A
concepção mais generalizada de Deus, da Fonte Primordial, no Japão é bastante diferente
da Ocidental pois ao contrário da ideia do Deus único, que as
religiões dos ditos livros revelados, o Judaísmo, Cristianismo e Islão,
propagaram com maior ou menor proselitismo ou mesmo violência, o
Shintoismo aceita e pode chamar às suas cerimónias e cultos alguns ou muitos espíritos, deidades ou deuses, os Kami do Universo. E se por vezes realçam ou se consagram
a um só ou a poucos, na religião popular, em grande parte efectivada em festividades sazonais ou cíclicas da Natureza, procura-se o maior
número de seres divinos ou semideuses para que mais bênçãos
ou energias acorram ou aconteçam no local e possam tanto beneficiar
o alto como o baixo, os convidados como os que os celebram, e se estendam sobre a
região, sobretudo os campos e os habitantes locais.
É
certo que no Cristianismo e no Islão se desenvolveu um culto grande
pelos santos ou mestres, e arcanjos, e que estes no fundo agem como semi-deuses
para os seus discípulos ou para os que creem neles, nisto se
assemelhando ao Shintoísmo, o qual por sua vez torna ou consagra, ao fim de algum tempo, os que
morreram como espíritos divinos, embora a
diferença entre os Kami que foram pessoas e os grandes Kami divinos cosmológicos,
mitológicos e naturais seja notória, havendo uma hierarquia que se reflecte também na classificação dos próprios santuários, nos quais em geral se veneram ou cultuam um ou mais Kamis. Mas há vários casos de pessoas importantes na história que passaram a ser Kamis, cultuados em santuários.
Amaterasu omi-kami, a divindade principal ou a mais bela face divina, a deusa do Sol... |
Uma das caracterizações ou definições mais citadas sobre Kami é tudo o que pelas suas qualidades de excelência ou de extraordinário nos impressiona, sendo portanto miríades, infinitos...
Para
vermos e compreendermos melhor a concretização de tal caracterização dos Kami, espíritos celestiais ou Deuses Japoneses como miríades, oiçamos uma oração pronunciada nas festas cíclicas, neste caso na província de Mikawa, conforme N. Matsudaira as registou:
«A
guardiã do Sol, o guardião da Lua, no céu, o kami
Bontentaishakou, em baixo os quatro grandes reis e a princesa Goro e
os oitenta e quatro kami das tempestades, os oitenta e quatro guardiões muito respeitáveis,
que eles venham todos sem excepção.
Quando
eles descerem e se banharem, que apareçam como neblina que ascende para a
fonte das águas quentes.
Nós
convidamos o grande kami do Oriente, Tarô. Convidamos o grande kami do Sul, Jiro. Convidamos o grande kami do Ocidente,
Sabouro. Convidamos o grande kami do Norte, Shiro. Convidamos a grande kami princesa do Centro, Gorô.
Nós
convidamos os kami da chuva, os kami do vento, o kami Dainitchi,
grande sol da gruta do céu.
Nós
convidamos o kami do Caldeirão, Sabouro, a jovem kami da paz,
Miroumé; os kami dos anos.
Nós
convidamos das montanhas altas os viajantes dos cimos, os deuses
viajantes das folhas e o grande kami do Dragão.
Nós
convidamos pelas árvores, o kami do espírito das árvores, pelas
pedras, o kami Hakoujakoushin, o kami das trepadeiras, o kami das
ervas, os deuses que de uma só vez deitam abaixo muitas folhas. O
macaco que é chamado o kami Kongodoji. Os trinta kami dos países
do Ocidente para onde se dirigem os peregrinos, e convidamos os dez
mil kami das montanhas. Para os rios, os oito kami da água, para
os caminhos, o kami viajante, que venham todos sem excepção.
No
céu, a luz do Sol e a luz da Lua, na Terra os deuses violentos da
terra, o grande deus da Terra de altura de duzentos e quarenta metros, o kami médio
da Terra de altura de cento e sete metros, Ebisou, Daikokou, os sete kami da
felicidade, que eles venham sem excepção.
Nós
convidamos os 155.500 Kami dos templos das redondezas (...) Convidamos
os espíritos que se aproximam daqui, os espíritos dos sacerdotes
negui (os chefes), dos haori, das miodo (dançarinas), hakase (professores),
chishiki (conhecedores), ajari (monges instrutores), os primeiros e os segundos sacerdotes, hastes que
sobem do melão e regatos da vida.
Convidamos
os kami que estão ligados pelo sangue, bem como os que não estão
mas que habitam o mundo espiritual, que eles venham todos sem
excepção»...
Os
Kami ou espíritos celestiais chegam nesta cerimónia ao quadrado evocador, no
exterior ou numa sala, delimitado por cinco bambus unidos pelo fio
de palha por onde a energia circula proveniente das cinco direcções, e
que tem um bambu e o caldeirão com água a ferver ao centro e por cima o quadrado de bambu e papel biyakke,
simbolizando o céu e onde termina atado o fio de palha, denominado kamimitchi, caminho dos Kami, assinalando
a fonte celestial das energias.
As
danças, as orações, as aspersões de água com os ramos da sakaki,
a clyera, a árvore considerada mais sagrada ou mais condutora dos
Kami, a participação preparada ascetica e intensamente, as
oferendas, a aspiração e o entusiasmo da comunidade fortemente unida,
tudo conflui para uma intensificação e acumulação de energias nos seres que participam e é sobretudo pelo seu ritmo
harmonioso que os Kami ou espíritos celestiais estão mais presentes,
irresistivelmente quase e derramam o seu imenso reiken, a graça
divina, ou seja, a energia que é a correcta e adequada à
circunstância...
Saibamos
nós nas nossas orações e evocações merecer as melhores graças
do alto e das suas miríades de seres luminosos....
Possamos nós nas nossas orações solitárias ou em grupo criar os canais verticais e íntimos que nos ligam ao Espírito e ao mundo espiritual e Divino...
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