quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Marsilio Ficino e os ensinamentos medicinais, musicais, astrológicos, mágicos e espirituais do "De Vita"...

Marsilio Ficino, numa capitular de manuscrito iluminado da época.
Breve apresentação e tradução (a partir do texto latino e confrontando com a tradução inglesa) do começo do proémio do livro De Vita, do médico Marsílio Ficino (1433-1499), dirigido ao magnânimo Lourenço de Medicis, conservador da Pátria, o qual constitui como que a primeira obra de medicina e psicologia esotérica e científica,  gerada para os intelectuais e melancólicos, no ambiente aberto e entusiástico do Humanismo florentino, tendo sido finalizada em 1480 e com a primeira impressão, a editio princeps, em Florença, em 1489. Teve grande sucesso na época e posteriormente. Há traduções recentes e boas de Carol V. Kaske e John R Clark, esta muito bem anotada, bem como de Charles Boer. Recentemente têm sido publicados muitos artigos académicos ou universitários sobre Marsilio Ficino e a sua sabedoria e psicologia.
A obra Da Tríplice Vida contêm três tratados, e o proémio vem antes do primeiro tratado, intitulado Da Vida (De Vita). O segundo tratado é o Da Vida Longa (De Vita Longa) e o terceiro Da Vida Celestial Coligida (De Vita Coelitus Comparanda). No fim há uma Apologia, isto é, uma defesa da obra, já que ela fora imediatamente criticada pelos mais ortodoxos e anti-espirituais.
O primeiro tratado, Da Vida, aborda mais o corpo físico e as suas  partes principais, explicitadas no 2º capítulo como cérebro, coração, estômago e espíritos vitais, e explica, segundo a doutrina clássica dos humores, o que poderia dificultar ou facilitar a vida mental, em especial dos intelectuais, pensadores, religiosos, prescrevendo modos e hábitos de vida, remédios e mezinhas conducentes à vida sã. 
No segundo tratado, Da Vida Longa, Marsilio Ficino aconselha  procedimentos para o prolongamento da vida, necessário para se poder aperfeiçoar a ciência ou o conhecimento, e como tal exige um  esforço ou studium. Destaca a importância do equilíbrio entre o quente e o frio ou, como diz a medicina tradicional chinesa, o yang e o yin, explica como o ar reforça tal harmonia no sangue e nos fluidos, e como os alimentos da terra, as bebidas e os odores devem ser apropriados às compleições e épocas, discernindo-se bem os melhores e os piores alimentos. Atenção especial é dada ainda ao modo de vida e regime dos idosos, com agradáveis conselhos de acordo com as atribuições de influências planetárias, valorizando, por exemplo, o caminhar-se em conversas por terrenos relvados ou pelo campo, a utilização de certas especiarias, ou mesmo o leite humano  e o ouro, reafirmando contudo a regra pitágorica, nada em excesso, em especial no domínio mental e sexual.
                         
                                Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano
O terceiro tratado, Da vida Celestial Coligida, composto
quando traduzia, a pedido de Pico della Mirandola,  a obra completa de Plotino pela primeira vez do grego para latim, é o mais valioso e substancial em termos psico-espirituais, com muitas páginas consagradas aos planetas, esferas e seres celestiais, e aos seus influxos transformadores nos seres humanos, na Natureza e nas imagens e objectos, já que Marsilio Ficino valorizava os talismãs e certo tipo de magia operativa que fixaria as influência subtis planetárias em tais objectos ou moldes, algo em que  a auto-sugestão ou então a mais profunda fé têm sempre bastante importância.
Embora muitas páginas se possam considerar imaginativas, e outras dependerem da aceitação dos pressupostos
astronómicos (sistema plotemaico) e astrológicos, há contudo bastante informação merecedora de leitura e meditação, sendo tanto prática (destacando-se os conselhos com ervas medicinais) como sobretudo psicológica, simbólica e espiritual, pois Marsilio Ficino era um notável conhecedor da Sabedoria Perene, ou Prisca Theologia, traduzira e comentara as obras completas de Platão, Plotino e do pseudo-Dionísio Areopagita, estudara alguns livros de magia medieval de autores árabes, como a Picatrix, e cristãos, tendo ainda publicado a extensa, profunda e então famosa Teologia Platónica da Imortalidade das Almas, onde prova tal qualidade da alma e que não há  um intelecto para todos os seres, como queriam os averroístas, numa linha aristotélica, e que se aproximava dos não-dualistas da Índia, da filosofia ou darshana Advaita Vedanta, mas antes airmando que a imortalidade é individualizada, cada ser é um espírito ou raio divino...
                                
    Frontispício, com a marca do impressor, da editio princeps da De triplici vita, 1489.
Tradução do começo do Proémio dedicado a Lourenço de Medicis: «Os poetas cantam que Baco, o sumo mestre dos sacerdotes, nasceu duas vezes, provavelmente querendo significar que de facto o futuro sacerdote, ao ser iniciado, deve renascer, ou que ele mais tarde parece renascido quando a sua mente se inebria completamente em Deus. Ou talvez eles queiram dizer, num sentido mais humilde, que o vinho, a semente de Baco, nasce na vinha, Seméle [sua mãe], quando os seus galhos amadurecem sob Febo [o Sol], e regenera-se depois da vindima pelo raio fermentante como  puro vinho no seu vaso, tal como na coxa de Júpiter [seu pai, onde passou a gravidez]. Mas dos Mistérios sagrados não devemos agora falar quando temos a intenção de fortificar, por meios físicos, os que estão debilitados.
Isto não deve ser feito de uma modo pesado e sério mas livre e alegre, uma vez que de um modo ou outro começamos pelo pai Liber [um dos nomes de Baco, significando Livre]. E verdadeiramente falei "de um modo ou outro", pois para alguns talvez a medicina seja realizada mais prudentemente sob Apolo, o primeiro dos médicos, mais do que através de Baco. Mas o que podemos fazer se ocorre na nossa boca agora um sinal auspicioso de proferir [o nome de] Baco? De facto Baco cura talvez mais saudavelmente com algum vinho de qualidade e alegria do que Febo (outro nome de Apolo, Sol) consegue com as suas ervas e litânias.
Mas qualquer que seja o verdadeiro sentido, ou aquele que aceites, diz-se que aquele líder dos sacerdotes, Baco, teve
de certo modo duas mães. A Melquitsedeque, aquele sumo sacerdote,  é atribuído com dificuldade uma mãe ou  um  pai. Eu, o menor dos sacerdotes, tive dois pais: o médico Ficino e Cosme de Medicis. Daquele nasci e deste renasci. Aquele recomendou-me a Galeno, como médico e como platónico. Este consagrou-me ao divino Platão (...)». 
Era algo ousado na época, pese a grande concordância que se tentou então entre a cultura greco-latina e a cristã, comparar Baco a Melquitsedeque, pois S. Paulo, apresentara Jesus como sacerdote segundo Melquitsedeque, e portanto tal seria  para um católico normal uma heresia, mas sabemos que houve muitos humanistas mais corajosos, tais como Manuel de Faria e Sousa (1549-1640), que defendeu a utilização do sagrado pagão, nomeadamente de Vénus e Baco,  por Luís de Camões nos Lusíadas, face às críticas da Censura inquisitorial.
                                      
É no tratado III, de facto o mais extenso e rico de esoterismo ou
ocultismo mágico, real ou imaginado, Da vida celestial coligida, que Marsilio Ficino expõe mais as suas teorias mágicas, e podemos observar, no capítulo XVIII, por exemplo, intitulado Que figuras celestiais os antigos imprimiam em imagens, e do uso das imagens  que, às habituais imagens atribuídas às constelações, acrescenta não só o círculo ou a cruz (já utilizada pelos egípcios), esta intensificada na sua eficácia mágica e energético-espiritual ao ser usada com o nome de Jesus, mas também certas figuras simbolicamente associáveis aos planetas, e descritas por "indianos, egípcios e caldaicos", tal como para Saturno, um homem idoso sentado vestido de escuro sobre um trono alto, ou sobre um dragão. Ou, para Júpiter, um homem coroado, com vestido amarelado sobre uma águia ou um dragão. Para se representar o Sol, o ser coroado no trono deveria ter junto a si o corvo e uma imagem da face do Sol; para Marte, já seria um ser armado e coroado. Tais imagens deveriam estar desenhadas ou gravadas dentro de uma forma redonda por esta ser a semelhante à do céu. Encontramos nestas propostas afinidades com as doutrinas orientais dos mandalas ou nas que subjazem a generalidade dos amuletos ou até mesmo relicários e que se baseiem no facto de haver  energias subtis e psíquicas que podem impregnar ou fixar-se em objectos.
Além das imagens, as horas e as posições astrológicas, nos graus e casas, contariam muito na eficácia dos influxos celestiais, segundo Marsilio Ficino, embora ele se mantenha
sempre cauteloso e acatador das decisões dogmáticas S. Tomás Aquino, e diga portanto que são os astrólogos que afirmam a sua eficácia, mas vai citando Plotomeu e também Al-Ṣābiʾ Thābit ibn Qurra al-Ḥarrānī ‎(826-901), astrólogo e matemático de Bagdade. Lembra depois, todavia e discretamente, S. Alberto Magno e Pedro Abianon aceitarem tais influências nos seres e nos objectos. Assim, quem acreditar ou gostar da astrologia e das suas correspondências e influências, encontrará na obra muitas indicações que poderá ensaiar.
Os últimos capítulos do tratado De Vita patenteiam uma constante admissão da existência de influxos energéticos
que podem ser captados pelos materiais e imagens consagrados mas também e sobretudo pelo espírito do operador, dependendo tal captação e eficácia da sua fé e aspiração, algo que se me configura como o factor mais decisivo, correspondendo no fundo a uma oração de invocação e plasmação na matéria, que sabemos cada vez mais ser energia pluridimensional e quântica, da informação psico-somática que se pretende ou pede.
É valioso o modo como Marsilio Ficino, a partir da aceitação da cosmologia de Plotomeu (conforme o diagrama), vê a hierarquia em espiral de ligação e correspondência entre o alto e o baixo: os metais e e pedras são o nível mais baixo e estão relacionados com a Lua. No 2º grau estão as coisas compostas de ervas, árvores de fruto, resinas e membros de animais, os quais estariam mais sujeitos a Mercúrio. No 3º nível estão os odores ou aromas das ervas e flores e os unguentos e mezinhas feitos deles, correspondendo aos influxos de Vénus. No 4º nível, as palavras, cantos e sons, os quais correspondem ao Sol, ao deus Apolo, o doador da lira. No 5º grau ou esfera encontram-se os afectos, imaginações e movimentos fortes, os quais estão ligados a Marte. No 6º grau encontram-se as deliberações e discursos ligados a Júpiter.  As actividades mais simples e secretas da inteligência, quase já sem movimento e unidas à Divindade, são as que pertencem ao 7º nível, a esfera e planeta de Saturno, a do repouso ou paz. Acima dele estava o que era chamado o Firmamento ou o Céu das Estrelas Fixas. O nosso Luís de Camões também poetizou nos Lusíadas com esta base tradicional, tanto mais que conhecia o astrónomo Pedro Nunes, a ascensão através das esferas planetárias até ao Céu Cristalino. Nos nossos dias são pouquissímos os seres que conseguem ter, com esforço, studium e merecimento alguma visão subtil e espiritual destes planetas e esferas, embora milhões acreditem em horóscopos e previsões infundadas ou aleatórias.
Valoriza ainda bastante as palavras pronunciadas com espírito e sentido, que tanto afectam quem as profere como, por efusão, ainda impressionam ou movem os que estão próximos e que, ao imitarem ou invocarem os seres ou energias supra-terrenos, com palavras e cantos, e que na linha pitagórica se recomendavam com o acompanhamento da lira, os quais podem tanto erguer-nos aos mundos celestiais como fazer descer as suas influências miríficas sobre o nosso espírito, alma e corpo.
Deste modo, quer pelo coração e a imaginação, quer pelos olhos e as palavras, a energia e a intenção musical podem tocar no subtil meio que une o corpo à alma e curar ou harmonizar a pessoa, tanto mais que, como os Pitagóricos e Platónicos defendem ou afirmam: «o céu é um espírito dispondo tudo com os seus movimentos e tons.»

Marsilio Ficino, à esquerda, Cristoforo Landino, Angelo Poliziano e o grego Demetrios Chalkokondyles, num fresco imortal de Ghirlandaio,  na capela florentina de Santa Maria Novella.
Estamos na famosa teoria ou visão da Música das Esferas, acrescentada com algumas hipóteses de correspondências planetárias com as vozes humanas, e como Marsilio Ficino tocava harpa e cantava, é natural que tenham alguma razão de ser: assim os planetas Saturno, Marte e a Lua não estariam tão ligados à música mas antes às vozes roucas, rápidas e temperadas, respectivamente... Conseguirmos pelas nossas vozes, ressonar com a subtil música das esferas, é um desafio para os nossos cantores e cantoras, e estou-me a lembrar de Angèlia Grace e  Beatriz Pereira, ou Teresa Salgueiro e Dulce Pontes que, dotadas de imensa sensibilidade, poderão atingir nestes campos resultados valiosos, como alguns dos seus ouvintes meditativos já terão sentido...
Na igreja de Santa Maria Maggiore, em Florença, o busto de Marsilio Ficino, tocando a lira, junto a uma das entradas.
Já o cap. XXII é dos melhores, defendendo até o vegetarianismo que teria existido na mítica idade de Ouro: «É por causa disto que essas pessoas Lunares que Sócrates descreve no Fedon, habitando a superfície da Terra que é eminentíssima e mais elevada que as nuvens, vivendo sobriamente, e contentes por serem vegetarianos ou frugíveros, dedicados ao estudo da mais secreta sapiência e religião, saboreiam a felicidade de Saturno; e levam uma vida tão próspera quão longa que são tidos não como mortais mas por daimons imortais, que muitos chamam heróis e a raça (ou género) de Ouro gozando o reino e a idade de Saturno».
Quanto à valiosconclusão do capítulo XXII é bem a e vale a pena traduzi-la e transcrevê-la: «Finalmente, onde dissemos que os dons dos céus descem a nós, entenda-se que os dotes celestiais vêm até ao nosso corpo pelo nosso espírito  adequadamente preparado; que, mesmo antes, os seus raios influem no espírito de um modo natural ou por qualquer modo que a eles esteja exposto; que os bens dessas almas celestiais brotam em parte no nosso espírito através de raios e daí derramam-se nos nossos ânimos, e em parte vêm de tais almas  e de anjos e chegam às almas dos seres humanos que lhes estão expostos, e expostos não tanto naturalmente mas por certo pacto e eleição, e por afecto ou por livre arbítrio.
Resumindo, quem quer que, por votos, estudo, vida e hábitos, imita as acções beneficientes e a ordem dos seres celestiais, recebe deles mais amplos dons pois eles são considerados quase semelhantes aos seres supernais. Pelo contrário, as pessoas artificiais e dissemelhantes ou discordantes dos seres celestiais são encobertamente miseráveis e por fim não podem evadir-se de uma infelicidade pública». 
                                        
Sintonizemos pois gratos com messer Marsilio Ficino e com os santos, mestres e espíritos celestiais, tais como os Anjos e Arcanjos, para que o mistério da Fonte Divina e da sua Luz, Palavra-Música e Amor se desvende, estabilize e brilhe mais em nós...

2 comentários:

Unknown disse...

Oi Pedro, bom dia.

Estou aqui estudando uma obra chamada "Os Planetas Interiores" sobre a Psicologia Astrologica de Marsilio Ficino e vi seu artigo.
Gostei muito, parabéns!

Estou tentando ver se encontro em PDF ou papel essas obras a que te referes.
Estou com a intenção de estudá-las mas não estou encontrando com tanta facilidade aqui no Brasil

Não consegui enviar diretamente ao seu e-mail

Andrea Honaiser

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças, Andrea
Verei o que posso sugerir brevemente.
Meu mail viva.erasmo@gmail.com
Votos de boas ou luminosas inspirações
Pedro