizamos esta palavra sem a reduzirmos a racional e a lógico, pois o verdadeiro conceito de Razão ou Logos, hoje no séc. XXI  bastante  diminuído na capacidade de abranger os fenómenos da Vida na sua subtileza, infinidade e unidade, ou ainda os fenómenos e capacidades da psique humana, é bem mais vasto e profundo.
Com efeito, o Logos dos gregos, desde Heráclito, que inicialmente significava discurso, palavra, Ordem e Inteligência-razão,  com os filósofos neoplatónicos e o cristianismo do Evangelho segundo S. João, I.1. (En arche en o logos, kai o logos em pros tos Theon, Kai o logos en Theos, "Ao princípio era o Logos [Verbo, Sermo ou Palavra], e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus)",  seria erguido quase a sinónimo da Divindade, ou pelo menos ao seu Filho.
Portanto, mais do que dever ser reduzido apenas àquilo que é pensado ou raciocinado cerebralmente, deve ser visto, sentido e trabalhado  como a visão da dimensão ordenada e inteligente do Universo, a qual permite compreender e unificar a multiplicidade dos contrários em luta, tais como sentimento-pensamento, egoísmo-altruísmo,  bem-mal, sendo portanto tanto racional como supra-racional ou supra-mental, e desenvolvendo-se em nós pela aspiração, a coragem, a sensibilidade artística, o estudo, a reflexão, a meditação e a intuição. 
Tal é  o que Antero de Quental desde muito cedo valorizou e foi entendendo por Razão, com auxílio dos pensadores e filósofos que o antecediam, sobretudo da França e da Alemanha, de Kant e Hegel a Michelet, Quinet e Proudh'on, a que juntou depois, numa linha mais de inconsciente e panteísta, Hartmann e Schopenhauer, e que nós hoje poderemos tentar compreender melhor ainda com o conhecimento mais completo tanto das cosmovisões e filosofias orientais como dos autores clássicos greco-romanos e sucessivos  iniciados, gnósticos e herméticos, que realizaram de um modo ou outro tal dimensão mais profunda,  universal e espiritual da Razão ou Logos.
Para tal tarefa de assunção (ou assimilação) maior do Logos em nós, e portanto de uma vivência mais racional, justa, profunda e harmoniosa na vida, Antero de Quental ergue ou discerne duas colunas suas irmãs, o Amor e a Justiça, constituindo uma Trindade, como três faces do Absoluto, da Ideia, ou, como poderemos nós dizer, da manifestação Divina.
Isto já estava em construção nos sonetos anteriores deste ciclo, num dos quais a concepção normal de Deus é considerada ultrapassada, Palavras dum certo Morto, e noutro, Justitia Mater, a Justiça é erguida a Mãe, tal como faz com a Razão, reconhecendo em tais arquétipos ou ideias,  qualidades que nos nutrem, nos fazem crescer e realizar-nos:
«Há mais alta missão, mais alta glória:
O combater, à grande luz da história,
Os combates eternos da Justiça.»

Esta Razão é então uma com o Amor e a Justiça, é Divina, e é para ela que Antero ergue a voz do coração, ou seja, o seu apelo e prece, mostrando-nos assim que a oração ou aspiração deve brotar do íntimo do peito, do coração, da nossa alma ou psique individual rumo ao universal, ao impessoal, ao espiritual, algo que Antero de Quental desenvolveu e transmitiu bastante na sua correspondência, valorizando tal posição e revolução moral (vencer-se o egoísmo) como a mais importante de todas.
O que tinge e  caracteriza o nosso coração, o que deseja ele, apetece, aspira, ama, sonha, reza, quer? Há uma harmonia ou uma luta grande entre o coração-fé-sentimentos-aspirações  e a razão crítica e prática?
 Em Antero de Quental houve desde cedo, desde a chegada e a imersão na demanda juvenil universitária conimbricense,   tal conflito e foi bastante consciencializado e referido ao longo da vida, nomeadamente, embora mais tarde, numa carta a Oliveira Martins, provavelmente de 1880, acerca da poesia própria do seu génio natural:«É incrível a desarmonia que há entre a minha razão e o meu sentimento, e este, por mais que faça, nunca chega a afinar pelo tom grave e claro daquela. Que fazer? É evidente que a poesia sai do sentimento e não da razão. Aceitemo-nos tais como nos fez a natureza. Não se pode exigir do pinheiro que dê laranjas. Os poetas são como as mulheres: hão-de se tomar tais e quais, com os defeitos e as qualidades que na sua fatal natureza são inseparáveis»...
Ora Antero de Quental escolhe neste hino a palavra-ideia Razão como o seu maior destino do coração,  por opção determinada e consciente, abandonando o Deus judaico-cristão e preferindo a Razão universal, ou primordial, ou absoluta, o Logos. Todavia, num soneto da época, intitulado exactamente de Logos, enviado numa carta de Setembro de 1875 a Jaime Batalha Reis e publicado nos Sonetos como redigido entre 1880 e 1884, a Razão ou Logos é sentida duplamente como ser e como qualidade: como «um nimbo de afecto e de ideias que são meu princípio, meio e fim», e também como um pai, um irmão, um tirano (por exemplo, quando o criticasse por estar a agir mal...), mas a quem ama, numa linha de diálogo interior  como uma Razão ou Voz dinâmica da Consciência, de origem supra-individual, ou pelo menos acima da sua personalidade normal. E esta  bem precisando do seu impulso, nomeadamente quando estivesse mais por baixo, mais desanimada ou apenas indecisa. Daí as cartas a Fernando Leal (já trabalhadas neste blogue) em que Antero aconselha o seu amigo a ouvir a sua voz da consciência, íntima, para ganhar forças e avançar...
Também nos auxiliará a compreendermos o alto conceito que Antero de Quental fazia na sua alma da Razão, lermos a carta escrita a Bulhão Pato, a 25 de Julho desse ano de 1873, onde o apoia e intensifica a crítica aos pseudo-filósofos, republicanos e revolucionários mais descabeçados ou extremistas que no fundo perturbavam a expansão das ideias  socialistas e revolucionárias: «Em verdade te digo: ninguém hoje faz tanto mal à Ideia Nova como esses, que se nos impõem como apóstolos dela, charlatães uns, fanáticos de cérebro estreito e coração encorreado! Estão para a Ideia Nova, como estavam para o Cristianismo aqueles mentecaptos exaltados da Tebaida [que significa tanto zona do Egipto, como retiro, eremitério]], extravagantes, lúgubres, que só sabiam, além dos nomes dum misticismo idiota, destruir estupidamente as mais belas coisas da arte egípcia e grega, amaldiçoar o que não compreendiam, e atirar-se como bestas feras àquela sublime Hipácia, suplício que seria a desonra do Cristianismo, se a estupidez humana pudesse desonrar o que tem em si um raio da Razão eterna!... A Razão eterna, que está no fundo da ciência e da filosofia moderna não será também desonrada por estes Pacómios e Hilariões [dois conhecidos eremitas da época], que pretendem fazer dela uma coisa selvática e abstrusa, uma Tebaida intelectual (...) O que te digo é que a revolução na sua marcha triunfante e silenciosa, não precisa destes tenebrosos aliados».
Neste Hino à Razão Antero de Quental intui ou poetisa como feminina a Razão eterna e universal que tudo penetra, o Logos Divino omnipresente já referido, Razão que é mãe e protectora dos que robustamente meditam, lutam e aspiram a ela. É invulgar tal polarização feminina, mas Antero sentiu-a, e sempre teve grande amor à sua mãe, de tal modo que quando ela morreu sofreu e manifestou-o em cartas para além de que o seu amor em jovem pela Mulher foi muito elevado e intenso, mas o Destino não o quis como pater familias mas poeta revolucionário e filósofo do Absoluto. Talvez por isso tenha conseguido dar uma face feminina à Razão, e até estando de acordo com o género que a rege em português. Aliás já o mesmo se passara com a Justiça, e, por fim, também com a Morte, para ele uma mulher e por quem quase se apaixona. 
A imagem seguinte que apresentamos de Antero, no meio de um belo bordado de uma mulher ou mãe portuguesa anónima, é uma homenagem tanto a Mulher como à Mãe, como ao Logos ou Razão, esta podendo dizer-se, numa metáfora, como sendo tanto a tecedeira inteligente como a tela substracto e a ordem em que os desenhos das nossas vidas são entretecidos pelo esforço heróico e a razão crítica, lúcida e corajosa que temos de ir desentranhando de nós próprios na luta pela verdade, justiça, amor e liberdade, tão bem assinaladas no soneto.
 Oiçamos então Antero neste seu poema filosófico  tingido de devoção, fortificando-nos na nossa consagração ao Logos, à Inteligência omnipenetrante e substante do universo,  à Verdade e, portanto, na prática, à palavra e pensamento, sentimento e acto justos e harmoniosos, os quais, segundo Antero de Quental, a filosofia de Kant e Hegel e a Tradição Perene, originam ou permitem que a virtude prevaleça sobre o egoísmo e o heroísmo floresça, de modo a que tanto a Ideia verdadeira, a Presença espiritual e divina e a Fraternidade (a vivência de tais Ideias na prática) venham mais ao de cima, passem do virtual ao real, sob a égide do Logos ou Razão, o qual foi também realizado e descrito como o Amor Inteligente que permeia ou fecunda o Universo, nomeadamente pelos estóicos, com quem Antero sempre se identificou um pouco.
 Por exemplo, numa valiosa carta do final de 1865 ao seu grande amigo Germano Meireles, pai das duas crianças que Antero pela sua morte  adoptará, refere acerca de si mesmo e da sua doença, três níveis da Razão (a absoluta ou universal, a especulativa ou filosófica e a prática ou própria de cada um) e o estoicismo:«Isto às vezes chega a um estado agudo, que de tudo me faz esquecer quanto não seja aquele lutar comigo mesmo, com a rebeldia do organismo que se quer emancipar da razão. É como tenho passado estes últimos 15 dias, e aí tens porque te deixei tanto tempo sem notícias minhas. Vão agora estas, que não são boas, mas podiam ser piores, se a estes males eu não juntasse uma fé crescente em cada dia no poder da vontade e da razão. Tenho fé em que hei-de por elas dominar todos os fenómenos da doença, produzindo não uma cura no sentido médico, mas uma eliminação do mal para a consciência. Sou estóico em teoria e espero chegar a sê-lo na prática. Mas vejo diante de mim ainda muito caminho que andar e caminho aspérrimo. Embora!, o único, grande e verdadeiro triunfo é o triunfo da liberdade. Quando penso nisto chego até a abençoar a doença que me dá ocasião para exercer a virtude por excelência dos fortes, e se não me abandono a um tal sentimento é só por me parecer orgulho demasiado, quando é certo que a frequência das misérias morais me adverte da nativa fraqueza. Mas pôr os olhos num grande alvo não é já, num certo sentido, merecê-los? Não lastimes pois o teu amigo, que está talvez nesta hora entrando no período mais nobre da sua vida moral. Será isto também ilusão, como tantas teorias, tantos sistemas pretensiosos? Não posso crê-lo. A razão especulativa é um terreno movediço e são precários os sistemas que nele assentam. Mas a razão prática (como diz Kant), a consciência imediata que temos do nosso ser moral, da natureza livre e racional que em nós existe, é uma verdade de intuição, um facto de consciência, é a expressão da nossa mesma realidade. Conformarmo-nos com ela é pois estar (se não na verdade do Universo) com certeza na verdade da nossa natureza.»
Sondemos então de novo o Hino à Razão
                                      
                                    HINO À RAZÃO
       
      "Razão, irmã do Amor e da Justiça, 
      Mais uma vez escuta a minha prece, 
      É a voz dum coração que te apetece,
      Duma alma livre, só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
       Por ti, na arena trágica, as nações  
       Buscam a liberdade, entre clarões;  
       E os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!"
Realcemos finalmente no soneto, até pela sua actualidade, o duplo aspecto da luta pela Razão-Justiça-Verdade: as nações, que em clarões lutam pela sua liberdade (e pensaremos em especial no Médio Oriente, tão dilacerados pelo imperialismo norte-americano e dos seus coligados, ou na América do Sul) e as pessoas, que cogitam um futuro melhor e lutam robustas protegidas pelo escudo de terem razão, ambas sabendo e tentando não se deixarem oprimir demasiado ou abater... 
                             
Terminemos com um plano do pano de chita ou chitra, que também podia ser do Japão, com sua tão amada flor de cerejeira, sakura, e com a qual podemos imaginar a comunhão com Antero de Quental, a Razão e a  Divindade, sentidas estas tanto no nosso coração, voz e prece como também no abrir-nos, sintonizarmos e regermo-nos cada vez mais pela Razão, a Ordem, a Beleza, o Bem da Humanidade e  do Cosmos. 
E nisto movidos pela aspiração à Justiça e à evolução da Humanidade  e não por instintos ou medos, frustrações ou desejos. E assim, lúcidos, nos robustecemos para florescer e frutificar as nossas vidas em Amor, Justiça, Logos, Verdade, Fraternidade e Liberdade, bens tão menosprezados e ameaçados nos nossos dias quanto essenciais e sagrados na perenidade da dignidade humana e da sua religação ao Logos Divino, o que Antero de Quental tanto cultivou e demandou...

3 comentários:

argumentonio disse...

admirável, tanto a divulgação e análise do ilustre poema de Antero de Quental, como o precioso apontamento bibliófilo, na linha de esmerada estima aos livros e às suas vinculações poderosas

o cotejo com o Logos, amplificando e enobrecendo o conceito de Razão, beneficia muito a interpretação do Soneto em apreço, fazendo igualmente jus à mundivisão anteriana, como à sua eleição e atenção permanente aos grandes temas das faculdades e virtudes humanas, tão estudadas e dignificadas por Antero, como a Liberdade e a Justiça social

uma palavra também para o cuidado na ilustração do texto, completando-o e valorizando o intuito de homenagear o Poeta e o genial universo criativo de Antero de Quental, que decerto muito se agradaria com a recensão que lhe é dedicada e com as energias e sintonias que por este modo se suscitam, em convergência, admiração e mais plena fruição, obrigado ;_)))

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Muitas graças, António, pelas tuas palavras muito próximas da Verdade, ou bem sintonizadas com ela, em Antero e na manifestação humana no Universo. Boas inspirações!

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Acrescento grande de mais três aproximações à Razão em Antero de Quental, no caso extraídas de cartas dele na época do soneto.